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André Uliano

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Pescaria Probatória: entenda a prática medieval utilizada contra Bolsonaro

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No programa “Fora dos Autos” que foi ao ar no dia 4 de agosto, abordamos o risco de que esteja sendo praticada pescaria probatória contra o Presidente Jair Bolsonaro. A hipótese havia sido veiculada já em meados de 2020 pela própria Procuradoria-Geral da República, em relação aos apoiadores do Presidente vítimas de diligências infundadas determinadas no bojo do Inquérito do Fim do Mundo. Mais recentemente, diante das medidas inquisitoriais adotadas por Alexandre de Moraes, a Vice-PGR, Drª. Lindora Araújo, voltou a suscitar o tema, ao afirmar que a conduta do ministro era "passível de configurar a prática denominada de 'fishing expedition'".

Importante deixar claro que a questão aqui não é se você gosta, apoia ou pretende votar no atual presidente. O que está em jogo é se o Brasil é um país que adota as melhores práticas das democracias ou se, pelo contrário, torna-se cada vez mais parecido com seus vizinhos chavistas.

Mas, afinal, o que é pescaria probatória (fishing expedtition) e por que sua adoção seria preocupante para a democracia?

Para entender esse problema é necessário compreender que a prova é um dos "pulmões" de um processo judicial. De fato, o processo é uma relação dialética entre partes que disputam o convencimento do órgão julgador. A convicção jurídica do juiz tem dois elementos centrais: a interpretação das normas jurídicas aplicáveis e a reconstrução do fato histórico.

Ou seja: é crucial num processo saber o que aconteceu e como o direito regula eventos dessa espécie. Por exemplo, se alguém responde por homicídio, é necessário verificar se foi ele quem desferiu os golpes e se sua conduta se enquadra na norma penal que proíbe a conduta de matar alguém. A disputa, portanto, por produzir provas e tê-las examinada perante um juízo imparcial é ponto-chave para o deslinde do feito.

Ocorre que essa relação pode ser parecida com uma guerra ou uma luta de vale tudo. É o que ocorre em sociedade primitivas e em regimes autoritários, como nossos vizinhos chavistas. Nas democracias, por outro lado, a relação ocorre num modelo acusatório, em que o juiz é provocado pelas partes, sendo o procedimento mediado por regras prévias e aplicadas de modo isonômico.

No Brasil, que é uma democracia não consolidada, sempre houve problemas de abuso probatório. Contudo, o país vinha numa crescente de adoção de boas práticas desde o fim do regime militar. Esse movimento, no entanto, foi formalmente revertido após a instauração do inconstitucional Inquérito do Fim do Mundo. Desde então o direito processual e probatório do país passou a sofrer um retrocesso sem precedentes em períodos democráticos. Hoje podemos concluir que há um movimento reacionário promovendo um desmonte das garantias processuais.

Esse processo é ainda mais preocupante, porque ele incide de modo assimétrico a depender da posição política do investigado. Portanto, há indícios de que no Brasil estamos não apenas diante de um fenômeno de uma posição ideológica menos garantista, mas de tribunais politicamente sequestrados, o que é um elemento típico de democracias em processo de erosão. Situações análogas ocorreram na Venezuela e na Nicarágua, antes do colapso total de suas instituições.

Voltando ao tema do processo em si, nele a reconstrução do fato histórico dá-se, basicamente, por meio da produção probatória. Assim, o abuso nos meios de obtenção de provas, como a fishing expedition ou a atividade inquisitorial do juiz, além de violarem direitos fundamentais, desequilibram o processo e o seu resultado. Quando essas condutas são praticadas pelo próprio órgão julgador também há quebra da imparcialidade, descrita pela Suprema Corte Canadense como "um estado mental no qual o julgador está desinteressado do resultado e aberto à persuasão pela evidência e pelos depoimentos. Pelo contrário, viés denota um estado mental predisposto a um resultado particular" (R. v. S. (R.D), 1997, 3 SCR 484).

Frise-se que já há quase meio século, acertada lição da Corte Europeia de Direitos Humanos demonstrou que a imparcialidade não é apenas subjetiva, mas também objetiva. Aprofundaremos nisso em texto futuro. Mas é importante ressaltar que, conforme arrematou aquele tribunal nos casos Piersack v. Belgica e DeCubber v. Belgica - a imparcialidade tem uma liturgia própria, de modo que o comportamento do julgador, o modo como ele aparenta atuar - por exemplo, revelado na obsessão por levantar provas contra pessoa específica - é o suficiente para demonstrar sua parcialidade.

Aqui gostaríamos de nos concentrar, no entanto, na pescaria probatória, também denominada pelo título em inglês: fishing expedition.

A alcunha do fenômeno indica de modo bastante adequado sua ideia central. Assim como o pescador lança suas redes sem saber ao certo o que irá apanhar, o investigador de má-fé lança uma rede de medidas invasivas sobre o mar da vida privada de sua vítima (ou de pessoas a ela próximas) a fim de buscar qualquer elemento que possa macular sua imagem ou justificar a posteriori a investigação persecutória anteriormente aberta.

Em uma investigação normal e típica de países democráticos o investigador fixa seus olhos num fato específico e busca elementos probatórios a partir dos dados concretos que ele possui: se encontra um cadáver alvejado por disparos de arma de fogo, ele busca o revólver; se encontra o armamento, busca seu proprietário; se encontra o proprietário, busca verificar o que ele fez no dia e assim por diante.

