Muito se fala contra “a corrupção” assim, em bloco, como se fosse uma coisa só e igualmente ruim. De minha parte, eu não arrisco sequer dizer que a corrupção seja uma coisa ruim em si mesma. Quando as leis são infames, a corrupção pode ser uma coisa boa. Aponto um exemplo histórico: durante a Era Vargas, a imigração foi muito dificultada; e o Itamaraty criou circulares secretas que mandavam negar vistos a judeus.
De uma forma inquestionavelmente virtuosa, Aracy Guimarães Rosa deu uma de joão sem braço e saiu concedendo visto a judeus. Trata-se da desobediência civil, a inimiga número um de regimes totalitários. De maneira mais nebulosa, porém, burocratas no Sul venderam sua leniência para um esquema de entrada ilegal de judeus pela fronteira. Ainda que tenham feito isso por dinheiro, temos aí um caso em que a corrupção salvou vidas.
No caso brasileiro atual, creio que haja uma sensibilidade à corrupção diferente entre quem usa de serviços públicos e quem não usa. A classe média fala mais da corrupção em bloco. Daí fazer-se um estardalhaço com as acusações de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, crente que haverá o mesmo apelo popular que as denúncias da roubalheira do PT.
Já o pobre que usa serviços públicos tende a se ressentir muito de dois tipos precisos de corrupção: desvio da Saúde e roubo de merenda escolar. Quanto à rachadinha, às vezes ele próprio é um beneficiário do esquema: presta seus serviços de cabo eleitoral a um dado político e, depois da eleição, existe um butim chamado “verba de gabinete” a ser partilhado entre os vitoriosos.
Se o político fizer ao cabo a promessa de uma renda estável no pós-eleição e resolver gastar o dinheiro da verba com assessores formados ou técnicos, aí sim passará por desonesto. Creio que isso seja um problema da Constituinte, que concentrou os recursos em Brasília ao tempo que criou uma porção de pagamento discricionário para vereadores e deputados. E creio também que só com o caso Flávio Bolsonaro a tradicional rachadinha tenha ido para o pelourinho.
Como eu sei que os políticos petistas também sabem disso, creio que o escarcéu com a rachadinha tenha sido, da parte dos petistas, para o consumo da classe média. E creio que, da parte dos jornalistas, se explique em parte por estarem na bolha da classe média e em parte por causa do antibolsonarismo. O que vejo de mais relevante no caso Flávio é a proximidade com milicianos; não a rachadinha, que é feijão com arroz, e vai continuar sendo enquanto gabinete de político tiver um montão de verba discricionária.
Condenação genérica à corrupção no Mensalão
Um clássico político brasileiro é o rouba-mas-faz. O político que alcança a reputação de rouba-mas-faz costuma ser bem-sucedido eleitoralmente, já que a ênfase fica no faz. Dizemos “rouba, mas faz”, em vez de “faz, mas rouba”, porque a suposição generalizada é a de que políticos roubem. E uma vez que você dependa de serviços públicos, ou simplesmente queira ver a sua cidade mais bonita e perder menos tempo no trânsito, na certa saberá logo diferenciar o político rouba-mas-faz do político que, como todos os outros, rouba, e ainda por cima deixa a cidade toda avacalhada.
Não acho que o voto, sozinho, seja capaz de mudar isso. Acho que esse tipo de cenário só é possível por causa da ineficácia da polícia civil e da justiça, já que a impunidade é o maior fomento de qualquer tipo de criminoso.
Durante a crise do Mensalão, o PT se apropriou desse pensamento pragmático com grande sucesso. “Toooooooodos os políticos brasileiros roubam desde 1500”, dizia-se, de modo que o PT estava nivelado com os demais nessa seara. Por outro lado, com o PT a fome acabou e os pobres estavam viajando de avião, aquela coisa toda. Aí a versão oficial passou a ser que o PT cometeu erros, mas esses erros são indistintos do da política geral, e seus atos virtuosíssimos compensam a coisa.
O discurso colou porque, de fato, o PSDB partia para o discurso anticorrupção genérico que é adotado até hoje ao se tratar do assunto. O brasileiro médio não bota a mão no fogo por político nenhum; ainda assim, os tucanos pretendiam se colocar como novo partido da ética quando já eram governo nos dois estados mais populosos do Brasil, já tinham passado pela presidência e já estavam maculados por suspeitas sérias de corrupção. Ao mesmo tempo, do lado tucano não faltava quem falasse contra o Bolsa Família, chamando de esmola, quando o programa ainda era novidade.
