Em nosso artigo da semana passada, vimos que o tema do aborto nos Estados Unidos está definido, segundo o prisma do direito constitucional, basicamente por dois precedentes da Suprema Corte: caso Roe v. Wade, de 1973, e caso Planned Parenthood v. Casey, de 1991.
Naquelas decisões, os juízes grosso modo inventaram um direito ao aborto e fixaram a seguinte tese: até a chamada viabilidade, ou seja, até o momento em que passa a ser viável a vida do feto fora do útero, mesmo que com auxílio de aparelhos, nenhum Estado ou o governo federal pode impor um ônus indevido a quem deseja abortar.
Como se pode perceber, os standards fixados pelo Tribunal são altamente problemáticos.
Em primeiro lugar, quando ocorre a viabilidade? Tem-se entendido que ela se configura a partir da 24ª semana de gestação (ou seja, após o segundo trimestre), mas o próprio voto vencedor no caso Casey reconheceu que esse parâmetro não é absoluto, uma vez que o conhecimento científico e o desenvolvimento da tecnologia na medicina poderiam antecipá-lo.
Em segundo lugar, o que é ônus indevido? Ele foi definido pela maioria da Corte como um "obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade". Mas isso não esclarece muita coisa, não é mesmo?
Além da imprecisão dos parâmetros, ocorre que desde 2018, com a nomeação do jurista conservador e pró-vida Brett Kavanaugh no lugar de Anthony Kennedy (o qual havia votado favoravelmente à manutenção do “direito ao aborto” em Casey), os grupos pró-vida passaram a ficar muito otimistas e convencidos de que se formara uma maioria de 5, dentre os 9 juízes da Suprema Corte, para derrubar o moralmente infame e juridicamente infundado precedente do caso Roe mantido no julgamento de Casey.
Essa percepção se fortaleceu ainda mais quando a juíza Amy Coney Barret, também indicada por Trump, substituiu Ruth Ginsburg, juíza de extrema-esquerda e com voto bastante seguro em favor do aborto em todos os casos que chegavam à Suprema Corte.
O resultado dessa percepção foi que vários estados americanos passaram a criar leis que restringiam o aborto antes da 24ª semana, buscando fazer com que algum desses casos chegasse à Suprema Corte e obrigasse a nova composição a reexaminar aqueles precedentes.
Isso se consumou em meados de 2021, quando o Tribunal Supremo dos Estados Unidos aceitou conhecer do caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. Vejamos do que ele trata.
O que aconteceu no Caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization?
Seguindo a tendência de Estados governados por Republicanos pró-vida, o Estado do Mississipi aprovou, em março de 2018, lei que proíbe a prática do aborto a partir da 15ª semana de gestação, salvo em casos de emergência médica ou fetos com problemas gravíssimos.
Após sancionar a lei, o Governador Phil Bryant publicou em sua conta no Twitter: “Estou comprometido em fazer do Mississipi o lugar mais seguro da América para crianças ainda não nascidas, e este projeto irá nos auxiliar a atingir essa meta”.
A única clínica de aborto atualmente em funcionamento no Mississipi, a Jackson Women’s Health Organization, e um de seus médicos ajuizaram ação perante a Justiça Federal americana contra a legislação. O processo foi proposto contra o Secretário de Saúde do Mississipi, o Dr. Thomas E. Dobbs.
O juiz da causa, aplicando o precedente do caso Casey, e alegando que o Estado do Mississipi não fornecera evidências suficientes de que o feto já seria viável a partir da 15ª semana, derrubou a legislação. Após a apresentação de recurso perante a Corte de Apelações do 5º Circuito da Justiça Federal, a decisão foi mantida.
O Secretário de Estado do Mississipi, Dr. Thomas E. Dobbs, entre outras partes, peticionou perante a Suprema Corte contra a clínica Jackson Women’s Health Organization e o respectivo médico que havia litigado contra a legislação. Daí o nome do caso: Dobbs v. Jackson, o qual – se tudo der certo – muito provavelmente estará entre os mais citados do planeta pelas próximas décadas.
Qual a alegação do Estado do Mississipi?
