No dia 17 de dezembro do ano passado, o STF realizou sessão solene de encerramento do ano judiciário. Na ocasião o ministro Luiz Fux, atual presidente do órgão, fez discurso em que mencionou alguns números e iniciativas do Tribunal. Até aí, tudo normal. Contudo, trechos do discurso foram marcados por um ufanismo autolaudatório absolutamente inapropriado, manifestamente político-ideológico e, em parte, bastante afastado da realidade.
Quanto ao aspecto ideológico revelado nas entrelinhas do discurso, o articulista da Gazeta do Povo Paulo Polzonoff Jr. escreveu um texto que serve de pontapé inicial para um debate. Não vou aqui, portanto, deter-me nesse traço do discurso.
Já no tocante ao elemento ufanista e encomiástico, no entanto, creio serem aqui pertinentes duas críticas: em primeiro lugar, ele é despudoradamente impróprio para um Tribunal; e, em segundo lugar, dados e pesquisas de opinião manifestam que ele está descolado da realidade.
No que se refere ao primeiro ponto (impropriedade do tom utilizado), a fala de Fux se parece muito com a de um político cujo final de mandato coincide com o período de campanha para reeleição. Além disso, por meio da escolha de palavras e denúncias o chefe do Judiciário nacional reforça a imagem do sistema de justiça como oposição ao governo, o que amplifica a impressão (já bastante consolidada em vastos setores sociais) de que o STF – lembre-se, nomeado quase que completamente por forças políticas contrárias ao atual chefe do Executivo nacional – é inapto para atuar de modo imparcial diante dos debates que se travam no país.
A fagocitose da retórica judicial pela política inescapavelmente enfraquece a sensação de que o Judiciário atua com independência. De fato, como bem explica o professor da Duke University Georg Vanberg, em seu artigo “Establishing and Maintaining Judicial Independence”: “o ideal de independência judicial expressa a aspiração de que as decisões judiciais não sejam influenciadas de forma inadequada por considerações tidas como normativamente irrelevantes”. Logo, a percepção de que o Judiciário tende a atuar por simpatias ou antipatias, ou adesão ou aversão ideológica – considerações irrelevantes do ponto de vista jurídico – prejudica a confiança em sua independência. Saliente-se que como bem ressalta o mesmo professor, a independência judicial costuma ser lida em grande medida como uma independência em relação a interesses e grupos políticos, seja do governo ou da oposição. O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, tem passado fortes impressões parcialidade e creio que a retórica de Fux reforça mais uma vez essa posição.
Em relação ao descolamento com a realidade de parte do discurso, gostaria de abordar três afirmações do Presidente do STF: que “os cidadãos brasileiros (…) permaneceram ao lado do STF” nos embates institucionais ocorridos durante o ano passado; que o Tribunal seria hoje um exemplo de atuação conforme a legalidade; e, por fim, que “democracia venceu” no país.
Basicamente, minha pretensão é demonstrar com dados que essas alegações falecem de respaldo suficiente no mundo dos fatos.
Primeiramente, não há nada que indique que os “cidadãos brasileiros” de modo geral estejam ao lado do STF. Aliás, o ideal seria que não houvesse a percepção de que o STF possui um lado. Mas isso já parece inviável de ser alcançado no curto prazo. Então, se há um lado do STF, não parece haver robusta adesão popular a ele. De fato, segundo pesquisa DataFolha publicada em dezembro de 2021 (portanto, próxima ao discurso de Fux), apenas 23% dos entrevistados julgavam a atuação do STF boa ou ótima, enquanto 34% a consideram ruim ou péssima.
Fica aqui uma pergunta: quando Fux diz que "os cidadãos brasileiros" ficaram ao lado do STF, estaria insinuando que as pessoas nestes 34%, ou seja, mais de um terço da população e um contingente superior aos 23% que avaliam o tribunal de forma positiva, estariam desqualificadas como cidadãos brasileiros? Voltarei a isso em outros textos. Por ora, adianto apenas que é inadequado e, no limite, até autoritário esse tipo de discurso que tenta anular a diversidade de opiniões e qualificar – ainda que de modo implícito – apenas parte delas como constituidora dos "brasileiros" ou do povo ou algo desse tipo, passando a impressão de que os que adotam outro ponto de vista seriam outsiders.
