Com o noticiário, aprendemos que Castillo é conservador. Ele acha que casamento se dá entre homem e mulher e que mulheres não têm pênis. O fato de Castillo ser um marxista é um mero detalhe; afinal, os tempos mudaram tanto que, se alguém ainda lesse Marx, iria tachá-lo de conservador. Na verdade, os tempos mudaram tanto que, se alguém lesse qualquer coisa que não tivesse sido escrita há menos de dez anos, descobriria que a humanidade inteira era radical de extrema-direita, exceto por Judith Butler e uns dois ou três. É gay e só quer namorar pessoas com pênis? Conservador!
Essa mudança foi precedida por outras capazes de chocar esquerdistas velhos. Me lembrei disso ao traduzir este texto sobre o impacto da lógica de mercado nas universidades. O argumento é simples: se pela lógica do mercado as empresas querem fidelizar e satisfazer os clientes, as universidades, uma vez que as adotem, se empenham em agradar os clientes – isto é, os alunos e seus pais. Notas baixas, nunca mais! O artigo é tanto mais interessante quanto aponta que é uma mudança cultural, em vez de uma característica peculiar das universidades particulares. Afinal, não importa se pagamos mensalidades ou impostos: o fato é que pagamos, e se pagamos, temos de receber.
Direitos… do consumidor
Aqui entra a minha lembrança. Um professor velho, que fazia política na UNE durante os tempos de estudante, ingressara em organização clandestina e está nas franjas do petismo até hoje, ficara perplexo com os alunos do movimento estudantil que invadiram a reitoria. Pela primeira vez na história da UFBA, os alunos picharam a reitoria, cujo interior é cheio de azulejos portugueses tombados pelo Iphan. As pichações chegaram rente aos painéis. Segundo o professor, que foi negociar com os estudantes, eles se sentiam portadores de direitos do consumidor.
Papo de esquerdista velho? Sim, em parte, já que tudo de que eles não gostam é culpa do capitalismo. Mas um relógio quebrado acerta duas vezes ao dia, e a vivência no movimento estudantil fez desse professor um observador privilegiado das mudanças de mentalidade ocorridas nesse grupo.
Antes a Revolução era pensada em termos sociais. Todos viveriam numa sociedade melhor. Hoje os estudantes não falam mais muito em Revolução; reivindicam direitos para as suas pessoas. Eles queriam que a universidade desse tais e tais coisas porque a condição de estudante lhes dava direitos, sem que isso implicasse lá muitos deveres. Essa relação, na qual um lado tem sempre razão, remete mesmo ao direito do consumidor. No plano oposto à esquerda, a visão se repete: paguei impostos, então tenho uma série de direitos a serem garantidos pela universidade. É a fórmula de Thatcher, segundo a qual a sociedade não existe, e em vez disso existem apenas indivíduos pagadores de impostos. Creio que, no frigir dos ovos, essa ideia de fato equivalha todo direito a direito do consumidor. E o resultado é que as universidades vão tratar o pagante como cliente, jogando a qualidade do ensino lá para baixo.
Mercado mágico
Nessas horas, sempre haverá quem diga que o mercado resolve tudo – pois este é um pensamento em moda, sobretudo na direita. Assim, se as faculdades de medicina forem formando médicos tão ruins que matem seus pacientes, os egressos ficarão conhecidos, ninguém mais vai querer ser seus pacientes e por conseguinte eles perderão dinheiro. As faculdades boas serão mais procuradas e as ruins serão fechadas.
Digamos que seja verdade. Nesse caso, o pensamento da moda admite que alguns têm que morrer para que o equilíbrio das faculdades de medicina seja restabelecido. Eu não hesito em qualificar esse pensamento como imoral.
No mais, não creio que seja verdade. No mundo que temos diante dos olhos, há cada vez menos universidades autônomas e cada vez menos médicos autônomos. Há grandes conglomerados educacionais e grandes conglomerados hospitalares. Dada a qualidade do ensino dos primeiros, bem poderíamos imaginar os jovens da medicina como quinquilharias numa esteira de produção: eles entram pagando, são maquinalmente levados adiante enquanto pagam, depois vão parar nos hospitais. O paciente, via de regra, não tem outra opção senão ir a um desses conglomerados que o plano paga, consultar-se com um desses médicos que ele não conhece.