Inicialmente, o Estado do Mississipi apresentou três questões à Suprema Corte:
- 1. Se todas as proibições de abortos eletivos pré-viabilidade são inconstitucionais.
- 2. Se a validade de uma lei que restringe o aborto antes da viabilidade para proteger a saúde da mulher, a dignidade dos nascituros e a integridade da profissão médica e da sociedade, deve ser analisada sob o padrão de ‘ônus indevido’ de Casey ou o equilíbrio de benefícios e encargos de Hellerstedt.
- 3. Se os provedores de aborto têm legitimidade como terceiros para requerer a invalidação de uma lei que protege a saúde das mulheres dos perigos dos abortos tardios.
A petição primeiramente apresentada, nitidamente, buscava convencer a Suprema Corte a adotar um caminho conciliatório, mantendo os precedentes dos casos citados (p. 18), mas admitindo a constitucionalidade da nova lei, por meio das brechas deixadas.
Isso poderia ser feito de várias maneiras: reconhecendo que não há um ônus indevido na lei do Mississipi; ou superando o critério da viabilidade, o qual já foi criticado em votos anteriores na própria Corte (p. ex.: caso Gonzales); ou reconhecendo que o feto já seria viável na 15º semana de gestação e, portanto, apenas o marco da 24ª semana deveria ser abandonado. Ainda, como se percebe na questão 2 acima, o peticionante mencionava o caso Hellerstedt, onde a Corte aparentemente abandonou o parâmetro do “ônus indevido” e abraçou a ideia de que se deveria verificar se os benefícios da lei que proíbe o aborto superam as restrições impostas. Assim, mesmo instituindo uma proibição criminal para o aborto, a lei seria constitucional porque seu benefício - por proteger a vida intrauterina, prevenir os riscos de um aborto após a 15ª semana de gestação para a própria mulher, e salvaguardar a profissão médica das técnicas cruéis utilizadas para abortos nesse período - superariam os seus custos. Enfim, haveria vários caminhos e não é impossível - ainda que improvável - que a Suprema Corte acabe por trilhar algum deles.
Em artigo de opinião para o jornal Wall Street Journal, de 14 de junho de 2021, a procuradora-geral do Mississipi, responsável pela causa, voltou a defender uma posição dúbia quanto à superação dos precedentes, afirmando que a lei do Mississipi deveria ser mantida com base no direito democrático da população do Estado de escolher sobre suas leis acerca do tema e no fato de que o “direito ao aborto” reconhecido pela Suprema Corte não seria absoluto.
A reação dos grupos pró-vida à primeira petição do Estado do Mississipi
A petição apresentada foi vista pelos grupos pró-vida como altamente covarde, ao compactuar com a manutenção dos precedentes dos casos Roe e Casey, em que a Corte afirmou que haveria um direito constitucional à prática de abortos eletivos.
De fato, há quase 5 décadas os grupos que lutam por assegurar os direitos humanos dos fetos procuram superar a jurisprudência construída naqueles julgados. Isso esbarra em várias dificuldades, a começar que a Suprema Corte não ouve casos sobre aborto o tempo todo. Não é algo trivial fazer esse tipo de demanda chegar na mais alta instância do Judiciário. Portanto, deixar a ocasião passar e limitar-se a modificar os parâmetros do “direito ao aborto” não seria – nem de longe – o suficiente. O centro do combate, assim, estava na própria revogação do precedente fixado no caso Roe.
Nesse sentido, o professor da Universidade de Notre Dame Sherif Girgis escreveu artigo defendendo que o caminho sugerido pelos recorrentes era inconsistente. Para ele, se Roe e Casey fossem mantidos, a lei do Mississipi teria de ser derrubada, salvo se a Suprema Corte efetivamente legislasse, criando um nova regra (por exemplo, um novo marco temporal diverso da 24ª, mas igualmente desprovido de fundamento constitucional, uma vez que a Constituição nada diz a respeito). Contudo, segundo Girgis, “tirar uma regra da cartola” seria absolutamente inconsistente com o que ao menos 5 juízes da Suprema Corte (Alito, Clarence Thomas, Gorsuch, Kavanaugh e Barret) defenderam durante toda a sua vida. Além disso, o artigo argumenta que caso os precedentes fossem novamente reafirmados pela Suprema Corte, isso tornaria ainda mais difícil – e talvez inviável – sua superação no futuro, o que seria trágico para os direitos humanos e para o movimento pró-vida.
