Um dos fatos que viabilizou o golpe de Getúlio Vargas em 1930 foi a falta de confiança no sistema eleitoral. Ele sofria particularmente de duas espécies de ardil: por um lado, havia fraudes em proporções significativas e inexistia sigilo, num sistema que foi chamado de eleição bico de pena; por outro, quem realizava a apuração dos votos e a diplomação dos eleitos era o próprio Poder Legislativo, no caso da União, por meio de um órgão do Congresso chamado “Comissão de Verificação dos Poderes”. O processo estava a tal ponto corrompido que ensejava amplo controle sobre o resultado eleitoral, visando a barrar políticos indesejados. Era a chamada “degola”. Segundo Raymundo Faoro, em seu clássico “Os Donos do Poder”, o fracassado sistema brasileiro funcionava à época do seguinte modo:
“na base, o bico-de-pena substituiu a eleição; no alto, a degola ocupou o lugar das apurações”.
Cerca de um século depois, eis que vemos ressurgir uma espécie de sucedâneo da “degola”: a cassação por inovação jurisprudencial post factum. Trata-se de fenômeno gravíssimo, que aplicado de forma seletiva e parcial pode corromper completamente o que resta da democracia brasileira e anular a soberania do voto e a representação popular. A real dimensão do problema ainda não foi devidamente percebida no Brasil.
É de se lembrar que vários países latino-americanos que tiveram trajetória política recente semelhante à do Brasil viram suas democracias dilaceradas, entre outras razões, pela prática de Tribunais ativistas e cooptados de manipular o direito para tornar inviável o exercício de direitos políticos de grupos de oposição ao chavismo.
Tendo isso em mente, vejamos o caso: no último dia 7 deste mês de junho, a Segunda Turma do STF, por maioria apertada de 3 votos a 2, confirmou decisão do TSE que cassou o Deputado Estadual do Paraná Fernando Francischini. A decisão alegou que ele teria cometido “uso indevido dos meios de comunicação social” e “abuso de poder político e de autoridade”, em virtude de ter divulgado em seu perfil pessoal no Facebook uma live em que afirmou que duas urnas haviam sido recolhidas por problemas, o que ele atribuiu a adulteração ou fraude.
Embora seja relevante combater notícias falsas que possam contaminar a opinião do eleitor, a decisão padece de vários problemas. Além das falhas jurídicas e de parcialidade dos membros do órgãos julgador, o julgamento me parece carecer de baixa legitimidade, uma vez que o padrão recorrente de conduta da cúpula da Justiça Eleitoral e do STF faz com que muitas pessoas fiquem convencidas de que esses tribunais não estão combatendo notícias fraudulentas de modo imparcial, mas apenas utilizando esse chavão para praticar lawfare contra grupos políticos específicos.
Os indícios nesse sentido são vários. Vejamos alguns. Primeiramente, durante as últimas eleições vários grupos localizados no polo oposto do espectro político em relação ao deputado Francischini utilizaram notícias falsas para contaminar a vontade do eleitor. Um dos fatos mais graves e amplamente divulgado foi a automutilação com uma suástica por uma militante de esquerda, buscando atribuir a conduta a apoiadores da candidatura do atual Presidente da República. O fato foi devidamente solucionado pela polícia após investigações, em que com base em laudo pericial, a autoridade investigativa concluiu que não houve ataque, mas automutilação.
Fico imaginando o nível de fanatismo político patológico e doentio de que uma pessoa tem de estar tomada para praticar - e divulgar! - um ato como esse.
De todo modo, o Partido dos Trabalhadores chegou a utilizar o factoide em uma de suas propagandas televisivas e candidatos de esquerda repercutiram tais fatos em suas redes sociais. Alguns deles foram eleitos e mesmo após o esclarecimento do caso não retiram a postagem da linha de notícias em seus perfis. O episódio provavelmente tem um potencial para contaminar fraudulentamente a vontade do eleitor muito superior à alegação de que alguma urna esteja fraudada. Aliás, registre-se de passagem que a alegação de fraude me parece ter efeito nulo sobre o resultado das eleições; trataremos disso em outra oportunidade. O fato é que o uso de suásticas busca atribuir aos opositores a pecha de pessoas ligadas a movimentos extremistas e violentos, o que repugna à maior parte dos eleitores.
Outros grupos de esquerda divulgaram ainda que o gravíssimo atentado contra a vida do então candidato Jair Bolsonaro seria uma armação. A veiculação da tese fantasiosa, ocorrida algumas semanas antes das eleições e que buscava construir a imagem do opositor como a de alguém que “joga baixo” e capaz de forjar um ataque, foi alvo inclusive de reportagem do Jornal Folha de São Paulo.