Continuando, no exame dos dados, aquela não é a única pesquisa que demonstra a percepção negativa da sociedade em relação ao sistema de justiça. Outro levantamento do DataFolha, de setembro do ano passado, revelou que 63% dos entrevistados acreditavam que o Poder Judiciário representava um risco à democracia. Embora o percentual estivesse abaixo dos demais poderes, ainda assim figurava em patamares extremamente elevados para órgãos judiciais. E dada a proeminência da exposição do STF nos noticiários, é bastante plausível concluir que a Corte era o órgão que a maioria dos entrevistados tinham em vista – ou ao menos o que mais levavam em conta – quando se manifestavam de tal forma sobre o Poder Judiciário.
Não se pode esquecer ainda que o STF foi alvo de multitudinárias manifestações populares no último 7 de setembro, cuja pauta inicial era a defesa do Estado de Direito contra abusos e perseguições promovidas pela Corte. Não houve qualquer manifestação minimamente comparável em defesa do Tribunal. As opiniões no debate público favoráveis ao órgão têm provindo, fundamentalmente, de determinados setores da imprensa simpáticos aos grupos de oposição ao Governo, sem que se perceba ressonância na população em geral. Saliente-se que o perfil dos mencionados órgãos de imprensa não permite que se exclua a possibilidade de que tentem blindar o STF por vê-lo como uma esperança para prática de lawfare contra o Presidente.
Ainda outros fatos relevantes: os ministros do STF têm sido alvo de constante pedidos de impeachment. Um deles, contra o Ministro Alexandre de Moraes, em virtude de ilegalidades cometidas na direção de investigações, revelou forte apoio, recebendo mais de dois milhões de assinaturas.
Frise-se que o STF, embora pareça acreditar que vive um momento de força, jamais foi tão fraco. A percepção de que o tribunal pratica ilegalidades e atua sem fundamentos jurídicos leva à perda de autoridade, não só do Tribunal mas do Poder Judiciário como um todo. Com efeito, a autoridade moral do Poder Judiciário depende da percepção de que o órgão atua com base no direito democraticamente erigido, aplicando-o de modo técnico e imparcial. A visão de que o STF atua com motivações mescladas com a política-partidária, por outro lado, deteriora a imagem e a autoridade da Corte e do Judiciário.
Uma prova manifesta desse fenômeno é número de decisões descumpridas no país sem qualquer consequência: o Senado já se recusou a cumprir decisão que afastava Renan Calheiros da presidência daquela Casa legislativa, obrigando o STF a recuar; a Câmara ignorou ordem para processar impeachment do Presidente Michel Temer; recentemente, o Presidente do Senado Rodrigo Pacheco descumpriu expressamente ordem judicial para afastar Calheiros da relatoria da CPI da Pandemia.Tudo isso mostra um pesado desgaste da autoridade judicial, a qual já é insuficiente para por si só determinar o comportamento de agentes sociais poderosos. Isso indica que nos casos polêmicos em que as decisões do STF são cumpridas (por exemplo, nas ordens emanadas no Inquérito do Fim do Mundo), isso se dá muito mais pela existência de interesses políticos em favor das decisões, do que de sua autoridade jurídica.
A alegação da Fux de que o STF tem atuado para preservar a legalidade e outros valores básicos do constitucionalismo também já não parece tão trivial.
São inúmeras as críticas no sentido de que o Tribunal tem praticado ilegalidades, censura e perseguições políticas. Com efeito, o Inquérito do Fim do Mundo, presidido pelo Ministro Alexandre de Moraes e que foi validado pelo Plenário da Corte, nítida e manifestamente viola os princípios mais basilares do devido processo legal. Inclusive, a investigação foi alvo de crítica devastadora por parte de juristas de primeira linha no livro “Inquérito do Fim do Mundo: o apagar das luzes do direito brasileiro”.