Convencido do acerto dessas razões, o professor de Princeton Robert P. George escreveu artigo intitulado Roe Must Go (Roe deve ir embora), afirmando que o Mississipi não poderia deixar de requerer claramente a superação dos precedentes. Escreveu ele em seu artigo:
- "Lynn Fitch, a procuradora-geral do Mississippi, enfrenta a decisão judicial mais impactante dos últimos 50 anos: pedir à Suprema Corte para reverter Roe vs. Wade, o caso de 1973 que criou o direito ao aborto eletivo, derrubando proibições de aborto que já existiam há muito tempo nos estados."
- "Ela deve fazer exatamente isso. Roe deve ir embora. É moralmente e, o que é mais relevante para o Tribunal, constitucionalmente indefensável – e tem sido desde o momento em que foi proferido". (…)
- "Além disso, é claro, a procuradora-geral professa ser uma defensora da causa pró-vida, e Roe tem sido o maior obstáculo para o avanço dessa causa".
Como veremos, ao final, o Estado do Mississipi atendeu a tais clamores.
A petição final do Estado do Mississipi
A Suprema Corte americana aceitou conhecer apenas uma das questões levantadas pelo Mississipi:
“Se todas as proibições ao aborto antes da viabilidade são inconstitucionais”.
Seguindo a trilha dos juristas e grupos pró-vida, a petição final apresentada pelos requerentes, em 22 de julho de 2021, não deixou mais dúvidas: o pedido é expresso no sentido de superar os precedentes dos casos Roe e Casey, os quais são taxativamente acusados de serem equivocados e desprovidos de fundamento constitucional.
Dizem os autores no princípio de sua petição:
- “Em uma leitura adequada do direito constitucional, a resposta à pergunta apresentada neste caso é clara e o caminho para essa resposta é direto. De acordo com a Constituição, um Estado pode proibir abortos eletivos antes da viabilidade? Sim. Por quê? Porque nada no texto constitucional, na sua estrutura, história ou tradição apoia que haja um direito ao aborto.”
Eles afirmam que só há dificuldade em responder ao questionamento por causa dos precedentes fixados em Roe e Casey:
- “Roe e Casey estão, portanto, em desacordo com a resposta direta e constitucionalmente fundamentada à questão apresentada. Assim, a questão passa a ser se este Tribunal deve superar essas decisões. Sim, deve. As razões para reverter Roe e Casey são esmagadoras.
- "Roe e Casey estão notoriamente errados. A conclusão de que o aborto é um direito constitucional não tem base em texto, estrutura, história ou tradição.”
Eles ainda afirmam, corretamente, que o suposto “direito ao aborto” é diferente de qualquer direito outrora criado jurisprudencialmente, pois “nenhum outro direito envolve, como o aborto, 'o término proposital de uma vida'”.
Os recorrentes ainda mencionam que o critério de ônus indevido é totalmente inseguro e inapropriado e que “Roe e Casey infligiram danos significativos". Esses casos “desrespeitam (...) princípios de autogovernança democrática”, ao “colocar uma das questões políticas mais importantes e contestadas de nossa tempo em grande parte 'fora da arena do debate público e da ação legislativa'. Longe de trazer paz à controvérsia sobre o aborto, Roe e Casey pioraram as coisas” e “produziram uma jurisprudência que está em pé de guerra com a demanda de que a Suprema Corte aja baseada em princípios neutros”.
Em tom de desabafo, arrematam: “Roe e Casey são decisões sem princípios que prejudicaram o processo democrático, envenenaram nosso discurso nacional, atormentaram a lei – e, ao fazê-lo, prejudicaram a Suprema Corte.”
Os procuradores do caso ainda demonstram como a evolução técnica e científica superou as razões de Roe e Casey.
O Estado alega que ele possui, fundamentalmente, três razões de ordem constitucional para proibir o aborto:
- 1) defender a vida humana intrauterina;
- 2) proteger as mulheres dos riscos relacionados ao aborto; e,
- 3) proteger a profissão médica.
