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Dois anos após o surgimento do novo coronavírus, enquanto vários países lutam contra sucessivas ondas de contágios, a pandemia parece apresentar ainda muito mais dúvidas do que respostas. Contudo, uma certeza creio que já podemos ter: adotar medidas draconianas, alegar que se está seguindo a ciência em coletivas de imprensa, e receber elogios de grupos ideológicos na imprensa não serão o suficiente para salvar vidas humanas. E dependendo do tipo de restrição a liberdades que você utilizar, além de fracassar no controle da pandemia, os efeitos colaterais poderão ser devastadores.
De fato, desde 2020, quando a pandemia chegou com força ao Ocidente certos grupos, curiosamente, já sabiam tudo o que devia ser feito para combater a doença: qualquer alternativa ao seu plano traçado de antemão era descrita como ódio à ciência ou desprezo pela vida humana. Sequestrando o nome do conhecimento científico, propugnavam tarefas como: lavar alimentos, trocar de roupas ao chegar em casa e, é claro, decretar lockdowns e fechar escolas. Inicialmente, dizia-se que uma paralisação de poucos dias ou semanas achataria a curva de contágio, evitaria o colapso do sistema de saúde e reduziria exponencialmente o número de mortos.
Só para citar um ruidoso exemplo de alinhamento com o discurso das paralisações: em 21 de março de 2020, o Governador João Dória anunciou que a partir do dia 24 daquele mês, a economia do maior estado do Brasil, São Paulo, estaria fechada. O bloqueio duraria 15 dias. Uma quinzena depois, com resultados irrelevantes em termos de contenção da pandemia, o chefe do Executivo estadual prorrogou o isolamento por mais duas semanas, intimidando prefeitos contrários e convocando a PM para executar tais ordens. Daí pra frente todos sabem a história. Alegando seguir a ciência, o governador manteve o Estado fechado por meses, inclusive escolas.
Mais um caso: em entrevista concedida em 6 de abril de 2020, quando ainda muito pouco se sabia sobre a doença ou sobre a eficácia das chamadas intervenções não farmacológicas, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, num discurso tipicamente dogmático e que instrumentaliza a ciência como argumento de autoridade, afirmou em entrevista ao portal UOL: “a ciência defendeu o isolamento social para impedir um genocídio de pessoas”. O ministro ainda deu declarações no sentido de que onde há consenso médico, não poderia haver política de Estado em contrário.
Ainda, em meados de 2021, chamadas midiáticas tentavam induzir o leitor a ver as mortes no Brasil como causadas pela ausência de um lockdown nacional.
O problema é que o resultado no plano dos fatos foi diferente do que alegavam. A implementação de pesadas medidas restritivas se mostrou pífia no tocante à contenção da pandemia.
Se pegarmos o exemplo do Estado de São Paulo, não há nada que indique enorme sucesso em termos de resultados. De fato, utilizando dados consolidados do Ministério da Saúde de 9 de janeiro de 2022, a mortalidade por milhão de habitantes no Brasil é de 293,5 por 100 mil habitantes. Em São Paulo, o estado mais rico e, portanto, com mais recursos no país para combater a crise sanitária, a mortalidade é superior, chegando a 336,9 óbitos a cada 100 mil habitantes. A Suécia, sem medidas de bloqueio (apenas com razoáveis políticas de distanciamento e higiene), registra menos da metade dessa taxa de óbitos.
Isso está longe de ser um caso isolado. Cada vez há mais e mais estudos que concluem que o nível de eficácia desse tipo de política para contenção de mortes é baixo, ou pelo menos desproporcional em relação aos seus custos sociais.
É como dissemos no princípio: ao contrário do que alguns parecem acreditar, restringir liberdades básicas, alegar seguir a ciência e receber apoio da mídia, definitivamente, não assegurou o sucesso de ninguém nesta pandemia. E nem assegurará daqui para frente.
E não foi necessariamente por falta de opiniões qualificadas que apresentassem alternativas. Com efeito, cientistas das maiores universidades do mundo, como Harvard, Oxford e Stanford, lançaram um manifesto, conhecido como The Great Barrington Declaration, opondo-se ao uso de bloqueios gerais sobre a população. Ademais, alguns meses após o início da pandemia, já era possível observar que os resultados da política adotada na já mencionada Suécia não apresentava disparidade em relação à média dos países europeus que haviam lançado mão das paralisações. Hoje, a nação escandinava apresenta resultados superiores à média europeia e ocupa apenas a 57ª posição mundial em óbitos por milhão de habitantes, atrás de Brasil, Estados Unidos, Argentina, Alemanha, França, Itália, Bélgica, Espanha e várias outras nações que se valeram de pesados bloqueios.
Contudo, é necessário deixar claro: ainda que as políticas que envolveram forte encolhimento das liberdades públicas tenham fracassado para conter a pandemia, isso não quer dizer que foram indiferentes. Elas resultaram em danos incomensuráveis, deixando para trás um mar de miséria e vulnerabilidade social. Ademais, a mentalidade criada – e absolutamente inédita para a atual geração no Ocidente – foi não só de permissibilidade com a violação de direitos fundamentais, mas também de queda na confiança social.
