Arquibancada Virtual

Meia-noite, o artilheiro-lobisomem

Por
Redação
17/09/2008 02:19 - Atualizado: 27/09/2023 16:26

Para simbolizar a nova fase do blog, resgato um texto das antigas, publicado em 2003/2004 no velho De Primeira. Nos próximos dias vem coisa nova, prometo.

O Timbozinho Futebol Clube era um dos times mais temidos do Sertão Nordestino. Por isso mesmo, enfrenta-lo sempre era motivo de medo e certeza de aventura.

Os perigos começavam na estrada, esburacada como o solo lunar. Não era raro uma bala de cangaceiro passar zunindo pelo pára-brisa de algum veículo.

Em Timbó, então, as coisas só pioravam. O único hotel da cidade só tinha água até o pôr do sol e luz até 23 horas. Para conseguir água potável, só viajando 500 quilômetros no lombo de um jegue ou pagando para utilizar os poços artesianos dos fazendeiros da região.

O Estádio Coronel Raimundo Nemécio Peixoto de Alvarenga Albuquerque – homenagem ao fundador da cidade – também era cheio de armadilhas. O vestiário, sem ventilação, mais parecia uma estufa, e não era difícil ver um jogador adversário sair desmaiado antes do início do jogo. No campo, uma espécie de tinta verde escondia os buracos do gramado – se é que dá para chamar de gramado aquele misto de mato, touceira e terra. Na arquibancada, a torcida fazia sua parte. Seja no grito, empurrando o time durante os 90 minutos. Seja nas peixeiras, que teimavam em parar na beira do gramado quando o adversário ia cobrar um escanteio, só para dar um sustinho.

No entanto, nenhuma arma do Timbozinho era tão literalmente mortal quanto o seu veterano atacante. Levemente calvo, um pouco barrigudo, 36 anos, baixo e canhoto, o matador não era conhecido por ninguém pelo seu nome – na verdade, poucos na cidade sabiam como ele realmente se chamava –, mas sim pelo apelido de Meia-Noite.

Diz a lenda que na meia-noite de quinta para sexta-feira em que havia lua cheia, o atacante se transformava em um lobisomem e saía à caça de cabritas desgarradas e virgens indefesas. Apesar de todos os timboenses saberem da história, nenhum ousava denunciar Meia-Noite com medo de perder os seus gols para os times vizinhos.

Além disso, o artilheiro – dizem, fez mais gols que Pelé e Friedenreich juntos – era tratado com todas as honras. Não havia um bar que não lhe oferecesse bebida de graça ou um cafetão que não deixasse todas as suas meretrizes ao desfrute do matador. Até o estádio do coronel era, informalmente, chamado de Boca de Lobisomem, como podia ser visto na frase pintada na arquibancada: “A Boca do Lobisomem não grita, uiva”.

Acontece que neste ano, os timboenses estavam especialmente entusiasmados com o time. Graças às influências da família do coronel, o Timbozinho conseguiu uma vaga na Copa do Brasil.

E pouco a pouco o clube do sertão foi derrubando seus adversários. Alguns, claro, reclamavam dos maus tratos e das péssimas condições em Timbó. Porém, a distância impedia que as emissoras e televisão e rádio chegassem ao município. Tudo, então, acabava virando folclore e desculpa de perdedor.

Com derrotas humilhantes fora e resultados inacreditáveis – e os gols de Meia-Noite – na Boca do Lobisomem, o time chegou à final da Copa contra um grande do futebol nacional. Em mais um lance de esperteza da família do coronel, o Timbozinho conseguiu deixar a decisão em apenas um jogo e na sua casa. As únicas condições eram que a torcida se comportasse e a diretoria providenciasse jatinhos para levar as equipes de rádio e televisão.

Tudo fichinha, perto da grande preocupação da diretoria do clube. A partida estava marcada para as 22 horas da quinta-feira de lua cheia. Qualquer atraso e o atacante Meia-Noite transformaria-se num lobisomem dentro de campo e em rede nacional.

