Jeff Bezos, CEO da Amazon, discursa durante a Conferência de Mudança Climática da ONU (COP 26) em 2021.| Foto: EFE/EPA/ROBERT PERRY
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Quatro pernas, bom; duas pernas, ruim. Mutatis mutandis, este é o princípio que rege o letrado ocidental médio do século XXI. “Duas pernas”, sobretudo no Brasil, é qualquer um que possa ser rotulado como bolsonarista. Mas não é só no Brasil (pois convém falar mal de Bolsonaro na Europa também), nem é só bolsonarista (até ontem, a ordem era execrar “trumpistas”). Assim, basta decidir quem é o “duas pernas” do momento e cuidar para ser um “quatro pernas”. A bondade e a respeitabilidade não têm luz própria; alcançam-se por mera oposição ao outro, tachado de vilão. E quando se quiser destruir a reputação de alguém, bastará acusar-lhe do crime de dois-patismos.

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É uma prática que cresce sobre a covardia, e que degrada o ambiente cultural. A virtude do intelectual passa a ser o conformismo. Se você não disser nada de novo, receberá o prêmio de ser deixado em paz pelos difamadores. O intelectual não pode mais esperar ser reconhecido por alguma ideia nova. Sérgio Buarque pôde ser aclamado pela ideia do cordialismo; Raymundo Faoro, pela do patrimonialismo. Estes dois nomes têm vínculos históricos com o PT. Isto não os impediu de modo algum de alcançar respeitabilidade fora do seu círculo político. Hoje, porém, a realidade social do mundo inteiro já está inteiramente explicada pelos dogmas progressistas, pela “sociologia diversitária”, para usar uma expressão de Mathieu Bock-Côté. E este é bem preciso ao dizer que “o progressismo é uma revelação: a civilização em que vivemos é radicalmente inaceitável. A revelação exige não um paciente trabalho de releitura da ordem humana, mas antes que se leve esta última a julgamento, em nome de outra história a ser escrita” (O multiculturalismo como religião política, p. 83). O estudioso de humanas tem doravante duas opções viáveis: converter-se em papagaio ou chutar o pau da barraca.

Para tornar a situação da esquerda mais ridícula, a sociologia diversitária é um dogma imposto verticalmente pelo grande capital. O mundo corporativo já fala abertamente em ESG – sigla de “Governança Social e Ambiental” –, que culmina com o governo da sociedade por parte de empresas privadas concertadas entre si, com o povo de fora. A parte social é lacração e a ambiental é ao estilo Greta Thumberg.

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Bezos sim, Marx não

Ou seja: no frigir dos ovos, após décadas de esquerdismo e anticapitalismo dominantes, o bom intelectual de esquerda é aquele que tem Jeff Bezos em conta mais alta do que Karl Marx. Embora eles provavelmente nunca tenham pensado nesses termos, esse nivelamento está implícito. Afinal, Marx era um homem do seu tempo: nascido antes da Revelação, não sabia que o machismo, o racismo e a homotransfobia são piores do que a exploração do proletariado pelo capital. Jeff Bezos, a seu turno, faz o possível para redimir os pecados do Ocidente. É verdade que ele é um homem branco cis hétero bilionário, mas – dirá o intelectual – ele é esclarecido o bastante para subsidiar o aborto de suas funcionárias. Por que é bom um capitalista subsidiar aborto? Ora, porque a nova Revelação disse que as mulheres têm que ter o direito ao aborto e que o aborto tem que ser normalizado. Que a gravidez é uma forma de controle sobre os corpos das mulheres, e bom mesmo é sair transando a esmo, sem procriar nem criar vínculos.

É claro que o povo não concorda. Assim, cabe ao intelectual esquerdista esclarecer o povo, seja na marra – criminalizando a sua livre expressão, por exemplo –, seja via educação, de preferência desde a infância. A Disney, que é mais uma outra megacorporação, está aí para ajudar. A mãe vai para o trabalho, porque o salário do marido não basta, e deixa o filho em casa para ser educado por um monte de CEO esclarecido. Até o departamento de marketing da Burger King tem mais autoridade para educar crianças do que os pais. Isso é ESG, e isso é um bypass na democracia. Através do ESG, o CEO progressista manda no filho do evangélico. O intelectual jura que ele está esclarecendo o capitalista, mas não percebe que ele é peça descartável, selecionada conforme os interesses patronais.

Há uma meia dúzia de intelectuais esquerdistas críticos do identitarismo, é verdade. No entanto, é uma raridade encontrar um que não derreta feito açúcar perante o risco de ser acusado de dois-patismos. Criticar a esquerda, sim, desde que isso não fortaleça a “extrema direita populista” – ou seja, o político eleito pelos trabalhadores. O destino desse nicho é constituir uma contracultura irrelevante, pois é incapaz de lidar com o fato de que a “extrema direita” é o único agente da política institucional a se opor ao identitarismo. O evangélico normal e o esquerdista à moda antiga vão para o mesmo paredão identitário, mas só o primeiro esboça uma reação. O segundo não só não esboça nada de concreto, como ainda ataca a reação. É como se um anticomunista inveterado, preso em Auschwitz pelos nazistas (que prendiam conservadores também), pegasse paus e pedras para atacar o Exército Vermelho em 1945. Uma estupidez estupefaciente.