Mesmo diante de práticas gravíssimas como essas, a justiça eleitoral não puniu nenhum parlamentar à esquerda do espectro político por difusão de fake news. Esses fatos mostram, no entanto, que não foi porque isso não tenha ocorrido, mas simplesmente porque se optou por não puni-los, o que permanece sem explicação diante da severidade da sanção aplicada a Francischini, por conduta cujas circunstâncias evidenciam baixíssima capacidade de viciar mesmo que minimamente o pleito.
Ademais, vários dos ministros envolvidos no julgamento já protagonizaram episódios que podem ser descritos como de divulgação de notícias falsas visando a impactar a opinião dos cidadãos. Cite-se o exemplo de dois que participaram do julgamento: Luís Roberto Barroso, que presidia o TSE ao tempo da decisão naquela Corte; e, Luiz Edson Fachin, que votou no TSE e depois votou no STF novamente (uma sistemática esdrúxula e bizarra que vem sendo admitida pela jurisprudência, e na qual o mesmo juiz julga o recurso no STF contra a decisão em que ele próprio participou no TSE).
O Ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, alegou em entrevista televisiva que o presidente de extrema-esquerda, socialista e aliado dos partidos e grupos esquerdistas brasileiros Nicolás Maduro seria um conservador de direita. O mesmo ministro fez várias alegações graves e sem provas recentemente: que o Exército estaria trabalhando para deslegitimar as eleições; que o Presidente teria determinado um rasante de aviões caça para quebrar vidraças do prédio do STF e que teria, ainda, quebrado o sigilo de um inquérito sobre invasão aos sistemas do TSE. Contudo, após investigações técnicas e imparciais, essa alegação acabou desmentida pelas autoridades policiais envolvidas no caso, que esclareceram que o inquérito não estava sob sigilo.
O Ministro Luís Edson Fachin, por sua vez, protagonizou o episódio que reputo mais grave nesse sentido, o qual foi divulgado pela Band à época. No dia em que a polícia do Rio de Janeiro, amparada em longa investigação e trabalho de inteligência, deflagrou operação de combate a organizações criminosas violentas na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro, tragicamente, em virtude da reação violenta dos criminosos que resultou inclusive na morte de um agente de segurança, a polícia reagiu em legítima defesa o que resultou na morte de 28 criminosos. Houve a abertura de investigações para examinar eventual excesso. O ministro, no entanto, baseado em vídeo falso que teria recebido de grupos da UFRJ, requereu investigações ao Ministério Público. As imagens, no entanto, mostravam a execução de uma pessoa praticada por policial meses antes e em outro Estado da Federação, não tendo qualquer ligação com o fato. Mesmo após advertido da inautenticidade do vídeo, o ministro não retificou sua comunicação às autoridades.
É difícil diante desse quadro ver a cassação do deputado mais votado do Paraná como um autêntico combate a notícias falsas.
Frise-se ainda que a decisão decorreu de um forçado enquadramento legal e da mudança da jurisprudência após o fato, o que viola princípios basilares do Estado de Direito.
Como vimos, a condenação enquadrou a conduta como “uso indevido dos meios de comunicação social” e “abuso de poder político e de autoridade”. Todavia, nada disso era possível com base no direito tal como sempre foi lido até a época do pleito.
O “abuso de poder político e de autoridade”, basicamente, proíbe apenas o uso da máquina pública para fins de campanha por servidores e pessoas que já ocupam cargos eletivos ao tempo do pleito. No caso de Francischini, ele utilizou suas redes pessoais. O fato de ter mencionado ser deputado federal durante a transmissão é irrelevante e não configura qualquer abuso.
Quanto ao uso indevido dos “meios de comunicação”, sempre se entendeu que ele não alcançava as plataformas das redes sociais, o que só foi alterado em tese adotada em julgado do ano de 2021 (item 21 da Ementa do julgamento das AIJEs 0601968-80.2018.6.00.0000 e 0601771-28.2018.6.00.0000) e, portanto, posterior à eleição. Logo, esse entendimento não deveria ser aplicado àquele pleito em matéria de direito sancionador.
A inaplicabilidade do dispositivo às redes sociais era justificada. A razão era que esse tipo de regulamentação buscava impedir que meios de comunicação de massa como televisão, rádio e imprensa de grande circulação, os quais são sempre oligopolizados em virtude de seu alto custo, pudessem favorecer demasiadamente certos candidatos. Isso poderia favorecer excessivamente grupos com maior poder financeiro, impedindo o acesso a cargos públicos com um mínimo de equidade.
O efeito das redes sociais, no entanto, é exatamente o contrário. Elas pluralizam os meios de comunicação da opinião. E elas não alcançam as pessoas automaticamente. É necessário que o perfil seja seguido ou que uma transmissão seja ativamente acessada. Se na TV e na Rádio a pessoa recebe o que entregam para ela, havendo portanto maior poder da rede de transmissão; na internet o usuário tem um poder muito superior sobre o que lhe é entregue. Daí por que a transposição daquela regra eleitoral não ocorre de modo automático para as mídias sociais.