Com efeito, dados da ONU indicam que 132 milhões de pessoas foram empurradas para fome crônica no mundo. Várias nações se batem contra massivo desemprego e inflação, o que tende a prolongar a crise social. Além disso, os lockdowns dificultaram o tratamento de outros problemas de saúde e o acesso a serviços básicos, causando mortes por outros fatores ou doenças.
No que toca ao fechamento de escolas, a Gazeta do Povo fez reportagem demonstrando os prejuízos para infância, os quais vão desde forte atraso na aprendizagem (com possíveis danos de longo prazo em termos de padrão de vida), incremento da evasão escolar, até impactos na saúde emocional e física, queda na qualidade da alimentação e possível exposição à violência.
Vários professores de prestigiadas universidades fundaram recentemente na Inglaterra a iniciativa Collateral Global, destinada a desvendar todos os prejuízos – inclusive de longo prazo – causados pelas políticas de isolamento radical.
É verdade que por se tratar de um fenômeno novo, seria absolutamente normal que qualquer grupo político ou gestor cometesse erros, em vista da ausência de informações suficientes. A grande questão é que o grupo defensor das medidas restritivas afirmava ter uma solução inquestionavelmente superior a qualquer alternativa.
A ciência desse grupo era algo curioso: ela tinha as repostas prontas de antemão, proibia qualquer questionamento, e todas as suas soluções estavam definitivamente corretas independentemente da colheita de dados supervenientes. Na verdade, essa pseudociência é completamente anticientífica. A verdadeira ciência é, por natureza, questionadora e elaboradora de perguntas; tem respostas apenas provisórias, sempre sujeitas a revisão ante o surgimento de novos dados; e, finalmente, só tem respostas a porteriori.
E eles não só propugnavam medidas fortemente restritivas das liberdades individuais, como buscaram propriamente criminalizar opiniões contrárias. Num primeiro momento, tentando silenciar qualquer divergência, buscaram submeter opiniões divergentes a uma espiral do silêncio, rotulando-as de irresponsabilidade ou mesmo crueldade e desprezo pela vida humana.
Quando isso não bastou, houve uma verdadeira investida com uso de aparato policial. Contrariando a tendência das grandes democracias e sua própria jurisprudência, o STF compactuou com a proibição de manifestações públicas contra o lockdown– mesmo que atendendo a todas as exigências sanitárias, por exemplo, mediante carreatas sem aglomeração –, num evidente ato de censura proibido pela Constituição. Mais tarde, uma CPI que consumiu elevada soma de recursos públicos, bem como trancou a pauta legislativa, passou a perseguir instituições e pessoas que haviam se manifestado contrariamente aos lockdowns, inclusive com quebras de sigilo típicas de investigações criminais. Ou seja, ser contra uma política alvo de contestação no mundo todo, inclusive por grandes especialistas, passou a ser tratado como crime. O STF nada fez para obstar a caça às bruxas.
Perceba que inexiste qualquer indício de que alguma dessas medidas tenha reduzido os danos causados à saúde pública pela pandemia. Contudo, o efeito adverso de deterioração das liberdades é manifesto.
Aliás, o tema da erosão das liberdades individuais foi abordado em interessante artigo publicado pela Oxford University Press e escrito por dois professores de Hong Kong, Stepehn Thomson e Eric C. Ip, no qual se criticou a “abordagem de tudo ou nada inspirada em Wuhan para a contenção viral”. Segundo os autores, ela “estabelece um precedente perigoso para futuras pandemias e desastres, com a resposta global de imitação indicando uma ‘pandemia’ iminente de um tipo diferente, a de autoritarismo. Com um custo gratuito infligido à democracia, às liberdades civis, liberdades fundamentais, à ética na saúde e dignidade humana, o que tem o potencial de desencadear crises humanitárias não menos devastadoras do que o COVID-19 a longo prazo”.
Agora, a nova bandeira dos mesmos grupos é o passaporte vacinal. Novamente, antes que qualquer dado dê sustentação à necessidade de passaportes vacinais ou demonstre que eles terão qualquer benefício proporcional aos custos em termos de liberdades individuais e coesão social, a política é anunciada por seus defensores como inquestionável e “científica”.
Aplica-se aqui exatamente o mesmo teorema: apoio midiático, afirmar que se segue a ciência e adoção de medidas restritivas não vão, por si só, resultar em qualquer benefício. E podem ter perigosos efeitos colaterais.
Em minha opinião, políticas desse tipo que buscam restringir liberdades básicas de circulação ou de exercício do trabalho, em primeiro lugar, violam direitos fundamentais. Frise-se que direitos fundamentais são trunfos contra análises consequencialistas. Logo, são prerrogativas individuais ou coletivas que a Constituição impede de serem violadas, independentemente de qualquer consequência agregada positiva. Portanto, a liberdade de circular e acessar serviços básicos – públicos ou privados – ou de trabalhar não pode estar sujeita a restrições estatais dessa natureza. Em segundo lugar, inexiste qualquer indicativo de que governos que adotarem os passaportes vacinais terão resultados superiores no combate à pandemia. Isso é ainda mais verdadeiro em países com elevadas taxas de adesão voluntária à vacinação, como ocorre no Brasil.