Há, entre os letrados, a lealdade à “esquerda” – nem que a “esquerda” seja essa coisa aí, que jogou a preocupação com igualdade econômica no lixo para ficar adulando bilionário monopolista. A “esquerda”, hoje, nada mais é que uma patota de gente “respeitável” que age segundo a pressão dos seus pares. Há muita venalidade para explicar isso; mas há muita falta de inteligência também.

Igual à Inglaterra de 100 anos atrás

Pegando-se a régua direita X esquerda de 20 anos atrás, que se pautava pela melhoria da vida dos trabalhadores em oposição à predação patronal, G. K. Chesterton, um conservador inglês, seria muito mais esquerdista do que qualquer identitário da Folha. Em seus escritos sobre as regulações progressistas impostas às famílias (vejam-se os livros Eugenia e outras desgraças e A superstição do divórcio & outros ensaios), defende a tese geral de que o Estado havia enlouquecido, tendo sido tomado por pretensos homens de saber voltados à gestão de escravos. Os homens e mulheres não deveriam mais ser livres para se escolherem uns aos outros; em vez disso, uma autoridade deveria desfazer casamentos em função da condição de feeble minded imputada a um dos cônjuges. Se a livre procriação continuasse a existir, a Inglaterra ficaria disgênica.

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Em vez de olhar para causas sociais do caos nas grandes cidades – que tinham tudo a ver com o êxodo rural e a miséria do capitalismo primitivo –, buscavam-se causas físicas a serem resolvidas por cientistas da natureza, dispensando-se assim qualquer reforma econômica. Com essas leis “científicas”, o povo era transformado em rato de laboratório: “eu simplesmente não consigo conceber qualquer pessoa responsável propondo-se a criar leis [eugênicas] baseadas em nosso saber minguado e indefinida ignorância sobre a hereditariedade”, dizia Chesterton. Na época, nem se tinha descoberto o DNA ainda, mas a Ciência já era tão sabida que ia resolver o problema da degeneração social.

Em vez de dar ao trabalhador um salário bom para sustentar mulher e filhos, resolvia-se o problema tirando a esposa (pelo divórcio) e diminuindo a quantidade de filhos (“controle de natalidade”). O socialismo, que tinha começado como uma ideia bela e simples, se provara simples demais para ser correto. Em seguida – há mais de cem anos atrás – seu nome se tornara um meio de piorar ainda mais a vida do trabalhador, agora todo regulado e vigiado pelos patrões: “perdeu-se o ideal da liberdade e o ideal do socialismo foi alterado, até não ser mais do que uma desculpa para a opressão dos pobres”.

Assim, querem que sejamos felizes sem família, sem casa própria, sem carro, sem sequer eletrodomésticos, comendo inseto em vez de bife. E se um dos slogans do WEF trazem à mente os versos “Eu não tenho carro / eu não tenho teto”, da canção popular “Lepo-lepo”, devo dizer que nem lepo-lepo haverá, porque ansiedade e depressão são generalizadas, e antidepressivo costuma cortar libido. Sem carro, sem teto, sem lepo-lepo, comendo inseto. E inseto requentado num micro-ondas alugado da Amazon ou similar.

Ditadura de pernósticos

Como o mundo atual lembra muito essa Inglaterra de Chesterton pouco estudada, acho que cabe ler o que ele dizia dos intelectuais de então. Afinal, a esquerda de hoje mostra que a adesão ideológica é pífia, o que importa mesmo é a valorização do pertencimento ao clube de bem-pensantes – que bem podem ser descritos como janotas, pedantes, pernósticos. Deixo aqui uma citação escrita no ano de 1910: “O perigo é que o mundo pode sucumbir sob o poder de uma nova oligarquia – a oligarquia dos pernósticos. E se alguém me pedir, de bate-pronto (à maneira dos círculos de debate), a definição de pernóstico, só posso responder que um pernóstico é um oligarca que nem sequer sabe que é um oligarca. Um círculo de pequenos pedantes, do alto de uma plataforma, declara unanimemente (durante uma reunião a que ninguém comparece) que não há nenhuma diferença entre os deveres sociais dos homens e os das mulheres, a educação dos homens e a das crianças na sociedade. Abaixo deles, ferve aquela multidão oceânica de milhões que pensam diferente, que sempre pensaram diferente e que sempre pensarão. A despeito das maiorias esmagadoras que conservam a velha teoria da vida, tenho sinceras dúvidas sobre quem vencerá. Devido à inércia da teologia e de todos os outros sistemas claros de pensamento, os homens voltaram, em grande medida, a depender de seus instintos, como os animais. Como acontece com os animais, seus instintos estão certos; mas, como também acontece com os animais, esses instintos podem ser domesticados. Diante da agilidade dos intelectuais e da inércia da multidão, tenho sérias dúvidas sobre qual dos lados triunfará, muito embora tenha plena certeza sobre qual deles deveria triunfar” (A superstição do divórcio & outros ensaios, p. 146).

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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