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Bruna Frascolla

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Ética

A moral que não se ousa dizer moral

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. (Foto: EFE/EPA/MARCIN OBARA)

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O bambambã da economia Steven Levitt escrevia em 1999 que a liberação do aborto causou a queda na criminalidade, porque a prática é amplamente adotada por negras e os nos EUA negros concentram os índices de criminalidade. Como ele é um cientista muito científico, ninguém pediu a sua cabeça. Anos depois, no seu best seller Freakonomics (2005), desrracializou a teoria e argumentou que “o aborto legalizado levou à diminuição de filhos indesejados; filhos indesejados cometem mais crimes; o aborto legalizado, portanto, levou a menos crimes”. No ano de 2019, ele publicou mais um artigo reforçando a correlação entre liberação do aborto e queda da criminalidade. Já sabemos o que vem depois: o pedante vai empinar o nariz e erguer o dedinho para a malta rude e ignara e dizer que é Ciência. A Ciência diz que o aborto deve ser legalizado para reduzir a criminalidade, não importando o que pensem os religiosos obscurantistas e ignorantes.

O pedante em geral tem um diplominha de graduação, mas, por repetir as pessoas mais chiques possíveis, se enxerga como portador de uma procuração da Ciência para falar em seu nome. A minha discordância (e a de todo mundo) só seria explicável por eu ser uma religiosa ignorante e obscurantista, embora eu seja uma ateia que estudou filosofia até o doutorado e tem, portanto, um diploma muito melhor de esfregar na cara dos outros (embora nem diploma de doutorado esteja significando mais muita coisa, graças sobretudo ao Ministro Haddad). Mas justo por eu ter a obrigação de não ser uma ignorante em humanas é que me salta aos olhos o salto normativo dado nesse tipo de raciocínio. A diferenciação do “is and ought”, do ser e do dever ser, era recorrente na filosofia britânica desde David Hume e passou à kantiana. Depois, Weber reformularia a diferenciação nos termos de fato e valor, que são (ou deveriam ser) beabá da sociologia. Do puro ser não se extrai um dever ser; do fato não se pula para o valor. No meio do caminho entre uma coisa e outra há a moralidade, que não é um dado da natureza.

Fatos moralmente indesejáveis

Ora, a ciência pode muito bem estabelecer como um fato que a liberação do aborto está associada à redução da criminalidade. A ciência pode estabelecer como um fato, também, que o assassinato de bebês indesejados reduz a criminalidade. O bambambã da ética, Peter Singer, já em 1995 chancelou racional e moralmente a prática do infanticídio neste “mundo que já está superpovoado e no qual a regulação da fertilidade é universalmente aceita”. Nesse caso, seria preciso passar uma lei que descriminalizasse o infanticídio, já que, por uma questão conceitual, o aumento de infanticídios seria em si mesmo um aumento de crimes. Talvez colocássemos o assalto à mão armada como o grande mal a ser combatido pela sociedade. Nesse caso, haveria uma opção moral por considerar aceitável o infanticídio e inaceitável o assalto à mão armada.

Uma hipótese mais intuitiva é que a transformação de cadeias em câmaras de gás reduz a criminalidade. É certo que morreriam alguns inocentes, mas a criminalidade (presumindo-se a legalização dessa prática) certamente seria reduzida. E como nos EUA a criminalidade está associada à condição de negro, bastaria trancafiar todos os negros dos EUA em tais câmaras para reduzir a criminalidade. Tudo isso seria Ciência. Mas poderíamos ler essas coisas, escrever “ciente” e ignorá-las, porque as consideramos imorais.

A ciência, como todo conhecimento, não exime ninguém de fazer escolhas morais. Muito pelo contrário: antes de a ciência ser vendida como panaceia e obnubilar as religiões, a imagem da árvore da ciência estava atrelada ao início pecado. E com razão: só pode ser mau quem tem liberdade; só pode ter alguma liberdade quem tem algum conhecimento. Animais e robôs são destituídos de moralidade porque são destituídos dessa liberdade humana que está essencialmente atrelada à judicação moral. Homens julgam o bem e o mal. Pretender que não o façam é sonhar com uma curiosa utopia que o converta em gado ou autômato.

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Progressistas interessados

Os progressistas sempre tentaram mascarar sua moralidade (ou imoralidade) alegando que suas medidas científicas eram do interesse do público-alvo. A emancipação da mulher por meio do trabalho foi muito boa para mulheres como eu, com um trabalho agradável e estimulante, mas foi melhor ainda para o capitalista que viu dobrar a oferta de mão de obra. Quanto ao grosso das mulheres, tiveram que labutar nas fábricas para sustentar filhos que elas mesmas não podem criar, e têm de mandar para a creche. Foi traumático no início, mas hoje já é natural a ideia de que deixar os filhos em ambiente doméstico causa o aumento do abuso infantil (não estou negando que aumente, só acho necessário especular que talvez tenha havido uma desestruturação do lar iniciada no século XX, e o fato de não se poder mandar as crianças para casa no século XXI seja um sintoma disso).

