Como todo bom brasileiro, conheci a poesia de Wislawa Szymborska, que faleceu ontem aos 88 anos, no ano passado, quando a prêmio Nobel polonesa de 1996 ganhou uma antologia de poemas em português pela Companhia das Letras e traduzida pela professora curitibana Regina Przybycien. Era não só a estreia da poeta em língua portuguesa — à exceção de um poema ou outro aqui e ali — como também a estreia da tradutora em língua polonesa — também com uma ou outra exceção avulsa –, por isso achei que valia uma matéria sobre isso, que foi publicada
Conversar com a professora Regina, e ler o prefácio que ela preparou para as obras selecionadas de Szymborska me causou uma certa simpatia de antemão com a obra da autora. Logo eu, que conto poetas de que gosto nos dedos da mão. Ler as poesias do livro, então, só confirmaram o que já pressentia a seu respeito. A mim, sobretudo, impressionou a simplicidade e a objetividade da poeta, que não se perde em imagens herméticas e sensoriais. Ao contrário, procura direcionar bem os temas e desenvolvê-los da maneira mais acessível encontrada. Não demorou muito para que se tornasse uma das minhas poetas mulheres preferidas.
Obviamente, não se pode dizer de uma escritora que alcançou a láurea máxima da literatura que sua existência não passou em branco. Mesmo assim, acho que uma das principais marcas que a autora deixa é a de que é possível ser belo e ser simples, e criar sensações autênticas e fáceis de serem compreendidas mesmo para pessoas que sejam distantes da realidade polonesa. Não foram, afinal, apenas o holocausto, a tortura e o nazismo os focos da escritora, que fez poemas sobre a pornografia, o teatro, os gatos, a arte da escrita e da própria impopularidade do gênero a que se dedicou — traço indelével de sua personalidade discreta e circunspecta — sempre com ironia, bom humor e uma leveza rara aos poetas que se desejam sérios.
Talvez esse seja um dos maiores encantos que a leitura de Szymborska desperta: a capacidade de encarar a vida com leveza e bom humor mesmo após uma vida de perseguições e embates políticos — escapou de ser deportada para a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial e nos primeiros anos de carreira, permaneceu fiel ao PRL, o partido comunista polonês que censurou suas primeiras publicações. Mesmo assim, nunca deixou de encarar com seriedade do mistério da vida e da morte, e a irreversibilidade dos fatos. Sobre isso escreveu em um de seus mais completos poemas, “A vida na hora”:
A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.
De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.
Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.
Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas, o caráter como o casaco às pressas abotoado —
eis os efeitos deploráveis dessa urgência.
(…)
É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.