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Bruna Frascolla

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Natalidade

A glorificação do QI é uma nova forma de hierarquização da humanidade

Elon Musk durante viodeconferência em novembro de 2021. (Foto: EFE/ Alejandro García)

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Em meados do século XX, a sociedade dos EUA foi conquistada pela propaganda da Planned Parenthood, segundo a qual as mulheres deveriam abandonar a maternidade como fonte de sentido para suas vidas e substituí-la pelo prazer sexual e pelo dinheiro. Os negros eram o alvo predileto dessa propaganda e, somando-se esta aos cheques para mães solteiras, uma decadência cultural tomou conta desse grupo populacional. A miséria à qual se deixaram reduzir foi interpretada como um resultado da escravidão, e mais políticas corruptoras foram apresentadas como remédio para a situação – não obstantes as contundentes refutações dos intelectuais negros Thomas Sowell e Walter Williams.

A propaganda não se deteve nos negros, nem nos EUA. O jornal The Washington Post trouxe esta manchete: “Esta adolescente texana queria fazer um aborto. Agora tem gêmeos”. A matéria mostra uma “vítima” da lei, uma moça branca de 18 anos branca, com seus dois bebês brancos. Quando a lei texana passou, ela teve de fazer um exame para ver se já havia batimento cardíaco. Como havia, ela manteve a gravidez e se casou com o namorado, pai das crianças. A julgar pela matéria, tudo está bem com a moça, mas ainda assim a jornalista (uma divulgadora da Planned Parenthood, segundo Matt Walsh) se empenha em extrair piedade dela: “Algumas vezes Brooke imaginou como seria a vida se ela não tivesse engravidado […]. Ela teria feito o ensino médio […]. Imaginou um apartamento em Austin e dinheiro suficiente para uma viagem ao Havaí, onde iria nadar com golfinhos numa água tão clara que daria para ver os dedos do pé”. Poucas pessoas do mundo vão a praias paradisíacas. Mas a propaganda é essa: se não tiverem filhos, as mulheres (e só as mulheres) ganharão rios de dinheiro. Às vezes a propaganda antinatalista se faz de propaganda pró-educação – como se o mercado de trabalho já não estivesse saturado de diplomas, e um bacharelado bastasse para bancar férias no Havaí.

Elon Musk ataca o antinatalismo

Assim, dado o estado de coisas, é animador ver Elon Musk, uma figura de proa dos EUA, se posicionar em prol do natalismo. Essa é uma das questões que opõe Bill Gates a Elon Musk – e é natural que seja assim, já que o ESG, adotado pelo primeiro e atacado pelo segundo, é neomalthusiano e antinatalista. Enquanto dirigia seus tuítes contra Bill Gates e aos donos do Twitter, Elon Musk chegou a lamentar que não tenhamos ficado de luto pelos não-nascidos, já que a resposta à pandemia fez despencar a natalidade mundo afora. Mais recentemente, ele manifestou preocupação com a taxa de natalidade do seu país adotivo, que está abaixo da reposição, e afixou o tuíte em seu perfil.

Eu acharia tudo ótimo, não fosse a sua última defesa do natalismo um tanto suspeita. O leitor já ouviu falar do filme Idiocracy? Eu nunca vi, mas ouvi falar muito porque o povo que gosta ou gostava de Dawkins em geral gosta desse filme. E o fã de Dawkins, por definição, é um ateu que se sente mais inteligente do que o resto da humanidade pelo mero fato de ser ateu. Esse ateísmo é o fim do percurso do protestante que, depois de problematizar o São João com base na Bíblia, problematizou o Natal com base na Ciência. Daí opõe ciência a religião e fica em apuros para explicar a história da ciência entre os séculos XVI e XVII, quando praticamente todo cientista experimental que desafiou a Igreja era cristão e às vezes católico.

