• Carregando...

Recebi a mensagem e o texto abaixo do Fabian Ricardo Estevan, leitor assíduo dos blogs. Os coxas, claro, vão gostar mais. Mas vale a leitura. A história é saborosa.

E quem mais quiser mandar textos para o blog, envie para bolanocorpo@gmail.com. Se o texto for bacana, eu publico aqui. E se não for, eu explico por quê. Combinado?

Boa noite Leonardo.

Vi a sua coluna sobre os hologramas e projeções dos jogadores antigos e lembrei de um Conto que escrevi há dois anos. Espero que goste.

Abraço
Fabian


Era final de tarde, janeiro de 2010. Terminei meu expediente no escritório um pouco antes do normal e resolvi sair para espairecer um pouco. Entro no carro, e entre pensamentos sobre família, amigos, problemas cotidianos, vou dirigindo meio sem rumo, como se não tivesse um lugar para ir. Por que tudo acontece? Por que essa mistura de ansiedade, tristeza e ao mesmo tempo, uma esperança que renasce?

Desnorteado, desligo o rádio, para organizar melhor os meus pensamentos. Quando me dou conta, estou no Alto da Glória, próximo à igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Procuro um local para parar o carro, e penso em aproveitar que estou ali para meditar um pouco.

Como em toda quarta-feira, há um grande movimento na rua, e no caminho para a igreja, olho o Estádio Major Antônio Couto Pereira localizado à sua frente, e os fatos do final de 2009 me vêm à cabeça. Um misto de tristeza, inconformismo, revolta e uma dor no coração sem tamanho me pegam em um sentimento repentino.

Mas, ao olhar para o Estádio, noto que há algo diferente nele aquela noite. As luzes do campo estavam acesas. Um senhor saía da igreja, e o perguntei o porquê do estádio estar aberto, já que não havia qualquer jogo aquela noite. O senhor me olhou, me mediu de cima a baixo, fez uma cara de “que louco” e seguiu em frente, sem dizer uma palavra.

Resolvo me dirigir ao campo, circulo o estádio e percebo que a entrada da Rua Mauá estava aberta. Estranho.

Entro no Estádio, completamente vazio, nenhuma alma viva. Nada que fizesse justificar os portões abertos. Fazia tempo que não entrava no Couto, e aquela visão do “gigante de concreto armado”, como dizia o grande narrador esportivo Lombardi Junior, fez com que batesse uma saudade gostosa da minha infância, o que fez dirigir-me ao segundo anel da Mauá, no centro do campo, no lugar aonde assisti vários jogos com minha família e amigos.

O campo verde, perfeito, gramado irretocável, iluminação ótima. Lembrei-me de vários jogos que tinha visto naquelas circunstancias. Aquele 4×2 contra o Santos, em 2002. Aquela virada sobre o Goiás, em 2001. Aquele 3×0 em cima do Atlético em 95. Contra o Ipatinga, os 4 pênaltis do Anderson Lima, aquele gol no ultimo minuto contra o Palmeiras. O grito da torcida, a vibração que vinha da arquibancada, o drible, a defesa, o lançamento, o cruzamento, o gol, a explosão da torcida em um grito uníssono. O estar junto com minha família, meus amigos, e mesmo aquele torcedor que ficava ao lado que, por 90 minutos, era como um velho amigo de infância comentando os lances do jogo. Atmosfera que poucos conhecem, aproveitam e sabem realmente o que significa.

Quando volto dos meus pensamentos, noto que longe, na curva de entrada, um senhor olhava a tudo, com o mesmo olhar contemplativo que eu estava. Ao me olhar, começa a caminhar em minha direção. Era um senhor de terno, com chapéu, bigodinho, baixo. Achei que, como eu, também havia saído da Igreja e notado o campo iluminado e o estádio aberto. Lembrei das lendas do Estádio, que falavam que os fantasmas o habitavam a noite, e que o espírito do Major Antonio Couto Pereira estava por ali. Ri sozinho.

Ao chegar perto, o senhor me diz: “Quem diria… de uma fazenda, conseguimos fazer essa obra fantástica”. Concordei, e lhe perguntei há quanto tempo ele acompanhava o Coxa.

Ele me respondeu “Desde antes desse apelido, desde que ainda jogávamos no Prado. Fui um dos responsáveis pela compra do terreno”.

“Ah é? Que interessante. Qual o seu nome? O Senhor apoiou o Major quando ele queria comprar o estádio?” “Sim”, disse ele, “eu, saí correndo daquela reunião”. Um arrepio me correu as costas, afinal, quem saiu correndo quando sugeriu comprar o terreno no Alto da Gloria foi o próprio Major Antonio Couto Pereira.

Ignorando o meu susto, ele tornou a falar “Não está compreendendo, não é mesmo meu rapaz? Olhe novamente para o campo”. Ao olhar, uma partida estava correndo. Limpei meus olhos, fixei o olhar novamente, e os jogadores continuavam no campo, com uniformes de diversas épocas, correndo, jogando, disputando cada jogada, brigando quando o lance não dava certo. Mas, como era possível? Não havia ninguém ali até esse momento.

Continuou o Major: “Aqui, à noite, essas partidas sempre ocorrem. Um sonho de estádio desses não poderia jamais funcionar apenas uma, duas vezes por semana. Todos os que têm o desejo, o sonho e fizeram em vida por merecer estar aqui, tem entrada livre para entrar em campo a hora que quiser, seja para assistir às melhores partidas que já viram, aquelas que seus pensamentos mais longínquos os levam a ter saudades, seja para entrar em campo, calçar as chuteiras, vestir o glorioso uniforme e jogar com seus companheiros de equipe, com seus ídolos, com seus jogadores favoritos. Mas, dos que não jogaram, só entram em campo quem tem muito crédito com quem manda, ou seja, comigo e com o Chinês”. “O Evangelino está aqui?”, pergunto. “Claro, onde mais ele estaria?” Me respondeu. “Nesse momento, ele está tentando algumas contratações, amanhã ele estará assistindo o jogo na tribuna de honra, no seu local de merecimento, ou mesmo aonde ele sempre assistiu, na curva dos fundos, próximo à entrada do vestiário”.