Quanto ao primeiro ponto, a própria Suprema Corte já admitiu que cada Estado “tem interesse legítimo em proteger a vida dos ainda não nascidos” (p. 18). E acerca da importância de protegê-la já na 15ª semana, os advogados do Mississipi mencionam:
- "Com 5-6 semanas de gestação, 'o coração de um ser humano não nascido começa a bater'. Com cerca de 8 semanas de gestação, ele ou ela 'começa a se mover no útero'. Com 9 semanas, 'todas as funções fisiológicas básicas estão presentes', assim como dentes, olhos e genitália externa. Com 10 semanas, 'órgãos vitais começam a funcionar' e 'cabelo, unhas das mãos e dos pés... começam a se formar'. Com 11 semanas, o diafragma de um ser humano não nascido está se desenvolvendo, 'e ele ou ela pode até soluçar'. Com 12 semanas de gestação, ele ou ela 'pode abrir e fechar... dedos', 'começa a fazer movimentos de sucção' e 'sente a estimulação do mundo fora do útero'. Ele ou ela 'assumiu a forma humana em todos os aspectos relevantes'."
No tocante ao legítimo interesse do Estado em proteger a saúde materna, os procuradores do Mississipi registraram os seguintes fatos:
- "Abortos por dilatação e evacuação apresentam risco de 'complicações médicas'. Estes incluem: 'infecção pélvica; abortos incompletos (tecido retido); coágulos de sangue; sangramento intenso ou hemorragia; laceração, rasgo ou outra lesão no colo do útero; punção, laceração, rasgo ou outra lesão no útero; lesão no intestino ou bexiga; depressão; ansiedade; abuso de substâncias; e outros problemas emocionais ou psicológicos'. O aborto também traz 'riscos físicos e psicológicos significativos' para as mulheres que 'aumentam com a idade gestacional'. Após 8 semanas de gestação, os riscos do aborto 'aumentam exponencialmente'. Em abortos realizados após 15 semanas de gestação, 'há um risco maior de exigir uma histerectomia, outra cirurgia reparadora ou transfusão de sangue'."
Por fim, em relação à proteção da profissão médica:
- “A maioria dos procedimentos de aborto realizados após 15 semanas de gestação, descobriu o Legislativo, são procedimentos de dilatação e evacuação que 'envolvem o uso de instrumentos cirúrgicos para esmagar e rasgar o feto antes de remover os pedaços da criança morta do o útero.' O Legislativo considerou que esta 'é uma prática bárbara' quando realizada por razões não terapêuticas e é 'degradante para a profissão médica'.”
Todas essas razões nos parecem absolutamente acertadas e persuasivas do ponto de vista da proteção dos direitos humanos, de modo que concordamos com os autores do recurso quando concluem:
- “A anulação de Roe e Casey torna a resolução deste caso simples. A lei do Mississippi aqui proíbe abortos após 15 semanas de gestação, com exceção de emergência médica ou anormalidade fetal grave. Essa lei promove racionalmente interesses válidos em proteger a vida nascituro, a saúde da mulher e a integridade da profissão médica. É, portanto, constitucional.”
Cabe encerrar registrando que as perspectivas são absolutamente alvissareiras para causa da vida e dos direitos humanos. O professor Robert P. George de Princeton, acima mencionado, o qual conhece profundamente a linha de pensamento constitucional de vários dos juízes que atualmente atuam na Suprema Corte escreveu, em outubro do ano passado, um artigo com título profético: Roe Will Go.
No artigo, ele registrou o seguinte palpite, com o qual encerramos nosso texto fazendo votos de que esteja certo:
"Deixe-me oferecer uma previsão, livre de qualquer proteção para salvar a face: no próximo ano, a Suprema Corte considerará que não há direito constitucional a abortos eletivos. Em Dobbs v. Jackson Women's Health Organization, um caso pendente perante o tribunal, ela devolverá a questão aos estados pela primeira vez em quarenta e nove anos. Ela o fará explicitamente, chamando pelo nome e revertendo na íntegra os dois principais casos que confeccionaram e então consolidaram um direito constitucional ao aborto eletivo: Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). E a votação será de seis a três."
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