Pois bem. Em sua mais recente investida natalista, Elon Musk disse: “Assistam à abertura de Idiocracy. Quando eu pergunto aos meus amigos por que eles ainda não têm filhos (pouquíssimos têm), soa exatamente como no filme. Pode virar um documentário, já que está virando verdade”. No vídeo aparece o enredo de Idiocracy: a Ciência possibilitou que as pessoas com QI baixo vivessem muito e elas não pararam de se reproduzir. Ao mesmo tempo, as pessoas com QI alto não paravam de adiar o momento para ter filhos e não tinham nunca (o casal igual aos amigos de Elon Musk planeja, planeja, o homem morre infartado depois de se masturbar para coletar esperma e a viúva congela os óvulos esperando que um homem certo para ela apareça). O resultado é que os inteligentes entraram em extinção. Assim, um sujeito mediano, congelado dos dias atuais e descongelado 500 anos depois, é um gênio na nova sociedade de gente com QI ínfimo.

Et voilà a hierarquização da humanidade outra vez. Em vez de raças, pode entrar pelo QI, outra vez com as bênçãos da deusa Ciência e a complacência dos bem pensantes.

Glorificação do QI

Certamente Elon Musk tem um QI altíssimo. Quanto a Dawkins e ao ateísmo, numa googlada descobre-se que eles têm rusgas (cá com meus botões eu apostaria que Musk é um ex-fã), mas também se descobre que as diferenças são nominais, pois Musk se diz agnóstico em vez de ateu por achar que o agnosticismo, em vez do ateísmo, está em linha com a Ciência. Musk e Dawkins têm a mesma régua última (a Ciência), nenhum deles acredita em Deus e a discussão entre ambos é bizantina (caso o leitor queira saber por que sou ateia, é porque quando criança eu achava que os adultos sabiam de tudo. Quando cresci um pouquinho, descobri que em matéria de religião eles só repetiam as coisas que tinham ouvido. Aí não acreditei em mais nada, e toda vez que aparece alguém cheio de certezas, como Dawkins, eu antipatizo logo. Não acredito em Deus, nem vou acreditar na deusa Ciência, cujo fã clube é muito arrogante).

Assim, como bom fiel da Ciência, Elon Musk parece acreditar no poder mágico dos genes para fazer bons filhos. De fato, o consenso científico aponta para uma correlação entre genética e QI, além de reconhecer o QI como uma boa medição da inteligência. Como o legado medieval considera a racionalidade a diferença específica humana, os hierarquizadores protestantes da humanidade alegavam que algumas raças eram mais inteligentes do que outras, portanto superiores; e hoje os hierarquizadores ateus podem posar de antirracistas com consistência enquanto escolhem o QI.

O QI é mais ou menos como a altura: herdamos dos pais os genes que nos dão uma tendência, mas é possível termos um QI mais baixo, ou uma altura mais baixa, a depender do meio. Mesmo que seja bem alimentada, a população do sertão do Cariri vai ser baixinha, porque é o biotipo de lá mesmo. Um dinamarquês, porém, se bem alimentado, vai ser altão. Mas se você deixar o dinamarquês com fome na infância, seu crescimento será comprometido e ele não será altão. Além disso, o sertanejo que passou fome na infância será mais baixinho ainda. Ou seja, as pessoas têm diferenças inatas no QI, mas a infância é determinante para cada um atingir o melhor possível. E, diferentemente da altura, que se limita a questões físicas, o QI precisa de interação humana. Dá para pegar crianças com boa genética, alimentar bem, mas, se ela for largada na primeira infância, vai ter sérios problemas cognitivos. O melhor exemplo disso é a história das crianças romenas largadas em orfanato estatal. Ceaucescu queria aumentar a taxa de natalidade na marra, pegar os filhos das mulheres que não pudessem criá-los, e, em vez de encher a Romênia de trabalhadores, encheu-a de jovens inválidos.

Nos EUA, o debate acerca do QI sempre resvala para o livro The Bell Curve, que examina os dados de QI racialmente e coloca o grupo dos negros dos EUA abaixo do grupo dos brancos dos EUA, e este abaixo dos orientais nascidos nos EUA ou na Ásia. O livro foi criticado por Sowell, que desconfia da medição do QI dos negros em função de sua precária alfabetização (se o teste é escrito, a má alfabetização atrapalha o desempenho). Seja como for, a argumentação do livro é que um gráfico com a demografia do QI tem uma forma de sino: quanto mais burro e mais inteligente, mais raro. Quanto mais mediano o QI, mais frequente. Muitos são medianos, poucos são muito burros ou muito inteligentes. A novidade do livro é que o sucesso financeiro e profissional é condicionado pelo QI: não importa se a criança nasceu pobre ou rica, se negra ou branca; se ela tem um bom QI, ela terá sucesso; se tem um mau, será uma fracassada.