Olho para o campo, e logo começo a reconhecer alguns jogadores. Bequinha com sua classe orientando a zaga, Rei pegando tudo no gol, Ivo Cavalo de Pau procurava ganhar as jogadas da forma que fosse, Dirceu com sua classe, Maxambomba, Juquinha e Gauchinho tabelando e deixando a zaga adversária louca, Miltinho, fazendo o impossível com a bola nos pés, Duílio, sempre tentando o gol.

Era um jogão de bola, e estava empatado até que lançaram a bola para o Miltinho, na meia direita. Ele driblou o seu marcador, deu no meio das canetas do segundo, e quando o Rei, goleiro, saiu para defender, o Miltinho, com um toque por cobertura, abriu o placar. Na sua boca, um sorriso de satisfação. Ele olha para o Rei e diz: “Velho, mais um gol. Quem ainda é o bom??” Nisso o Tim, técnico, na lateral do campo, o manda parar de brincadeira e voltar a correr.

Tim, Miltinho, Rei, Enio Andrade, Neno, Dirceuzinho, Baby, jogadores e técnicos que eu nem havia visto, mas que eram lendas, jogando uma partida bem ali, na minha frente, e eu contemplando tudo. Meu pai e meu avô me vieram à cabeça nesse instante. Lembrei de todas as histórias que eles contavam, do quanto havia honra, amor à camisa, espírito guerreiro e respeito às nossas tradições.

O Major olha pra mim, e fala: “Calma, o melhor ainda está para vir”. Nisso, uma movimentação fora do estádio ganha a minha atenção. Uma ventania lá fora, apesar de dentro do estádio não haver uma brisa sequer. Uma gralha com cantando no alto de um pinheiro. Várias pessoas circulando, tentando entrar no estádio. “Esses são os que sempre quiseram ser quem somos, mas que nunca mereceram. Eles querem, só querem entrar, mas aqui entra quem tem merecimento, não é para qualquer um”. Mais uma vez, me senti um privilegiado.

Nesse momento, faltando pouco para acabar o jogo, e com o seu time perdendo, Enio Andrade chama um jogador para entrar. Era um branquelo, com certeza descendente de alemão, não muito alto, com nariz protuberante. Ele entra em campo, e no primeiro lance, cria uma ótima oportunidade de marcar. No segundo lance, consegue passar pelo Bequinha e toca pra fora.
Último lance do jogo, novamente tocam para o alemão que havia entrado a pouco, ele corre pela meia, passa pelo Miltinho, que ainda tenta derrubá-lo por trás mas não consegue, e, com um chute forte, empata o jogo, que termina.

“Esse é um dos que eu te falei. Não era jogador, mas pelo que fez em vida, pelo que sempre desejou e quis, ganhou o direito de jogar com seus ídolos. Era uma pessoa que tinha tudo para ser um grande jogador, mas não teve oportunidade. Ele vem da linhagem dos nossos fundadores. O Evangelino fez questão que ele tivesse a oportunidade de entrar em campo, convidou-o pessoalmente para isso.”

Perguntei o nome dele, e o Major, me responde: “Obladen, seu nome é Obladen”. Obladen? Meu coração disparou. Os jogadores já se dirigem ao vestiário, rindo, comentando mais um grande jogo feito, e o jovem descendente de alemão vai junto com eles, riso aberto.

Não pode ser. Coração na garganta. Seria ele? Era! Meu tio Gil Márcio Obladen, que faleceu em 94, ex-conselheiro, torcedor que em 92 foi o único sócio a ir a todos os jogos do time no ano, sobrinho-bisneto e bisneto dos fundadores, grande amigo, Pai, tio. Grande Coxa Branca. Corro para a grade próxima à entrada do vestiário, o alemão se prepara para descer. Dou um grito “OBLADEN!!” Ele não houve. “GIL, TIO GIL”. Ele me olha. Volta dois passos. Sorriso aberto, teve tempo de dizer “Guri, volte amanhã. Saudações alviverdes”. Acenou com o tradicional “v” da vitória e entrou. Não me contive, saudades bateram de vez.

O Major me acompanha e me diz que é hora de ir, o jogo já tinha acabado. Perguntei quando poderia retornar, e ver um jogo completo, rever as grandes partidas que sempre ouvi falar, e principalmente, rever meu tio. Ele disse: “quando passar no estádio, e as luzes estiverem acesas, o portão aberto, entre, é sua casa, seu lar, nosso sonho, nosso lugar”.

Despedi-me do Major Couto Pereira com um profundo agradecimento no coração.
Saio do Campo ainda meio desnorteado, na rua já havia pouquíssimo movimento. No caminho para o meu carro, minha namorada me liga, pergunta onde estive. “No céu”, respondo. Depois dessa noite, passo todas as noites no estádio, e procuro fazer por merecer ver aquele jogo e viver aquilo sonho novamente. Sim, porque não é qualquer pessoa que tem essa possibilidade, ela é para poucos.Ser Coxa Branca, ter um estádio dos sonhos é um privilégio, não é para todos.

Fabian Ricardo Stevan

* Baseado no filme “O Campo dos Sonhos”, de 1989.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]