Frise-se que, além disso, como bem pontuaram os votos vencidos tanto no TSE (proferido pelo professor da USP e jurista extremamente técnico, o Min. Carlos Horbach) quanto no STF (Ministros Nunes Marques e André Mendonça), a transmissão feita por Francischini não teve efeito digno de nota sobre as eleições, uma vez que veiculada cerca de 20 minutos antes do fechamento das urnas. Ou seja, inexiste qualquer indício de que um número significativo de eleitores do Paraná que não eram eleitores decididos do Deputado e que ainda não houvessem votado em hora tão adiantada tenham assistido ao vídeo e se inclinado só então a escolhê-lo como representante para o parlamento estadual.
Na verdade, essa hipótese é nitidamente fantasiosa e forçada. Salvo prova cabal em contrário, o que se pode presumir pelo próprio modo de funcionamento das redes sociais é que os espectadores da live já eram simpatizantes do candidato, uma vez que o acesso ao conteúdo nas redes depende de escolha ativa dos usuários e as regras de algoritmo entregam o conteúdo a públicos com preferências alinhadas. Ademais, o mais provável é tenha sido insignificante (ou mesmo nulo) o quantitativo de pessoas (com título eleitoral no Paraná) que ainda não havia votado naquela altura e decidiu fazê-lo após assistir ao vídeo.
O julgado ainda apresenta o problema da parcialidade dos julgadores que votaram pela cassação, uma vez que número relevante deles têm demonstrado ostensiva hostilidade a políticos que sejam identificados como estando à direita do espectro político. Porém, não vou me deter nesse ponto. Escrevi post que abordou esse tema de modo periférico, e pretendo voltar a ele em textos futuros.
Por que esse julgamento é tão grave
Tudo o que escrevi acima foi para chegar no próximo ponto, o qual me parece brutalmente preocupante. Mas para compreendê-lo é necessário esclarecer mais um coisa: o TSE e o STF inovaram em mais um aspecto gravíssimo. O tribunal passou a entender que agora o parlamentar não apenas é cassado como sua coligação perde os correspondentes votos para fins de cálculo do quociente eleitoral.
Com isso, em consequência direta e automática da cassação de Francischini, outros três parlamentares perderam as vagas como deputados estaduais. Frise-se que a Assembleia Legislativa paranaense possui 54 membros. Ou seja, com uma decisão juridicamente frágil e que aplicou um direito criado após as eleições, o TSE e o STF mudaram não muito menos do que 10% do Parlamento Estadual. Para ter ideia: é como se numa única canetada (repise-se: aplicando um direito que não existia ao tempo da eleição) o TSE ou o STF mudassem cerca de 40 deputados federais.
Obviamente isso representa uma clara ameaça e afronta à democracia e à soberania do voto. Os efeitos de um julgado como esse são tão bruscos sobre a composição da Casa, das comissões mais importantes e até da presidência da Assembleia que devemos concluir que o parlamento paranaense hoje não é aquele que foi escolhido pelo voto segundo o direito vigente ao tempo do pleito. Trata-se de uma espécie de Parlamento Biônico, não escolhido pelos mecanismos de participação popular, mas investido por uma decisão ativista aplicando um direito constituído post factum.
O fenômeno, altamente preocupante, permite que um tribunal atuando de má-fé aplique o direito estrategicamente. Para tanto basta afirmar que determinada pauta de campanha de grupo político cuja participação no Parlamento queira ver encolhida foi feita com base em alguma fake news, conceito altamente fluído e sem definição legal. Como demonstrei acima, seria possível reduzir fortemente (talvez completamente) a presença de partidos de esquerda simplesmente afirmando que a veiculação do episódio de automutilação nas redes sociais configura "uso indevido dos meios de comunicação", cassando os eleitos e retirando os respectivos votos da coligação. Isso cria o claro risco de formação de "Parlamentos Biônicos" no futuro.
O simples fato de que essa possibilidade exista já configura fator de restrição ao debate livre e desimpedido, por provocar o chamado chilling effect (traduzido como efeito inibidor ou resfriador), caracterizado pelo desencorajamento do exercício legítimo de direitos legais e naturais pela ameaça de sanção legal. Obviamente, como ninguém sabe o que a Corte poderá considerar fake news no futuro, o efeito é a exagerada contenção e perda de vitalidade do debate.
Mais: como a cúpula do Judiciário tem apresentado patente inclinação ideológica, é provável que um grupo sinta maior receio do que o outro. Assim, é razoável imaginar que essa decisão provocará desequilíbrio eleitoral.
De um modo ou de outro, o fato é que, pelo modo como a questão foi tratada, a democracia brasileira sai enfraquecida.
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