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André Uliano

André Uliano

Por que Supremas Cortes existem?

(Foto: Wikipedia)

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Por que várias nações adotam mecanismos judiciais de controle de constitucionalidade e criam instituições com traços mais ou menos semelhantes ao STF brasileiro?

Uma resposta bastante comum para o cidadão leigo é: para proteger a Constituição (algo ligado ao ideal do Estado de Direito) e os direitos fundamentais. Esse padrão de hipótese explicativa envolve o que alguns autores chamam de teorias ideacionais (ideational theories), isto é, teorias que buscam explicar o controle de constitucionalidade com base na defesa de algum ideal ético-jurídico.

O fato de essa resposta ser tão comum não é obra do acaso. Considerável esforço de propaganda foi aplicado para que tantas pessoas vejam essa como a explicação intuitiva. Além disso, ela, de fato, não é de todo infundada. Tais valores são razões decisivas para que o controle de constitucionalidade goze de apoio popular, o que facilita sua instituição política.

Contudo, essa explicação é insuficiente. Os argumentos que demonstram isso são vários.

Em primeiro lugar, pesquisas empíricas não confirmam essa hipótese. Um exemplo nesse sentido, foi o estudo elaborado pelos professores Tom Ginsburg da Universidade de Chicago e Mila Versteeg da Virginia School of law, publicada em artigo intitulado Why Do Countries Adopt Constitutional Review. Embora reconheçam a dificuldade metodológica de construir métricas seguras para esse tipo de matéria, não encontraram evidência geral de que a adoção do controle de constitucionalidade decorra de fatores como a defesa do Estado de Direito ou dos direitos humanos.

Outros estudos parecem corroborar essa conclusão.

Com efeito, na obra Democracy and Its Critics, publicada em 1991, Robert Dahl, professor falecido de Yale e provavelmente o maior especialista em democracia das últimas décadas, analisa e problemitiza a concessão de poder às Cortes para que possam derrubar decisões políticas tomadas pelas esferas democráticas por meio da interpretação de princípios jurídicos abstratos ligados a direitos morais (como liberdade, vida ou dignidade). Nesse livro, ele coloca algumas interrogações importantes ao argumento de que tais poderes seriam essenciais para a proteção da democracia e dos direitos humanos (algo que costuma funcionar como pressuposto – por vezes implícito – do ativismo judicial). Dahl explica que para demonstrar a procedência desse argumento, seria necessário mostrar que países que não contam com tal mecanismo teriam níveis de democracia ou de concretização de direitos fundamentais inferiores aos Estados Unidos, por exemplo, onde essa prerrogativa é fartamente utilizada pelas Cortes. Contudo, conclui ele:

“Ninguém foi capaz de demonstrar que sejam menos democráticos que os Estados Unidos, países como Holanda e Nova Zelândia, que não têm revisão judicial, ou Noruega e Suécia, onde ela é exercida raramente e de maneira muito limitada, ou Suíça, onde só pode ser aplicada a leis dos cantões (…) Não foi demonstrado, tampouco, que os direitos e interesses fundamentais estejam melhor protegidos em poliarquias com quase tutores judiciais do que nas que não os têm.”

O constitucionalista canadense Ran Hirschl faz diagnóstico semelhante ao examinar os países nórdicos. Em sua exposição, primeiramente, ele demonstra o baixo grau de judicialização da política naquela região:

“A Constituição da Noruega (adotada em 1814) é a segunda constituição mais antiga atualmente em existência. A constituição sueca de 1809 foi substituída em 1974, com a idade de 165 anos. Ao mesmo tempo, os países nórdicos têm sido tradicionalmente agnósticos, na melhor das hipóteses, em relação ao constitucionalismo de alta tensão ao estilo americano, ao discurso de direitos e ao ativismo judicial. Em vez disso, a deferência ao legislativo lado a lado com a revisão administrativa por motivos processuais caracterizou a revisão judicial nórdica durante a maior parte do século passado.