É verdade que a vacinação tem apresentado resultados favoráveis. Os dados apontam para redução da taxa de mortalidade entre vacinados em comparação com quem não recebeu a vacina. Acredito que a população deve ser informada e até estimulada a se vacinar, portanto. Eventual desinformação deve ser objeto de esclarecimento. Contudo, os cidadãos não podem ser constrangidos. Seja pelo precedente perigoso (qual será a próxima restrição que o Estado irá impor para que você possa sair de casa ou ir para o trabalho?), seja pelo ineditismo de várias das tecnologias utilizadas, circunstâncias de sua produção, ou mesmo o receio de efeitos adversos, os quais embora raros configuram motivo legítimo para que o cidadão opte sobre como irá proceder.
Não pretendo aqui pontificar uma resposta definitiva, mas o clima autoritário de silenciamento e dogmatismo que alguns tentam impor sobre o debate acerca do enfrentamento à COVID tem de ser rejeitado.
Enfim, a pandemia do coronavírus envolve um enorme desafio para as sociedades e para os elaboradores de políticas públicas. Em circunstâncias dessa natureza, parece importante que a escolha das soluções sigam alguns critérios típicos do constitucionalismo liberal que infelizmente têm sido esquecidos ou relegados a um papel muito secundário. Sem eles, crises e pânico em geral geram péssimas decisões coletivas.
Pessoalmente, não tenho respostas prontas sobre as questões de saúde pública. Creio que ninguém as têm. Por isso, penso ser natural que tenham havido erros. Contudo, acredito que não erramos apenas em adotar a política X ou Y, mas no modo como se tentou calar o debate e impor políticas escolhidas de antemão.
Em cenários como o presente, políticas de enfrentamento de novas crises têm de ser objeto de escolhas, tentativas, reformas e análise de resultados. E para que isso ocorra o debate não pode ser cerceado. O processo de deliberação pública tem de ter qualidade suficiente de modo a permitir a participação e o aprendizado. E isso tem sido fortemente prejudicado pelo discurso que procura impedir a discussão, alegando que a resposta apresentada como pronta é superior a qualquer alternativa, a qual só poderia decorrer de irresponsabilidade e insensibilidade.
Encerro meu artigo relembrando algumas lições que acredito que devem ser recobradas para que as discussões e deliberações sobre esse tema – ou acerca de crises futuras – sejam maduras e respeitem as liberdades básicas:
1) restrições a direitos fundamentais não podem ser tomadas por decretos executivos – muito menos por decisões judiciais –, mas devem ser objeto de prévia deliberação parlamentar;
2) limitações a direitos fundamentais não podem ser tidas como instituídas em previsões legais lacônicas, que se limitam a prever, por exemplo, isolamento social geral e vacinação compulsória, sem que os requisitos específicos estejam delineados;
3) escolhas concretas (por exemplo se uma vacina específica será obrigatória) não podem ser impostas por via legislativa – muito menos judicial –, uma vez que demandam análise de dados por corpo técnico específico. Assim, tais políticas devem ser previstas em lei, a qual é responsável por determinar os requisitos, os limites das imposições e o órgão técnico do Poder Executivo responsável por aplicá-las no caso concreto;
4) é necessário sempre analisar não apenas os benefícios de uma política pública, mas também os seus custos, entre os quais os riscos de início de um processo de erosão das liberdades;
5) a incerteza científica sobre eventos recentes deve ser reconhecida. Nesse sentido, a professora de Oxford Sunetra Gupta, em artigo recente para a revista Nature, abordou a questão dos modelos matemáticos, que no princípio da pandemia foram adotados como verdadeiras profecias. Ela explica que modelos dessa natureza são excepcionais ferramentas conceituais, mas não devem ser utilizados para fazer previsões fechadas diante de cenários de alta incerteza;
6) por fim, o papel da própria da ciência deve ser reenquadrado. A ciência fornece dados e informações, mas ela não decide. Decisões demandam avaliações – inclusive avaliações e escolhas morais –sobre bens incomensuráveis. A sociedade, particularmente, por mecanismos de política representativa deve recobrar sua responsabilidade por decidir. Como bem esclareceu em editorial o British Medical Journal:
“Os políticos muitas vezes afirmam seguir a ciência, mas isso é uma simplificação enganosa. A ciência raramente é absoluta. Raramente se aplica a todos os ambientes ou a toda a população. Não faz sentido seguir servilmente a ciência ou as evidências. Uma abordagem melhor é que os políticos, os tomadores de decisão nomeados publicamente, sejam informados e guiados pela ciência quando decidirem políticas para seu público. (…) A ciência é um bem público. Não precisa ser seguida cegamente, mas precisa ser considerado de forma justa.”