Como vimos, há uma confusão linguística dando um nó na cabeça do descendente de comunidades imigrantes europeias, popularmente conhecidos no Sul como “colonos”. Eles usam o termo “brasileiro” para descrever os seus conterrâneos não-colonos, o que os transforma, por tabela, em não-brasileiros. Por outro lado, os que já cresceram falando português em casa não vão dizer sem peias “sou alemão” ou “sou italiano”. Por fim, tampouco ficarão muito confortáveis dizendo “sou colono”, porque “colono” tem conotação pejorativa. Eles podem até dizer “sou colono”, mas é um pouco como dizer “sou gordo”: você até pode dizer de si próprio, só que não vai gostar de ouvir “você é gordo”, nem “você é colono”. Então, aos próprios olhos, ele é o quê?
Fora do Sul, o povo em geral não faz ideia da existência dos colonos. Assim, devo explicar que a conotação pejorativa é muito explicável (embora não totalmente) pelo fato de eles virem do ambiente rural. “Caipira”, no Sudeste, e “tabaréu”, no Nordeste, são palavras que servem para ofender quem vem do interior. No Sul, “colono” serve. Mas tem também um componente fenotípico. “Tabaréu” é só uma ofensa; não inferimos nenhum traço físico daí. Não existe “cara de tabaréu”. No Sul, existe a “cara de colono”, que inclui a pele muito branca e os olhos azulões. A isto se soma o fator da língua. Assim, se vocês se esquecerem do marketing progressista, fica facílimo entender a conotação pejorativa de um termo que designa descendentes de europeus pouco ou não miscigenados: imaginem um homem simples saído da roça chegando à cidade grande. Agora imaginem que ele não sabe falar português direito. Agora imaginem o tipo de trabalho que ele vai arranjar não sabendo português direito.
Caso o colono que cresceu falando outra língua em casa saiba falar português direito, terá um sotaque característico que o homem da capital vai associar a esses trabalhos rudes – mais ou menos como o paraibano culto, no Rio de Janeiro, sempre vai evocar o porteiro na cabeça do carioca, por causa do sotaque. E mesmo que o colono já cresça falando português em casa, haverá sotaque, tipo físico e costumes diferenciando-o dos “brasileiros”.
E não: a língua caseira dos colonos não ajuda. Mesmo que magicamente conseguisse uma passagem para a Europa, o colono não seria entendido no país de seus antepassados. A língua caseira que os colonos falam é algum dialeto do século XIX. Universidades europeias mandam linguistas para vir estudá-los.
No caso da Alemanha e da Itália, a Reunificação teve um papel grande em diminuir a força dos dialetos. O caso mais curioso deve ser o da Pomerânia: um país europeu que não existe mais, cuja língua é falada por pequenas comunidades de descendentes de pomeranos na América do Sul.
Culinária exótica
Dito assim, a maioria dos brasileiros vai pensar que são bem exóticos. E são mesmo. Eles é que não sabem. Parece que, em princípio, são, em suas próprias cabeças, meros não-brasileiros, a menos que conquistem a brasilidade por esforço próprio. Eu já penso que os colonos desatariam um nó em suas cabeças caso se entendessem como uma variação da brasilidade, e uma variação digna de ser cultivada.
O meu anfitrião em Porto Alegre lastimou por não poder fazer comigo o mesmo que eu fiz com ele na Bahia, que é levar para almoçar comidas típicas. Aqui não tem comida típica, só churrasco e xis. (O xis é um hambúrguer colossal que os gaúchos comem inteiro. O tamanho das porções aqui me espantou e fiquei com vontade de ver alguma tabela com IMC por unidades federativas.)
Vamos então ao restaurante banal em que ele almoça rotineiramente. Me adverte que é de um colono italiano que não fala português. Chegando lá, há um monte de comida diferente que eu não sei como se come. (Combinar comidas num bufê exige conhecimento prévio dos sabores.) Desperta a minha curiosidade (mas não meu apetite) uma abóbora empretecida e pergunto que diabo é aquilo. O meu amigo fica chocado por eu não conhecer a tal da abóbora caramelizada. E nenhum sulista acredita em mim quando digo que polenta é exótico. Só comi polenta na Bahia na casa de Luiz Mott, que é paulista descendente de italianos do norte. No Rio, tampouco é comum encontrar polenta em bufê.
O meu amigo cresceu falando português, mas descende de italianos de colônia. É evidente que gosta daquele restaurante “banal” por ser o que tinha a comida mais parecida com a da mãe dele. Assim, fui num restaurante “banal” de comida típica de colono italiano, que não sabe que faz comida típica. O velho com uma prosódia peculiar varria a calçada, enquanto os filhos, que sabiam português, atendiam a clientela.
Culinária brasileira
Deveremos então supor que comi culinária típica de algum rincão do norte da Itália, e não brasileira? Duvido. Culinária depende muito de disponibilidade de ingredientes.
No mais, os colonos são exóticos também para os europeus. O húngaro de língua alemã Sandor Lenard foi viver no interior de Santa Catarina em meio aos colonos de língua alemã. Anotava os costumes, percebia entre o renascimento de magia com runas, misturada à magia de negros e índios. Via que as colonas chacoalhavam os bebês para acalmá-los tal como as índias. Achava-os tão diferentes dos seus ancestrais que se perguntava se a dieta e os ares não seriam capazes de explicar. A dieta dos colonos alemães era à base de aipim, inexistente na Europa. De alguma maneira não-documentada, os alemães aprenderam com os índios a plantar e usar a mandioca.
Sandor Lenard usou a comida para marcar diferenças entre colono alemão e colono italiano. Alemão vive à base de aipim, italiano vive à base de milho. Com certeza a culinária deles não pode ser igual à europeia, porque os ingredientes são diferentes. Quanto ao resto do Brasil, diferem no modo do preparo. Sulista tem milho, mas não faz cuscuz no vapor; nordestino tem milho, mas não faz polenta.
Por fim, algo que me chamou a atenção no livro de Sandor Lenard sobre os colonos (“O vale do fim do mundo”) é que ele falava mal do Brasil e bem dos colonos. Dizia que o Brasil estava lá longe, em Brasília, e descrevia as peculiaridades dos colonos (fazer mandinga, chacoalhar de leve os bebês no colo, dieta à base de aipim etc.) de modo a torná-los bastante familiares para mim. Pensei: “Ué. Mas ele não viu que estava enfiado no Brasil?”
Post Scriptum: Escrevi este texto semana passada, em Porto Alegre. Devido a trumbicações, que existem até em empresas de comunicação, ficou perdido. Saliento ter descoberto conotações de "gaúcho", bem como a categoria de "gringo", que é como chamam em certas áreas do Rio Grande do Sul os descendentes branquelos dos colonos italianos e alemães. Uma hora volto a isso.