Em pesquisa Datafolha realizada poucos dias antes do 7 de setembro de 2021, 63% dos entrevistados afirmaram acreditar que o Poder Judiciário representava uma ameaça à democracia.
Inúmeras pessoas hoje veem o STF como uma corte que perdeu a independência judicial e foi politicamente sequestrada pelas forças que governaram o Brasil no passado. A imagem que muitos têm da corte é a de um órgão que manipula a jurisdição constitucional para impor uma agenda político-partidária e se utiliza de inquéritos inconstitucionais e medidas heterodoxas para perseguir críticos e opositores.
Artigo publicado em revista científica de direito da Universidade da Califórnia (UC Davis Law Review) mostra que esse quadro não é inverossímil. Pelo contrário. Os autores mencionam no texto intitulado “Abusive Judicial Review: Courts Against Democracy” (Revisão Judicial Abusiva: Cortes contra a Democracia) que, apesar de os tribunais serem “geralmente conceituados como a última linha de defesa da ordem constitucional democrática liberal”, “não é incomum que órgãos judiciais profiram decisões que ataquem intencionalmente o núcleo da democracia eleitoral”. Constatam eles que cortes ao redor do mundo já legitimaram leis e práticas antidemocráticas, bem como reprimiram legislaturas ou restringiram a esfera eleitoral prejudicando deliberadamente grupos políticos determinados.
O texto é de autoria do professor David Landau da Universidade da Flórida – especialista em manobras políticas abusivas que, apesar de formalmente lícitas, acabam por minar a democracia – e da professora Rosalind Dixon da Austrália, a qual tem escrito prolificamente sobre o poder das cortes e diálogos institucionais.
Após ler o conteúdo dos autores, é difícil não lembrar de casos como o da cassação do Deputado Franceschini no Paraná mediante modificação a posteriori do entendimento jurisprudencial (com a anulação dos seus votos e a consequente modificação da composição do parlamento estadual); ou, a posterior cassação de toda chapa do PSL no Estado, o que tornou a Assembleia Estadual um verdadeiro “parlamento biônico” totalmente diferente do que foi eleito pelo voto. Ou o silenciamento, sem fundamentação jurídica, do empresário Luciano Hang – com mais de 5 milhões de seguidores – em período eleitoral. Ou as recentes medidas contrárias à liberdade de expressão promovidas pelo TSE, seja no caso do confisco do faturamento de canais de direita promovido pelo então corregedor-eleitoral Luís Felipe Salomão; na tentativa de ocultar da população os fatos objetivos que ligam partido político à facção criminosa PCC; ou na proibição da divulgação de imagens do último dia 7 de Setembro. Ou a perseguição a parlamentares atribuindo-os, sem prova, o envolvimento em supostos “atos antidemocráticos” (fenômeno que pelos contornos do caso concreto defendi em artigo anterior que teria o potencial para criminalizar manifestações populares, algo de semelhante ao que ocorreu na China e em Cuba). Ou a prática de constante pescaria probatória contra grupos políticos específicos. Ou a perseguição a jornalistas, como denunciou a Associação Paulista no último dia 7 de junho. E por aí vai. Os exemplos de abusos judiciais ocorridos ao longo dos últimos anos são simplesmente inumeráveis.
Os autores chamam as práticas judiciais que minam a democracia de “revisão judicial abusiva”. Segundo eles, “pretensos autoritários às vezes procuram capturar os tribunais e empregá-los de maneira abusiva como parte de um projeto mais amplo de erosão democrática”. Esse mecanismo foi constantemente utilizado na América Latina no decorrer do presente século. A escolha dos tribunais como instrumento para tais fins decorre exatamente do fato de que “geralmente desfrutam de vantagens de legitimidade”, uma vez que a população costuma enxergá-los como fiscais da democracia e não como algozes dela, o que torna “seus movimentos antidemocráticos mais difíceis de detectar e responder tanto nacional quanto internacionalmente”.
A definição precisa da revisão judicial abusiva, o modo como ela é aplicada estrategicamente por regimes políticos, a descrição detalhada de alguns exemplos internacionais e possíveis mecanismos internos e internacionais para evitar sua prática serão temas que exploraremos em textos futuros.
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