Imagine que o seu cônjuge está sendo processado por algum crime (ou que ele simplesmente está sendo perseguido judicialmente em virtude de suas opiniões políticas). Imagine agora que ele está foragido (ou que ele está simplesmente se recusando a cumprir decisões arbitrárias).
Imaginou? Ok. É aqui que entra a parte mais importante. Pense que um dia você acorda de manhã com o telefone tocando. É o seu genro. Ele está aos prantos. É que sua filha foi presa. O juiz determinou a prisão dela para forçar seu marido a se submeter à decisão (ou ao arbítrio, como queira).
Você sente sua cabeça girar. O seu estômago se retrai. A sensação de nojo, repugnância e injustiça invade a sua alma.
Mas não para por aí. No dia seguinte, é o seu filho quem liga. A conta bancária dele foi congelada. O dia do pagamento da mensalidade das crianças está próximo. Todo o salário dele foi confiscado. A ordem veio do mesmo juiz. Ele quer que o seu marido cumpra a decisão.
Nos dias que se seguem várias pessoas da sua família são alvo de perseguição. Mais tarde também as pessoas do círculo de amigos de seu marido começam ser vítimas de restrições.
Você acha que isso descreve uma democracia? É claro que não.
Em democracias, há muitos séculos um forte processo de humanização do processo penal foi deflagrado. Dentro desse processo, consagrou-se o que chamamos de princípio da intranscendência ou da personalidade da pena. Segundo esse postulado, ninguém pode ser responsabilizado – ou ter sua esfera jurídica diretamente afetada por qualquer forma que seja – em virtude de conduta cometida por terceiro.
Por isso, você jamais verá algo que se pareça com a história acima em qualquer democracia.
E no Brasil?
Bom, o Brasil parece-se cada vez mais com algo que não uma democracia, em grande parte por força de decisões heterodoxas que vem sendo proferidas.
Com efeito, se um viajante do tempo ingressasse na Delorean (o inolvidável automóvel da séria "De Volta para o Futuro") durante o momento de esperança da Constituinte de 88 e fosse lançado para o período atual, após conversar com algum constitucionalista e receber as últimas notícias ele perguntaria se o levaram de volta para o final da década de 60 em pleno AI5. É que ele ouviria que parlamentares tem suas imunidades violentadas em crimes de fala, pessoas (inclusive deputados) são investigados por participarem de manifestações populares de rua, e grupos de determinado segmento político são perseguidas por fatos não previstos como crime sem a observância do devido processo legal em simulacros cujo desfecho já é conhecido de antemão em virtude da parcialidade dos julgadores.
Dentro desse contexto, segundo afirmado pela advogada Paola Daniel e amplamente veiculado pela mídia, o Ministro Alexandre de Moraes teria determinado o bloqueio e o sequestro de bens da conta da esposa do Deputado Daniel Silveira, em virtude de processo no qual apenas este último figura como réu.
Caso o fato se confirme, trata-se de episódio muito preocupante para a democracia e o Estado de Direito no Brasil. E não será o primeiro nesse caso. De fato, durante todo o procedimento, a atuação do STF foi marcada por indícios de parcialidade, refletida na seletividade (pessoas de esquerda que cometeram condutas semelhantes, mesmo sem gozarem de imunidade, e até que já defenderam expressamente o fechamento do STF não responderam penalmente); no açodamento (processo tramitou muito mais rápido do que o normal); na prática constante de ilegalidades processuais; e, na desproporcionalidade da pena aplicada.
Não bastasse, como já explicamos em detalhe em texto anterior, a punibilidade do parlamentar já foi extinta, visto que o Presidente da República concedeu indulto a Daniel Silveira. Com isso, qualquer imposição de cautelar nesta altura, mesmo contra o próprio deputado, já é um ato de violência judicial alheio ao Estado de Direito.
Agora, caso se confirme que seus familiares estão sendo perseguidos, trata-se de atrocidade sem precedente na vigência da atual ordem constitucional. É um retorno à barbárie. Fora da civilização é sabido que comumente quando o membro de um grupo é vítima de um crime, a resposta dá-se por meio de vingança contra toda a sociedade a que o autor do delito pertença.
Mas em Estados Constitucionais não funciona assim.
É importante salientar que não é que no Brasil aquela garantia não esteja previsto em nosso ordenamento. A Constituição Cidadã de 1988 é expressa em seu art. 5º, XLV, em afirmar que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, consagrando o princípio de que tratamos acima.
A jurisprudência também é remansosa e pródiga na aplicação desse postulado humanista do processo penal. O próprio STF já lançou mão dele muitas vezes. Entre vários julgados que poderiam ser citados, no AC 1033, AgR-QO, de relatoria do Ministro Celso de Mello, julgado em 2006, ficou assentado:
“O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator”.
Em se confirmando as notícias, de lá pra cá, em termos de jurisdição constitucional, involuímos.
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