A iniciativa vai destinar R$ 5 milhões para empreendedores negros.| Foto: Christina/Unsplash
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Conforme noticiou, há algumas semanas, a Gazeta do Povo:

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O Magazine Luiza abriu as inscrições para seu programa de trainees de 2021 – e vai aceitar apenas candidatos negros. De acordo com a empresa, o objetivo é trazer mais diversidade racial para os cargos de liderança da companhia, recrutando universitários e recém-formados de todo Brasil, no início da vida profissional. Atualmente, a varejista tem em seu quadro de funcionários 53% de pretos e pardos, sendo 16% deles em cargos de liderança. 'O alerta despertado por essa baixa participação fez com que o Magalu decidisse atuar, oferecendo oportunidades para quem ainda está começando a carreira', afirma a companhia.”

A Defensoria Pública da União ingressou com ação judicial contra o uso de critérios raciais para seleção no programa: “o autor da petição, o defensor Jovino Bento Júnior” afirmou na peça que “embora a inclusão social de negros e qualquer outro grupo seja desejável,” o sistema adotado pela seleção era ilícito e que há alternativas para atingir as mesmas finalidades dentro da legalidade. A petição inicial foi muito bem redigida e fundamentada.

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A medida judicial causou celeuma e certos grupos autoritários tentaram inclusive intimidar o Defensor Público.

Outros setores, buscaram apresentar argumentos contrários à ação. Um grupo de trabalho da própria Defensoria lançou uma “nota técnica” contra a ação movida pelo colega. A nota é juridicamente muito frágil. Ela não aborda a legislação aplicável ao caso e se baseia em reportagens do CONJUR. Apesar de o CONJUR ser um excelente canal de debates jurídicos, a simples menção a trechos de reportagens extraídas do site não pode ser apresentada como uma nota técnica. O documento ainda encerra com um ato de repúdio ao ajuizamento da ação, algo mais próprio para manifestos de militância do que para notas técnicas de órgãos de Estado.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, lançou outra nota (essa bem mais técnica) também em apoio ao programa de trainee.

Creio, no entanto, que a seleção é, de fato, ilícita e que o Defensor Público Federal acertou ao impugná-la. Isso por uma razão muito clara: o uso do critério racial em seleções de pessoas para relações de emprego é vedado pela Constituição.

Com efeito, a Constituição não deixa margem a dúvidas ao estabelecer, por meio de regra expressa, em seu art. 7º, inciso XXX, que “são direitos dos trabalhadores (…) a proibição (…) de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

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Frise-se que o dispositivo configura o que, no jargão jurídico, chama-se de uma regra. Ou seja, a norma institui um comando que diretamente proíbe um comportamento (uso de critério racial em seleção trabalhista). Não se trata pois de um princípio, no sentido de uma norma que apenas indica um estado de coisas desejável e que deva ser buscado na maior medida possível, como reduzir a pobreza, promover o bem de todos, ou garantir a liberdade de iniciativa etc.. Espero que esses exemplos tornem a dicotomia entre regras e princípios suficientemente clara mesmo para o público leigo.

Ocorre que, havendo regra constitucional que regula o caso, é descabido buscar-se soluções alternativas por meio de interpretações que busquem ponderar princípios. É o que corretamente ensina o professor da Universidade de Nova Iorque Richard H. Pildes, em seu artigo Avoiding Balancing: The Role of Exclusionary Reasons in Constitutional Law. No mesmo sentido, dentre os juristas brasileiros, é a lição do professor da USP Humberto Ávila: “no caso de regras constitucionais, os princípios não podem ter o condão de afastar as regras imediatamente aplicáveis situadas no mesmo plano. Isso porque as regras têm a função, precisamente, de resolver um conflito (…), funcionando suas razões (autoritativas) como razões que bloqueiam o uso das razões decorrentes de princípios (contributivas)” (p. 5).

Surpreendentemente, a regra citada, do art. 7º, XXX, da Constituição, foi omitida em todas as notas técnicas acima mencionadas.

Reconhecemos que os brasileiros negros sofrem de condições sociais desprivilegiadas. O desemprego entre negros é muito superior ao registrado entre brancos. Segundo o relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgado pelo IBGE em novembro de 2019, entre negros, os níveis de pobreza eram muito mais elevados, ao passo que a média salarial era inferior e o percentual de ocupação em cargos de gerência também era mais baixo. A violência contra negros também é, em regra, maior.

Tudo isso revela, inegavelmente, uma realidade que precisa ser alterada. Por isso, iniciativas que pretendam reduzir a desigualdade que afeta de modo desproporcional a parcela de negros da população são, de fato, louváveis.

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Contudo, nem toda medida capaz de alcançar uma finalidade positiva está, necessariamente, autorizada. Isso porque o Constituinte e o legislador podem verificar que a medida viola valores inegociáveis ou que possui custos que superam os benefícios; ou ainda que, mesmo tendo benefícios superiores, estes poderiam ser atingidos por outros meios que não geram os mesmos impactos negativos.

Acredito que seja o que ocorre no caso.

Há razões para que o Constituinte vede, de modo absoluto, o uso do critério racial para seleções de emprego, mesmo que para beneficiar grupos com condição desprivilegiada.

Primeiramente, porque o uso peremptório do critério racial, ao excluir aprioristicamente uma pessoa em virtude de sua cor, configura, em regra, uma injustiça. Até mesmo porque, no mundo real, quem busca emprego não são grupos, mas pessoas. E para uma pessoa branca e pobre, pouco importa que em média as pessoas de sua cor sejam mais ricas ou ocupem mais cargos de gerência. Ela não goza dessa condição média favorável e por isso vê a exclusão como injusta.