Na pescaria probatória, o agente-inquisidor em geral mira uma pessoa. Então, passa a determinar provas as mais amplas possíveis, a fim de estabelecer uma devassa em sua vida. A finalidade é pescar algo de irregular que possa legitimar as diligências praticadas e novas medidas de perseguição. Não são os indícios já colhidos que justificam a prática probatória. É a prova colhida a posteriori que justifica a investigação.

Como explica Pedro Molina em trabalho sobre o tema, a prática da fishing expedition já incomodava os advogados nas antigas cortes britânicas. Naquele tempo costumava-se exigir dos investigados juramentos de responder qualquer pergunta, sem silenciar ou mentir. Eram os chamados juramentos ex officio ou juramentos de veritate dicenda. O detalhe é que o alvo da investigação não precisava saber qual fato estava sendo investigado e, assim, os questionamentos podiam abranger qualquer dado de sua vida. Alguns agentes abusavam então da situação e, no intuito de justificar a caçada a suas presas, passavam a fazer perguntas sem conexão direta com a causa, levando o investigado por vezes a incorrer em perjúrio ou produzir prova contra si mesmo.

Na common law, o privilégio contra a autoincriminação (privegie against self-incrimination) passou a funcionar como incipiente escudo contra tais práticas. A exigência de respostas sem conexão com fato específico por meio de juramento passou a ser paulatinamente restringida e hoje é vedada pelas garantias consagradas nas Constituições das democracias modernas. Veremos mais à frente que a jurisprudência já condenou medidas probatórias dessa espécie no Brasil.

No tocante à definição de fishing expedition, o dicionário Collins traz o seguinte conceito: “qualquer inquérito realizado sem qualquer plano ou propósito claramente definido na esperança de descobrir informações úteis”. A dicionário Merriam-Webster talvez seja ainda mais claro: “uma investigação que não se apega a um objetivo declarado, mas espera descobrir evidências incriminatórias ou dignas de notícia

Na doutrina brasileira, Alexandre de Morais da Rosa, conceitua a pescaria probatória como a “procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém.” Explica ele: “Denomina-se pescaria (ou expedição) probatória a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais.”

Na obra conjunta, "Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e na Apreensão", os autores apresentam ainda a seguinte definição:

“É possível, portanto, definir a pescaria probatória (fishing expedition), como a apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, 'pescar' qualquer espécie de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma investigação especulativa e indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada.”

Nossos tribunais superiores já condenaram sua prática, pois conforme leciona precedente do STJ, “os indícios de autoria antecedem as medidas invasivas, não se admitindo em um Estado Democrático de Direito que primeiro sejam violadas as garantias constitucionais para só então, em um segundo momento, e eventualmente, se justificar a medida anterior, sob pena de se legitimar verdadeira fishing expedition, conhecida como pescaria probatória” (AgRg no RMS 62562).

Em Mandado de Segurança impetrado contra ato invasivo decretado pela CPI da COVID, um dos advogados de defesa – acertadamente – alegou: “A quebra irrestrita dos sigilos perseguidos pela CPI – Pandemia, sem fundamentação e individualização concreta equipara-se ao que a doutrina moderna e especializada nominou como ‘fishing expedition’ ou ‘pescaria probatória’, sendo em resumo, o meio de investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo, determinado ou declarado, decretado de forma ampla e genérica, no afã (ou esperança) de ‘pescar’ qualquer prova para fortalecer um futuro processo.”

Nesse sentido, ademais, corretamente asseverou o ex-ministro Celso de Mello, no âmbito do Inq 4831:

"E o motivo de observar-se a existência de conexão com os eventos alegadamente delituosos sob investigação penal reside no fato de que o nosso sistema jurídico, além de amparar o princípio constitucional da intimidade pessoal, repele atividades probatórias que caracterizem verdadeiras e lesivas 'fishing expeditions', vale dizer, o ordenamento positivo brasileiro repudia medidas de obtenção de prova que se traduzam em ilícitas investigações meramente especulativas ou randômicas, de caráter exploratório, também conhecidas como diligências de prospecção, simplesmente vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, como resulta não só da doutrina (...), mas, também, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça".

Segundo Alexandre de Morais da Rosa, no ambiente estadunidense, conforme precedente do caso Hickman v. Taylor (1947), "ao mesmo tempo em que as regras não podem ser restritivas (impedir a apuração de condutas criminosas), os limites legais devem ser respeitados, a saber, o ato não pode ser movido por má-fé ou com desvio de finalidade (vinculado à causa provável), de modo opressor e/ou vexatório, nem invadir o domínio de direitos reconhecidos. Trata-se de expediente (...) em que o órgão investigador pode se utilizar dos meios legais para, sem objetivo definido ou declarado, 'pescar' quaisquer evidências a respeito de crimes desconhecidos ou futuros. Configura verdadeira devassa ampla e irrestrita do passado, presente e futuro do alvo (pessoa ou conduta suspeita), desprovida de ‘causa provável’, isto é, fora do enquadramento normativo da investigação democrática.”

A produção probatória, portanto, sempre depende de fundada suspeita - baseada em elementos concretos - de que a pessoa praticou delito específico objeto do ato investigatório e demonstração de que a prova é necessária para as investigações daquele fato concreto alvo da apuração.

No programa Fora dos Autos mencionado acima, apontamos alguns indícios de que isso não vem sendo respeitado no Brasil. Tal fato configura patente risco de violação das garantias constitucionais, particularmente do devido processo legal, e de erosão da democracia e do Estado de Direito. Para quem não assistiu, fica aqui o convite para conferir, clicando neste link.

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