(…)

A Noruega, por exemplo, adiou a concessão de proteção constitucional explícita aos direitos humanos até 1994. Antes de 2000, a revisão judicial substantiva da legislação era explicitamente proibida na Finlândia. Na Dinamarca e na Suécia, a revisão judicial não técnica raramente tem sido praticada. A Suprema Corte dinamarquesa anulou a legislação apenas uma vez nos últimos 160 anos, e a Constituição dinamarquesa silencia sobre o assunto. O quadro é semelhante na Suécia. Variações sobre uma combinação de pré-visualização parlamentar ex ante bem estabelecida e revisão judicial ex post restrita, implantada na região nórdica, tem-se mostrado eficaz na mitigação da dificuldade contra-majoritária embutida na revisão judicial excessiva e na garantia de uma forma alternativa e não juristocrática de proteger direitos. Em muitos aspectos, então, o modelo nórdico de revisão judicial, não o chamado 'commonwealth model', é a revisão judicial verdadeira e genuína de forma fraca.”

Após, o autor examina os indicadores comparativos dos países nórdicos em termos de liberdades públicas, qualidade do regime democrático, e direitos sociais. Com esses dados, ele demonstra que inexiste evidência de que países com sistemas tipicamente americanos (Constituição escrita, controle de constitucionalidade ativista e forte devoção cultural ao constitucionalismo) possuam resultados superiores.

A conclusão a que se chega a partir do exame desses dados é que o controle judicial de constitucionalidade não é uma condição necessária, tampouco suficiente para bons indicadores sociais. Não é necessária, pois como visto há países em que ele é um fenômeno raro – ou mesmo inexistente –, mas que apresentam excelentes indicadores relativos ao cumprimento dos direitos humanos e à solidez da democracia. Por outro lado, também não é uma causa suficiente, porquanto regiões como a América Latina, com forte ativismo judicial, mantêm resultados medianos ou mesmo baixos quanto aos mesmos indicadores.

Aliás, a história mostra que as Supremas Cortes, além de não levarem necessariamente a uma maior concretização de direitos humanos e do ideal democrático, inúmeras vezes estiveram contra esses valores nobres que invocam para justificar sua existência: na Venezuela, a Suprema Corte foi essencial para a deterioração da democracia, permitindo a cassação infundada de direitos políticos de opositores e esvaziando as atribuições dos órgãos contrários à ideologia dos juízes do Tribunal; nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana permaneceu a maior parte da história do lado do escravismo (vide casos como “Prigg Vs. Pennsylvania”, “Jones Vs. Van Zandt”, e “Dred Scott Vs. Sandford”), derrubando legislações e atos que avançavam na pauta da igualdade; no Brasil, o STF legitimou regras do Programa Mais Médicos para profissionais vindos da ditadura cubana que foram vistas por órgãos internacionais como configuradoras de regime de escravidão contemporânea. Ademais, a Corte tem sido responsável por gravíssimas violações a direitos humanos mediante investigações inconstitucionais, como a que ocorre hoje no bojo do chamado Inquérito do Fim do Mundo.

Essa resposta ainda encontra outros problemas. Por exemplo, quem institui as Cortes Constitucionais e lhes confere poderes são, em última instância, os políticos. Contudo, tendo em vista que a defesa de vários direitos humanos é extremamente popular e costuma render dividendos eleitorais (pense em educação, saúde, segurança etc.), por que os políticos compartilhariam essa função?

Mais (e essa é uma pergunta que durante muito tempo deixou os cientistas políticos perplexos): se os políticos, de modo geral, tendem a ser maximizadores de poder político, por que eles criariam espontaneamente algo que – caso estivesse voltado para a proteção de direitos humanos e da democracia – lhes tolheria parte de sua autoridade decisória?

Frise-se que, no Brasil, o controle concentrado de constitucionalidade foi criado em período de deterioração democrática, em 1965, no primeiro governo militar pós-64. E episódios de expansão da jurisdição constitucional ocorreram em governos que demonstraram baixo compromisso com o Estado de Direito, tendo-se envolvido em inúmeros episódios de corrupção, além de desprezo por direitos humanos, demonstrado pelo apoio explícito a ditaduras extremamente violentas e opressivas como Cuba e Venezuela.

Todos esses dados parecem indicar que a proteção dos direitos humanos e do Rule of Law, por si só, não constitui explicação suficiente e geral para a adoção do controle de constitucionalidade. Contudo existiria alguma resposta melhor? É o que veremos no artigo da semana que vem.

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