Em consequência disso, a seleção baseada na cor da pele passa a apresentar custos e riscos, uma vez que pode causar revolta em quem se vê injustamente excluído sequer da possibilidade de participar do certame. Isso tem o potencial inegável de acirrar tensões raciais. Aliás, o sistema de seleção racial pode inclusive gerar distorções em casos concretos, ao excluir, por exemplo, portadores de necessidades especiais que não sejam negros, ainda que se trate de um grupo com condições sociais desprivilegiadas e que muito provavelmente também ocupa poucas vagas de direção na empresa. Ou mulheres que criam os filhos sozinhas e que não sejam negras, grupo que também possui, em média, piores condições sociais.

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Em segundo lugar: no caso de seleções de emprego, há alternativas para favorecer grupos desprivilegiados, sem exclusão apriorística e formal baseada na cor da pele. Por exemplo, o empregador pode orientar os responsáveis pela seleção a levar o critério do nível médio social do grupo a que a pessoa pertença. Ou a favorecer pessoas de grupos com pouca representatividade em dada função ou setor da instituição. Assim, havendo candidato de grupo desfavorecido, ele será privilegiado. Isso tem o benefício de não exigir exclusão formal e a priori, e ainda evitar distorções em casos concretos. Por exemplo: digamos que a empresa que conte com menos negros em quadros de direção também tenha menos mulheres em tais funções. Num caso concreto, aparecem apenas homens negros, todos eles com boas condições sociais e econômicas. Por outro lado, uma mulher que não é negra, mas é mãe sozinha se apresenta. Ora, ainda que, em regra, negros tenham condições piores, no caso concreto isso pode não ocorrer. Assim, diante dessa situação inusitada, a empresa poderia optar pela candidata mulher, mesmo não sendo negra. Poderia, de todo modo, preferir o candidato negro. Mas nesse caso a seleção seria mais holística e não baseada apenas na cor, o que é vedado pela Constituição, como já vimos.

Creio que seria possível ao Parlamento, mediante Emenda Constitucional, reexaminar a questão e aceitar as chamadas ações afirmativas em seleção de emprego. Haverá quem diga que isso não seria possível, em virtude de o art. 7º, inciso XXX, da Constituição ser uma cláusula pétrea.

Contudo, como já explicamos em outro artigo (no qual abordávamos a questão da PEC para prisão em segunda instância), nossa Constituição não impede qualquer modificação em dispositivos que configuram cláusulas pétreas. Conforme decidiu o próprio STF, no Mandado de Segurança 32.262: “não se proíbe toda e qualquer alteração no enunciado textual ou no regime constitucional de um direito fundamental, mas apenas a deliberação de propostas tendentes a aboli-lo – i.e., daquelas que, uma vez aprovadas, atingiriam seu núcleo essencial, esvaziando ou minimizando em excesso a proteção conferida pelo direito. É preciso encontrar, no particular, o ponto de equilíbrio que preserve o núcleo de identidade da Constituição sem promover o engessamento da deliberação democrática por parte do Congresso Nacional.”

Assim, creio que seria possível uma emenda permitindo que a legislação infraconstitucional, estabelecendo critérios e prazos, admitisse esse tipo de ação afirmativa.

Contudo, penso que a matéria reclama deliberação do Congresso. É necessário debater em sociedade se queremos admitir que pessoas sejam excluídas por sua cor de pele; e, se excepcionalmente a resposta for sim, em que condições.

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Por derradeiro, cabe mencionar que não se desconhece o fato de nosso ordenamento jurídico já aceitar, em certos casos, o uso dessas ações afirmativas, inclusive com critérios raciais. Isso está previsto no Estatuto da Igualdade Racial em tratados internacionais sobre direitos humanos. Por exemplo: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em seu art. 1º, § 4º, dispõe que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos”.

Contudo, quanto a isso, primeiramente, o dispositivo parece reclamar regulamentação legal. Ele afirma que o mecanismo não pode permanecer após alcance de seus objetivos. De fato, as ações afirmativas são tidas como instrumentos temporários, o que foi confirmado pelo STF no julgamento da ADPF 186. Assim, há que se ter uma regulação que defina, com suficiente clareza, quais os objetivos e prazo para reanálise da política e suas metas.

Ademais, lembre-se que no caso das relações de emprego, a Constituição possui regra expressa vedando o uso de critério racial. E a Constituição prevalece sobre tratados internacionais, mesmo que relacionados a direitos humanos, como já decidiu o STF no Recurso Extraordinário 466.343 (entendimento diversas vezes reafirmado pelo Tribunal). Logo, há que se entender que as ações afirmativas são cabíveis, com base na lei e nos tratados internacionais, salvo no caso em que norma superior impôs vedação expressa e peremptória. É o caso do uso de critério racial como critério de admissão em relações de emprego.

Para concluir, lembramos que a respeitável nota da PFDC citada acima afirma que a inércia ante à atual situação de desigualdade que prejudica os negros é discriminatória. De fato, não se pode permanecer inerte antes situações de vulnerabilidade social que atinjam desproporcionalmente certos grupos sociais. Mas os mecanismos utilizados para combater o problema devem permanecer dentro da legalidade constitucional. A criação de novos sistemas não contemplados na ordem jurídica em vigor devem ser debatidos em sociedade e, se for o caso, aprovados por meio do Congresso Nacional. Nem se diga que por serem minorias, esses grupos teriam dificuldades em movimentar o sistema de representação política. Isso porque nos últimos anos várias leis relacionadas à matéria foram aprovadas em âmbito nacional e em vários estados, mostrando que a sociedade e os parlamentos são sensíveis ao tema.