Recentemente, uma ordem de prisão contra o jornalista conservador Allan dos Santos foi descumprida pela Interpol, instituição da mais alta respeitabilidade e com longo e farto histórico de cooperação com a Justiça brasileira. Segundo levantamento da Revista Veja, a secretaria geral da Interpol, que tem sede em Lyon na França, respondendo a perguntas daquele órgão de imprensa, informou que “toda solicitação de notificação da lista vermelha é verificada por uma força-tarefa especializada, que revisa legalmente o pedido de inclusão do cidadão na lista de procurados e se cumpre as regras da Interpol. Basicamente, esta força-tarefa analisa se os pedidos têm algum caráter de perseguição política, racial ou religiosa. ‘Esta revisão leva em consideração as informações disponíveis no momento da publicação, e um Edital só é publicado se estiver em conformidade com a Constituição da Organização, segundo a qual é estritamente proibido à Organização realizar qualquer intervenção ou atividade de caráter político, militar, religioso ou caráter racial”.
Ou seja, ao que tudo indica, aquela instituição internacional constatou que a medida contra o jornalista configurava perseguição política. Saliente-se que reações desse tipo por parte da Interpol ocorreram, por exemplo, em face de ordens de prisão de tiranias como a da Venezuela e da Bolívia, perseguindo desafetos políticos. Isso demonstra o tamanho do vexame que vem sendo protagonizado pelo STF no episódio.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal coleciona denúncias perante o sistema da Corte Interamericana da Direitos Humanos e a Organização de Estados Americanos, por violações a direitos humanos. Essas denúncias me parecem muito bem fundamentadas. Frise-se que historicamente, no Brasil, o Judiciário não costumava ser indicado como violador ativo de direitos humanos. Embora, por vezes na história, os tribunais tenham se omitido – por vezes, em razão da absoluta ausência de capacidade para fazer cessar abusos –, essa é a primeira vez em que a cúpula do Judiciário é apontada como responsável direta e ativa por esse tipo de violação.
Ainda, no caso da prisão do deputado federal Daniel Silveira, o STF sofreu críticas inclusive de juristas com perfil altamente contrário ao do parlamentar. As alegações dos juristas, que mostram o rosário de ilegalidades na atuação do Supremo, são irrefutáveis, a meu ver.
Por fim, e em parte como consequência disso, a alegação de Fux de que a “democracia venceu” também falece de suporte fático. Apesar de os níveis de confiança na democracia estarem altos no Brasil – aliás, o que vem ocorrendo desde 2018 – fator muito positivo, vários outros indicadores importantes para o suporte de um regime democrático saudável revelam forte crise: a confiança nas instituições e nos três Poderes segue marcha decadente, assim como o nível de confiança social. O STF, sem dúvida alguma, possui parcela de responsabilidade nesses desgastes.
Aliás, um elemento fundamental para qualquer democracia saudável, a liberdade de expressão, tem sofrido pesados reveses no Supremo, como demonstrou a Gazeta do Povo em excelente matéria publicada no início deste ano.
Encerro, pois, alertando que precisamos sim de um Judiciário forte e independente. Contudo, é também necessário alertar que o Judiciário não é forte quando faz o que quer. Judiciário forte não é Judiciário voluntarioso ou autoritário. Nesse caso, quem se torna forte é o grupo ideológico que domina o Judiciário, não o Judiciário em si.
A verdadeira força do Judiciário é a força moral do princípio da legalidade. Judiciário forte e independente, portanto, o qual se revela em pilar relevante para manutenção de uma democracia saudável e de um constitucionalismo próspero, é construído pela atuação de acordo com o direito, pelo perfil técnico, sóbrio e humanista. A partir daí é edificada a sua força institucional e autoridade ética. No entanto, como todo processo, a construção desse perfil começa pela percepção de que ele ainda não foi alcançado, ao menos não em suficiente medida. Por isso, discursos ufanistas, os quais buscam mascarar a situação real e os desafios presentes, parecem-me – além de inapropriados – prejudiciais para instituições técnicas e independentes, principalmente quando atravessam períodos de crise.
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