É verdade que o mercado sempre dá um jeito. Aqui no Brasil, sabemos que São Paulo tem algumas universidades de prestígio – e todo presidente que se preze vai ao Sírio-Libanês ou ao Einstein. O mercado preserva a excelência para os que podem pagar por ela. É bom que ela continue existindo, assim como é bom que alguns mosteiros tenham conseguido preservar obras clássicas durante as invasões bárbaras. Mas não é nada boa uma sociedade na qual a formação de quadros seja legada à autorregulação do mercado.
E se não pagássemos?
A lógica do mercado diz que quem pagou tem direitos de consumidor. Aplicada ao Estado pela senhora Thatcher, quem pagou impostos tem direitos de consumidor. Se o aluno pagou pela federal, então ele deve ser por ela tratado igual a um cliente. A coisa soa bastante apelativa para nós, que estamos acostumados a ser maltratados por funcionários públicos concursados que fazem o que dá na telha, sem medo de punições por vagabundagem.
Fica então a pergunta: se o aluno não tivesse pago impostos ou matrícula, então a universidade não teria obrigações nenhumas para consigo? No plano privado, não é nenhum absurdo pensar nisso. Alunos promissores às vezes ganham bolsa. No plano público, não raro universidades recebem alunos estrangeiros como forma de estreitar laços com outros países. Me lembro de a UFBA ter recebido haitianos, por exemplo. Digamos então que o seu país passou por uma catástrofe e outro, estrangeiro, o recebeu como aluno numa universidade. Ou então – para ficarmos num caso mais simples ainda – que você é estudioso e ganhou uma bolsa numa universidade particular de prestígio. Isso dá à universidade o direito de lhe tratar como ela quiser, de lhe ensinar o que ela quiser, e de lhe dar a nota que ela quiser?
Não duvido que libertários assintam. Mas seriam só eles. Qualquer pessoa normal intui que isso é moralmente errado, ainda que não saibam explicar como.
Eu tenho uma explicação simples. Assim como o mercado tem suas leis, a universidade tem as suas. Querer que a universidade se guie pelas leis do comerciante é como querer que o dono do mercado se guie pelas leis da universidade. Que escolha para caixa quem souber dissertar melhor sobre as propriedades vitaminais dos alimentos à venda. É ridículo e errado num caso; é ridículo e errado no outro.
Deturpação das notas
Outro dado do texto me trouxe memórias da UFBA: os alunos, cada vez mais, pedem notas mais altas. Como aluna, fosse na universidade ou na escola, nunca dei importância a menos de meio ponto na média, exceto quando se tratasse de um 9,7, que dava a sensação de uma bola na trave, ou de décimos que me tirariam da recuperação. Quando professora substituta, estranhei muito ao ver alunos aflitos me implorando algo como 0,2 quando tinham ficado com média superior a 9. Perante a minha perplexidade, me explicaram que era porque eles precisavam da maior nota possível para conseguir o curso que desejavam. Eram alunos do “bacharelado interdisciplinar”, uma versão tabajara dos colleges norte-americanos, que são antessalas para os cursos de verdade. Os alunos então passam três anos tentando conseguir a maior média possível para depois entrarem em cursos de verdade. Eles eram do bacharelado interdisciplinar de humanas e iriam disputar cursos de humanas com outros egressos do curso. Psicologia, desejado por eles, era dos mais cobiçados.
No entanto, há um resultado prático positivo para a UFBA e demais universidades que adotarem os bacharelados interdisciplinares: as notas dos alunos vão subir. Não por serem melhores, mas por irem “chorar no pé do Caboclo” (como se diz em Salvador) atrás de décimos. Assim, o burocrata pode defender esse modelo alegando que as universidades que os adotam têm notas superiores às dos que não o adotam. (Quando, ao meu ver, o bacharelado interdisciplinar, introduzido no ministério de Haddad, é uma perda de tempo e recursos.)
Nos EUA, há ranking para tudo, e rankings servem para atrair clientes-alunos. Nossa época tem fetiche por números e acha que qualquer coisa quantificada, de preferência com vírgulas, reflete caráter científico. No frigir dos ovos, os rankings universitários devem refletir somente uma bolha. Pois, como diz o texto mencionado, “agora [a nota A] é três vezes mais frequente do que em 1960. É a nota mais comum nessas instituições de cursos de quatro anos”.
As sociedades ocidentais precisam de formação de quadros. É papel da universidade providenciá-lo, e suas leis não são as do mercado.
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