Depois da emancipação feminina, veio o direito ao controle de natalidade. Como apontava Chesterton num artigo de 1926 sobre o assunto: “No início mesmo de toda discussão está o fato elementar de que limitar o tamanho das famílias é uma boa razão, não para aumentar os salários, mas para diminuí-los” ("Reforma social versus controle de natalidade", em A Superstição do Divórcio). No século XX, nos acostumamos a uma ideia de que sindicalistas são vagabundos e de que legislações trabalhistas são pretexto para monopólio. Esquecemos, porém, que os sindicalistas e as leis trabalhistas só puderam se tornar tão abusivos porque, sobretudo na Inglaterra de Chesterton, eram reação ao problema palpável dos patrões exploradores. Passou-se a presumir que empregadores são santos e não exploram nunca, e eis que agora nos vemos com um monte de magnatas querendo ditar a moralidade (ou imoralidade) dos seus funcionários e clientes, posando de científicos e desinteressados.

Depois da emancipação da mulher e do controle de natalidade, veio a apologia do aborto como um direito humano. Pode vir a ser um fato cientificamente comprovado que, se as mulheres abortarem em vez de terem filhos, elas ficarão muito mais ricas. Restará saber se a sociedade vai querer orientar seus valores para o enriquecimento a qualquer custo. Para isso, há a propaganda. Os magnatas dos EUA agora pagam a viagem das funcionárias a fim de que abortem e tiram onda de filantropos. Ora, se quiserem tirar onda de filantropos, que deem uma bela licença maternidade.

Na Inglaterra de Chesterton ou Dickens, nenhum patrão teria coragem de pagar a castração dos funcionários – mas nos EUA dos magnatas progressistas é bonito incluir a “transição de gênero” nos planos de saúde empresariais.

Maltusianismo e neomaltusianismo

O eufemismo tudo pode, mas só pega os incautos. Afinal, não é curioso que os “direitos reprodutivos” sirvam só para impedir a reprodução? A ciência permite dar filhos a quem não consegue gerá-los naturalmente, mas não vemos bilionários posando de filantropos por darem fertilização in vitro às funcionárias. Todo esse interesse pecuniário também os leva a “celebrar a diversidade” sexual, ou seja, a querer contratar mais homossexuais. Os quais têm menos tendência a ter filhos do que heterossexuais. E se a funcionária resolver aderir ao lesbianismo político, melhor para a empresa.

O supracitado ensaio de Chesterton dizia que o maltusianismo surgiu como uma resposta do patronato à demanda por maiores salários. Ninguém ousaria dizer na cara dura que os funcionários não mereciam ter uma família normal e não tinham direito a ter tantos filhos quanto seus pais e avós. Assim, saía-se do âmbito moral para o factual: ele não podia ter tantos filhos porque os recursos naturais o impossibilitavam o sustento de tantas crianças. À pergunta “Como vou sustentar meus filhos com esse salário?”, respondia-se com “Diminua a família”. Não por uma questão moral, mas sim factual. Na época de Chesterton, a grande novidade era que o maltusianismo tinha voltado com vestes morais. Havia uma propaganda contra o lar, segundo o qual as mulheres deviam ser aviadoras, navegadoras etc. – tudo, menos donas de casa. Libertador era ter um chefe em vez de um marido. No linguajar do século XXI, diríamos que eles “desconstruíram” a família.

Como a moral é uma coisa passível de ser adotada pelos outros, essa moral empresarial está também no Estado, no Canadá. Lemos que lá a eutanásia foi tão alargada, mas tão alargada, que a vida dos doentes pobres é considerada indigna. Ora, quando a vida fica indigna, é humano conceder a graça da eutanásia. Por isso o Estado não só permite, como banca a eutanásia daqueles que não conseguem viver em condições dignas porque suas doenças não lhes permitem trabalhar para pagar pelo tratamento. Eis o que nos conta a Spectator: “Uma mulher em Ontário foi forçada à eutanásia porque seu programa habitacional não lhe permitia conseguir uma habitação melhor que não agravasse suas alergias aleijantes. Outra mulher deficiente pediu para morrer porque ‘simplesmente não conseguia dinheiro para continuar vivendo’. Outra procurou eutanásia porque uma dívida relativa à Covid tornou-a incapaz de pagar pelo tratamento que tornaria sua dor crônica tolerável. Sob o governo atual, os canadenses deficientes ganharam 600 dólares de auxílio financeiro durante a Covid. Estudantes universitários ganharam 5.000”. Esse é o Canadá de Justin Trudeau, um preposto do Fórum Econômico Mundial. Gente antieconômica morre.

Fake news

Dado o caráter hediondo da moralidade que eles querem impor, não é de admirar que tentem borrar a diferença entre fato e valor – e, uma vez borrada essa diferença, tentem borrar a diferença entre verdade e mentira, criando fatos para embasar as leis que quiserem.

Alexandre de Moraes pode parecer um ministro extravagante, mas a sua tônica de controlar o que é a verdade é geral entre os progressistas. Tanto é que a caça às fake news é reivindicada por entidades tão diversas quanto a ex-grande imprensa (que agora têm “agências de checagem de fatos”), STF (que consegue misturar combate às fake news com direitos LGBT, tudo isso sem desmentir as estatísticas do GGB e da ANTRA) e o PT (desde 2020!). Moro não criou plataforma própria, mas, enquanto era governo, defendia que o Judiciário tomasse essa tarefa para si. Dos grandes atores nacionais, só Bolsonaro escapa a essa regra.

Por fim, para não cairmos nos erros do século passado, resta frisar que o problema não são os empresários em si mesmos. O problema é o abuso do poder econômico, abuso este que só está ao alcance de grandes corporações. Que, como vimos, tem todo o interesse em usar o progressismo para tirar da concorrência o pequeno e o médio empresário.

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