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André Uliano

André Uliano

O risco de erosão democrática por meio da cúpula do Judiciário

Fachada da sede do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF.)

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Rupturas não são atos, mas processos. Isso sempre foi assim. Na Roma antiga a passagem da República para o Império durou décadas, sendo inclusive difícil dizer o momento exato da transição. No Brasil, a derrubada do Império foi precedida por anos de agressiva propaganda contra a Coroa; Getúlio, por sua vez, deu o golpe diante de um forte clima polarização, medo, radicalização e decadência das democracias mundo afora; os regimes militares e o fim da eleição presidencial direta ocorreu após mais de uma década que envolvera um suicídio presidencial, tentativas de mudança de sistema de governo, paralisia legislativa e Guerra Fria.

Hoje não é diferente.

Recentemente, surgiu toda uma imensa e inesgotável bibliografia que tem se dedicado ao tema.

Contudo, em geral, o que se percebe é que parte dos autores dedicados ao tema sofrem de um forte enviesamento e consequente blindspot ideológico. Por isso, medidas de desgaste da democracia adotadas por setores de centro-esquerda são simplesmente ignoradas. Só para ficar num exemplo, logo após assumir a Presidência, Joe Biden fez uma das mais clássicas e patentes medidas de erosão democrática: uma tentativa do que se intitula "empacotamento da Suprema Corte". Isto é, a aprovação de uma reforma legislativa que amplie o número de membros, permitindo a nomeação de juízes alinhados ao governo, forçando uma reorientação jurisprudencial. O fato foi acompanhado do mais ensurdecedor silêncio pela maior parte do grupo de estudiosos do tema. Apenas o jurista conservador Keith Whittington, do Departamente de Ciência Política da Universidade de Princeton, publicou acertado artigo no Wall Street Journal, criticando a proposta e apontando o risco de erosão constitucional e democrática que ela comportava.

De todo modo, o conteúdo teórico dessas obras é muito bom. Utilizando a teoria exposta por esses autores é possível realizar nossa própria análise dos fatos e examinar uma ameaça específica à democracia: a captura das Cortes de Justiça.

Com efeito, a democracia é, basicamente, um procedimento pacífico, regrado, institucionalizado e razoavelmente competitivo para formação de governo.

O que a literatura tem percebido com cada vez mais vigor e clareza é que há medidas que, embora não representem uma quebra súbita da ordem democrática, levam a uma perda de vitalidade e qualidade da democracia. A esse processo se costuma dar o nome de erosão democrática.

Esse processo, basicamente, atinge mecanismos de accountibility. Um termo em inglês que fundamentalmente indica um conjunto de práticas de governança, visando à prestação de contas, ao controle e à responsabilização dos atores institucionais. O processo de erosão desses mecanismos leva a uma consolidação do poder em um grupo e consequente perda do caráter competitivo dos processos eleitorais e de formação governamental.

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Um dos instrumentos que podem ser utilizados para promover esse processo de erosão e redução da accountibility é exatamente a captura política das Cortes Superiores. E esse é um risco que me parece que deve ser examinado com maior atenção no Brasil.

Em artigo que trata de espécies de falhas de processo político, o prof. da Universidade da Califórnia Stephen Garbaum aponta que um deles ocorre exatamente quando grupos políticos “miram e capturam instituições projetadas para serem independentes do controle político (…), como tribunais, promotores e comissões”. Esse foi um procedimento fartamente utilizado por governos chavistas na América Latina.

Continuando na exposição das lições do autor mencionado, essa espécie de captura tende a reduzir o nível de accountibility do grupo que obtém sucesso na cooptação e com isso tende a consolidar poder em suas mãos, o que “mina a estrutura constitucional da democracia representativa”. Segundo ele, “o novo e corrompido processo político resultante é qualitativamente diferente e muito menos ‘confiável’ do que um baseado em uma maior dispersão de poder e instituições mais robustas de prestação de contas.” Ele faz uma interessante comparação com o mercado: se a democracia é um mercado de vários players buscando ampliar sua autoridade política por meio da obtenção de apoio (uma espécie de conquista de mercado pela adesão de clientes), a captura de instituições independentes funciona como a implementação de um monopólio de poder pela manipulação das ações do órgão antitruste.

Os mecanismos de accountibility pode ser organizados em três grupos:

  • accountibility horizontal: exercida pelo Parlamento, bem como pelos demais poderes e órgãos independentes como o Ministério Público;
  • accountibility diagonal: efetuada pela mídia e sociedade civil organizada;
  • accountibility vertical: realizada pela competição eleitoral e partidária.

Quanto às duas primeiras formas de accountibility (horizontal e diagonal), é viável a leitura de que várias medidas adotadas pelo STF tem o potencial de enfraquecê-las.

Primeiramente, quanto à accountibility horizontal, percebe-se que por meio do ativismo judicial, o STF constantemente esvazia ou invade atribuições do Legislativo e do Executivo, muitas vezes manipulando a jurisdição constitucional para impor pautas e agendas de grupos políticos vistos como alinhados com parcela majoritária dos ministros. Isso, por óbvio, concentra poderes nas forças ideológicas que dominam a cúpula do Judiciário, impedindo a dinâmica desembaraçada da democracia, na qual há alternância e experimentalismo. Tais medidas ainda reduzem a capacidade dos demais poderes de realizar suas funções constitucionais de opor freios e contrapesos ao ramo judicial do Estado.

Também temos presenciado a interferência constante na Polícia Federal, com a distribuição de inquéritos sem a observância dos critérios objetivos e pré-definidos, além dos recentes atos de assédio contra o Ministério Público, buscando minar-lhe a autonomia quando o órgão por razões jurídicas não concorda com as medidas de perseguição ao presidente da República ou a grupos de seus apoiadores. Ao mesmo tempo, a Corte tem politizado perseguições criminais, impondo medidas cautelares gravíssimas a partir de pleitos de parlamentares de oposição e valendo-se exclusivamente de notícias de jornalistas igualmente opositores, os quais além da parcialidade inerente à sua condição falecem de legitimidade processual, segundo a lei processual penal.

Quanto ao segundo ponto, da accountibility diagonal, inúmeros inquéritos e medidas penais do STF têm deteriorado a liberdade de expressão e de prática jornalística de grupos críticos à atuação do Tribunal. O TSE também se destacou negativamente no tocante, em decisão com fundamentação insuficiente e que determinou o confisco das verbas oriundas de monetização de canais atuantes nas redes sociais, como nítida forma de censura. O STF, ainda, atribuindo, sem provas suficientes ou mediante generalizações infundadas, a pecha de atos antidemocráticos a manifestações populares, tem efetivamente enfraquecido a atuação de grupos da sociedade civil organizada.

Tudo isso se revela bastante preocupante, em especial em vista do contexto da América Latina. Saliente-se que não é necessário que haja a intenção de juízes destinada deliberadamente a deteriorar a democracia. A simples ocorrência factual de fenômenos dessa espécie e mesmo a mera percepção de setores da sociedade nesse sentido é o suficiente para desgastar os níveis de confiança nas instituições e na capacidade do Poder Judiciário de atuar de modo imparcial e independente. Várias pesquisas mostram que isso já vem ocorrendo no Brasil.

Daí a relevância de a sociedade discutir mecanismos para preservar ou restabelecer a independência judicial. Outrossim, pelas mesmas razões percebe-se a importância de as autoridades que atuam no aparelho de Estado transmitirem para a população a percepção de respeitabilidade e de tratamento equitativo, imparcial e baseado na reciprocidade.

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