Na noite grande final, a cidade inteira apressou-se para chegar à Boca do Lobisomem. As câmeras de televisão filmavam, insistentemente, os corintianos aquecendo do lado de fora do caótico vestiário e uma caixa abarrotada de peixeiras confiscadas dos torcedores na bilheteria.

O jogo começou e, sem o calor da torcida, o Timbozinho foi facilmente dominado pelo visitante estrelado. Bola na trave, defesa do goleiro, zagueiro tirando em cima da linha e, em 15 minutos, o placar apontava 3 a 0 para o forasteiro, que passou a apenas administrar o resultado.

Tudo corria bem, até os 35 minutos do segundo tempo. O gerador, trazido de uma cidade vizinha, não agüentou e a luz do estádio apagou. Todos pensaram que se tratava de mais uma artimanha do tinhoso clube nordestino.

Enquanto os dirigentes se apressavam em consertar a iluminação para terminar o jogo antes da meia-noite, os comentaristas deitavam e rolavam sobre o time da casa. “Esse apagão é para ninguém ver o vexame que eles estão dando”, dizia um. “Nem que o tal Meia-Noite vire lobisomem eles ganham esse jogo”, provocava o outro.

Rapidamente, um eletricista conseguiu arrumar o gerador e o jogo pôde continuar normalmente. No momento que o árbitro autorizou o reinício, às 23h50, a única nuvem que estava no céu dissipou-se, dando lugar à intensa luz da lua cheia. Desesperadamente, o presidente do clube olhou para o relógio e percebeu que o jogo terminaria exatamente à meia-noite, quando Meia-Noite, o atacante, se transformaria em lobisomem.

O cartola nem pôde pensar no que fazer, pois algo inacreditável acabava de acontecer no gramado. Uma bola foi lançada do meio-de-campo, mais para o zagueiro e para o goleiro do que para Meia-Noite.

O atacante caiu de quatro e, numa corrida velocíssima, enganou defensor e arqueiro, chegou mais rápido e bateu para o gol: 1 a 3. A torcida foi ao delírio e encobriu os gritos desesperados do dirigente para que o técnico tirasse Meia-Noite de campo.

Era tarde demais. Outro lançamento para a área. Quando a zaga adversária se preparava para afastar, um uivo extremamente agudo paralisou todos que estavam num raio de 5 quilômetros do estádio. Meia-Noite, o autor do uivo, matou no peito e estufou a rede, com sua canhotinha infalível.

O final do jogo se aproximava e a pressão dos timboenses dentro e fora de campo era insuportável. Faltando três minutos para o final do jogo, pênalti para o Timbozinho.

Meia-Noite – com pêlos saltando pelo nariz e pelas orelhas – foi para a cobrança. Quando aproximou-se da bola, ergueu a cabeça. Ali não estava mais um rosto humano, mas sim presas enormes, orelhas pontiagudas e olhos vermelhos. O goleiro desmaiou e Meia-Noite, cheio de graça, deu um leve toque na bola, que subiu e caiu mansamente no gol adversário.

De goleiro novo, o visitante segurava o empate quando cometeu uma falta na lateral da grande área. Eram 23 horas, 59 minutos e 55 segundos quando o camisa 10 do Timbozinho preparou-se para a cobrança.

A bola viajou lentamente por toda a grande área e, exatamente à meia-noite, encontrou o último atacante de sua vida esférica. Totalmente transfigurado. Pêlos por todos os poros e patas no lugar das mãos e pés, Meia-Noite voou até encontrar a bola. Com suas presas abocanhou a redonda e caiu com ela dentro do gol. Lá, estraçalhou a bola com seus caninos, para delírio da torcida.

Adversários e árbitro correram desesperadamente do gramado. Num gesto simbólico, um torcedor entrou em campo e assoprou o apito deixado pelo juiz, decretando o final do jogo e a festa do Timbozinho.

Semanas depois, a CBF homologou o título do clube do sertão e confirmou sua presença na próxima Libertadores. Meia-Noite ganhou uma estátua na praça central e todos na cidade estão contando os dias para o confronto com o Boca Juniors. Afinal de contas, se La Bombonera não vibra, pulsa, a Boca do Lobisomem não grita, uiva.

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