No dia 17 de julho deste ano, Carlos Ayres Britto fez a seguinte publicação em sua conta pessoal do Twitter:
Bom, primeiramente, se você é jovem, cabe aqui explicar quem é Carlos Ayres Britto. Natural do Sergipe e nascido em 1942, ele foi ministro do STF entre 2003 e 2012. Antes de ocupar uma vaga na Corte, Britto militou no PT por 18 anos, tendo inclusive disputado uma vaga na Câmara dos Deputados em 1990, mas sem sucesso.
Voltando à postagem que gostaríamos de analisar criticamente, nela o ex-ministro parece insinuar que o STF ocuparia uma posição hierárquica superior em relação aos demais poderes, possuindo uma supremacia sobre eles.
Estaria correta essa afirmação? De modo algum.
O termo supremo na denominação da Corte não se refere à sua relação em face dos outros Poderes da República, mas apenas indica seu status no interior do Poder Judiciário. Isto é, cuida-se de supremacia apenas sobre os demais tribunais e juízes, uma vez que funciona como órgão de cúpula da Justiça.
Com efeito, a expressão Suprema Corte tem um sentido técnico, o qual contrapõe-se ao de Corte Constitucional. O modelo de "Suprema Corte" vigora em países nos quais qualquer órgão do Poder Judiciário pode realizar o controle de constitucionalidade - o chamado modelo difuso -, como ocorre no Brasil. Nesse caso, há um Tribunal que ocupando o ápice da cadeia jurisdicional analisa tais questões em última instância e, por isso, intitula-se supremo. Por outro lado, nos sistemas em que há apenas o chamado controle concentrado, o controle de constitucionalidade fica a cargo de um órgão alheio à hierarquia recursal dos juízes e tribunais ordinários: são as Cortes Constitucionais. Grosso modo, elas não são "supremas", porque são órgãos únicos em seu gênero. Não há órgãos abaixo dela com jurisdição sobre o mesmo tipo de questão, as quais chegariam a ela por meio de recursos.
Repare que por isso também não haveria sentido em chamar a Câmara dos Deputados, o Senado ou o Presidente de "Supremos", visto que inexiste órgão de mesma espécie, submetido a eles por via recursal. Existe apenas um Presidente, uma Câmara e um Senado. Contudo, existem vários tribunais, sendo um deles - o de cúpula - supremo em relação aos demais.
Essa tipologia está bem descrita em trabalho da jurista australiana Cheryl Saunders intitulado: "Courts with Constitutional Jurisdiction" (Cortes com Jurisdição Constitucional). O texto está publicado em manual de Direito Constitucional Comparado publicado pela prestigiada Cambridge University Press (The Cambridge Companion to Comparative Constitutional Law).
Confira:
O protótipo do controle difuso é um sistema judicial em que múltiplos tribunais aplicam todas as fontes do direito, incluindo o direito constitucional, para resolver disputas devidamente apresentadas a eles. Os tribunais normalmente são organizados em uma hierarquia, na qual a suprema corte tem a palavra final sobre o significado e a aplicação da constituição. No restante do Poder Judiciário, as decisões dos tribunais superiores, incluindo, essencialmente, o supremo tribunal, vinculam os tribunais inferiores por meio de uma doutrina de precedente. Exemplos incluem os Supremos Tribunais do Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Índia e o Supremo Tribunal da Austrália." (pág. 417)
"Em contraste, o protótipo para o controle concentrado de constitucionalidade é um tribunal único e especializado, usualmente denominado Tribunal Constitucional, Corte Constitucional ou, eventualmente, Conselho Constitucional, organizado separadamente do resto do sistema judiciário e com jurisdição exclusiva sobre as matérias constitucionais que lhe são atribuídas. Exemplos incluem o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, o Tribunal Constitucional da República da Coreia, o Tribunal Constitucional da África do Sul e o Tribunal Constitucional do Chile."." (pág. 426)
Como se pode perceber, a nomenclatura escolhida pelo legislador constituinte não coloca o STF acima dos demais poderes, mas apenas como órgão de cúpula do próprio Poder Judiciário; superior, portanto, apenas aos demais tribunais e juízes do país.
Frise-se que não se trata de mera questão de nomenclatura. Não estamos diante de uma discussão bizantina.
A posição externada pelo ex-ministro está fundamentada em uma teoria de viés juristocrático e, portanto, antidemocrático.
De fato, uma eventual Supremacia Judicial sobre os demais poderes - os quais possuem membros eleitos pelo povo em sufrágio universal e passíveis de responsabilização política periódica perante as urnas - revelar-se-ia num governo aristocrático exercido por juízes. Frise-se que juízes não são eleitos, mas nomeados por certos grupos políticos. Assim, na medida em que tais magistrados possam governar, tal governo passa simplesmente a ser o modo por meio do qual o grupo ao qual estão ligados se perpetua no poder. Ou seja, a supremacia judicial convola-se em juristocracia elitista. Esse fenômeno é perceptível em vários países.
O jurista canadense Ran Hirschl, na obra Towards Juristocracy (“Rumo à Juristocracia”), apresenta um exemplo sombrio desse fenômeno. Primeiramente, ele constata que o aumento do Poder das Cortes mediante expansão constitucional se dá pela ação de três grupos-chave: elites políticas que se veem ameaçadas e buscam isolar suas preferências do processo político, constitucionalizando-as; elites econômicas que buscam constitucionalizar os direitos que as beneficiam; e – por fim, a que mais nos interessa aqui –, elites judiciais e Supremas Cortes, que buscam aumentar a sua influência política e reputação internacional. Depois, para sustentar sua hipótese, ele cita o caso da África do Sul. Hirschl defende que, enquanto durou o apartheid, a minoria branca acreditava que podia confiar no processo majoritário, momento em que vigorava a Supremacia do Parlamento. Quando aquele regime já não era viável por meio do mecanismo político, a mesma minoria branca teria “se convertido” ao constitucionalismo, usando-o como instrumento para preservar privilégios.
Saliente-se que o modelo constitucional brasileiro não segue uma censurável e autoritária supremacia judicial. Nossa supremacia é constitucional. Nela, os poderes devem ser independentes e harmônicos, e todos contribuem para revelar o sentido da Constituição, por meio de diálogos constitucionais e institucionais. A população também participa desses diálogos diretamente de variadas maneiras.
Esses fenômeno dialógico ocorre de diferentes modos: a reação da população a decisões judiciais, a crítica intelectual qualificada, a pressão sobre o Parlamento para que legisle sobre um tema revertendo uma decisão do STF (por exemplo, como no famoso caso da vaquejada), os mecanismos clássicos de freios e contrapesos entre os poderes etc.
É importante que o leitor esteja, portanto, sempre atento a mensagens que buscam - ainda que de modo sub-reptício - inocular ideias equivocadas acerca de nosso constitucionalismo. Lembro aqui as palavras com que, há cerca de dez anos, encerrava sua palestra o jurista espanhol Juan Garcia Amado, catedrático de Filosofia do Direito da Universidad de León:
É preciso voltar à política. E se para fazê-lo for necessário jogar ao rio ou lançar ao mar meia dúzia de magistrados ativistas ou professores neoconstitucionalistas, é o que devemos fazer. Pois é isso que se espera de quem preza verdadeiramente pela democracia: defendê-la de seus inimigos.
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