Nessa discussão burra e moralista, omitiu-se o fundamental: a compra do Legislativo pelo Executivo destrói o equilíbrio do poder e promove a sua concentração. Ora, não há democracia que resista à centralização do poder na mão de um só.
Roubalheira tradicional
Quando apareceu o famoso bunker de Geddel (que na verdade era um apartamento num bairro bastante aprazível), tivemos diante dos olhos um caso clássico de corrupção. Mas também, convenhamos, uma baita de uma maluquice. Ao que tudo indica, Geddel não era mais que um ladrão dedicado a roubar dinheiro da Caixa. O homem pega um monte de papel moeda, guarda em caixas, usa um apartamento de bairro nobre como se fosse um cofre, pagando condomínio e deixando de alugá-lo.
Essa ideia excêntrica ainda se provou arriscada, já que um dos vizinhos foi o denunciante da movimentação suspeita. Se você mora num prédio em área nobre e tem como vizinho um apartamento eternamente fechado, sem corretor, ao qual comparecem homens transportando caixas, você liga para a polícia. Não bastasse o prejuízo e os riscos do apartamento, o dinheiro em espécie fica lá nas caixas sendo corroído pela inflação.
A mamãe de Geddel, que aliás também estava envolvida em esquema, disse que o filhinho dela é doente. Eu tendo a dar uma dose de razão para a velhinha: o filho não é certo da cabeça mesmo e parece roubar por compulsão. Ninguém me diga que um sujeito que faz um negócio desses é bom da cabeça.
No Rio de Janeiro, o escândalo municipal da Máfia da Saúde pegou sacos de joias. Os ladrões do erário, nesse caso, escolheram um meio de armazenar riqueza que, ao contrário do papel moeda, não está sujeito à corrosão pela inflação. Por outro lado, entre os bens havia uma Ferrari, que não é um bom jeito de armazenar dinheiro. Vê-se por aí a intenção de farrear com o dinheiro.
Esse caso, chamado de Máfia da Saúde, choca o espectador porque ele sabe que isso tem um custo humano óbvio. Se você começar a roubar hospital, os pacientes vão morrer. O dinheiro da quimioterapia e da hemodiálise de milhares de homens, mulheres e crianças, foi desviado para que alguém andasse de Ferrari por aí. Vidas humanas são tratadas com desprezo.
(Assim sendo, quero lembrar que o caso da Máfia da Saúde, ocorrido em 2015, aconteceu sob a gestão de Eduardo Paes, que tinha por secretário Daniel Soranz. Ele está outra vez no cargo e ambos, munidos de selo azul, ficam tuitando que vacina é tudo de bom. Ambos adotaram o passaporte sanitário no Rio, que, graças a Deus, é esculhambado demais para essas leis totalitárias colarem 100%.)
O diferencial do PT
Há quem roube para comprar fazendas, Ferrari, joias, apartamentos chiques; há quem roube para viver como socialites, para deixar os trocentos parentes bem de vida… Tudo isso é velho no Brasil e no mundo. A novidade petista que o discurso anticorrupção genérico não deixa ver é roubar para comprar Poder.
Quando você deixa hospital sem insulina para comprar uma Ferrari, o resultado são pacientes mortos e um idiota com Ferrari. Quando você deixa um hospital sem insulina para abastecer um esquema internacional sujeito a Fidel Castro e Hugo Chávez, o resultado são pacientes mortos e ditaduras consolidadas pelas Américas e África.
Agora é moda dividir liberalismo em economia e costumes, deixando de fora o mais importante: o político. O liberalismo não é uma mera doutrina econômica, e muito menos uma teoria sobre costumes. O liberalismo é uma teoria política que defende a partição do poder para preservar o bem supremo da liberdade.
Não é possível minimizar a corrupção petista, porque ela não é normal na história do país. Toda a sua corrupção foi orientada para o acúmulo de poder. Na política, compraram pelo menos o Poder Legislativo. Na economia, a prática do capitalismo de compadrio favoreceu a destruição de pequenos concorrentes e criou um empresariado monopolista leal ao governo. (A Venezuela Chavista criou a boliburguesia também, antes de Joesley ser inventado por aqui.) E por fim, o dinheiro obtido com empresários amigos e com o saque das estatais serve para pagar cachês fabulosos de magos do marketing e comprar apoio.
Essa forma de corrupção é a compra de um golpe de Estado. É algo ainda mais grave do que crápulas com joias e carrão.