Mães e QI

Se eu fosse Sowell, olharia para as crianças da Romênia. Uma coisa é ser filho de uma solteira pobre; outra, ser filho de uma solteira drogada. Ou, simplesmente, ser o boneco que uma mulher usa para fotografar e postar no Instagram. Recentemente constatou-se mundo afora a primeira queda no QI global. Para o neurocientista Michel Desmurget, o corte geracional relevante é ter nascido com a grande presença da internet. Esta está associada à “diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional; diminuição do tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras (lição de casa, música, arte, leitura etc.); perturbação do sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade; subestimulação intelectual, que impede o cérebro de desenvolver todo o seu potencial; e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral”. Ao fim e ao cabo, de nada adianta nascer com bons genes se não houver alguém que lhe dedique amor.

Elon Musk é um natalista que faz o que prega. Ele se casou e teve um filho por meios convencionais com a primeira esposa. O bebê teve morte súbita. Depois, teve apenas com fertilização in vitro. Foi uma gravidez de gêmeos e outra de trigêmeos. A mãe do seus outros filhos é uma cantora canadense. Ambos deram ocasião a manchetes: o primeiro, por ter um nome impronunciável; o segundo, por ter sido encomendado de uma mulher paga para engravidar. Quando o bebê chegou à mãe biológica, parece que eles já não estavam mais juntos. Uma filha adulta ganhou o noticiário por ser transgênero e querer tirar o sobrenome do pai.

Gravidez por substituição é algo muito novo e muito caro. Se eu fosse alguém muito preocupada com QI, faria o máximo para manter uma boa interação entre mãe e filho e estimular o desenvolvimento cerebral o mais cedo possível. Quereria uma mulher que desse de mamar (se ela não gestou, não vai produzir leite) e fugiria de uma mulher que não gostasse de carregar o próprio filho no ventre. Dada a conduta, Elon Musk parece achar que os genes fazem tudo sozinhos, e basta um gênio engravidar uma mulher que não seja burra para ter bons filhos. Mas ele está aí às voltas com uma filha fazendo barraco na imprensa.

Chomsky é tão sagaz assim?

Segundo os dados disponíveis, chineses e japoneses são mais inteligentes do que brancos (excetuados os judeus asquenazitas). No entanto, o mundo inteiro – chineses e japoneses inclusos –, ao menos até o século passado, votou com os pés nos países construídos pela cristandade. Com seu QI humilde, o Ocidente construiu uma civilização na qual os outros querem morar.

Se esse pessoal fã de QI fosse tão adepto da ciência quanto alega, a primeira coisa a ser feita na valoração do QI seria observar as biografias de pessoas de QI alto e as sociedades com uma demografia de QI alto. Ao meu ver, as personagens de QI alto mostradas na abertura de Idiocracy são idiotas. As opiniões políticas de Noam Chomsky, emitidas do alto de seu QI estratosférico, são idiotas. O Japão tem muita gente inteligente, mas marcha para uma população cada vez menor – e não por planejamento, mas por dificuldade nas relações humanas, cheio de adultos virgens.

Primeiro veio a moda da educação: todo pai tinha que fazer os filhos estudarem muito para ficar muito inteligentes e terem sucesso na vida. O resultado, descrito por Michael Sandel em A tirania do mérito, é um monte de niilista com doença mental. Vamos acompanhar Elon Musk para ver se ele não representa uma tendência à engenharia genética como jeito de ter filhos muito inteligentes.

Mas a raiz desse mal talvez seja a necessidade de hierarquizar e ser superior. Um homem mediano não pode ter uma vida plena de realizações e de sentido? Para que criar filho igual a potro de competição?

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