Existe uma mitologia romântica segundo a qual povo na rua é a vitalidade da democracia. Dificilmente há engajamento suficiente para que o povo, de fato, fique nas ruas defendendo os seus interesses. O resultado é a especialização da atividade de manifestante. Era isso que se tinha com as famigeradas mortadelas da CUT e dos eternos estudantes que faziam graduação em vereador pelo PCdoB.
Essa mitologia se construiu sobre as bases de outra, a da fúria popular que derrubava um poder corrupto ou ilegítimo e fazia a Revolução. Tenhamos em mente a Queda da Bastilha, um marco da Revolução Francesa. Desde a modernidade, as mudanças de regime usam essa mitologia para se legitimar. Começou com o protestantismo, culminou na Revolução Francesa. Mesmo os Estados Unidos, país que goza em sua História de uma considerável estabilidade interna, surgiu fundado numa oposição entre o Povo e seus usurpadores. “We, the people” é a pessoa que dá legitimidade ao novo poder. A hereditariedade de alianças feudais como fonte de legitimidade cai por terra. Deus também. Resta o Povo. Fundamentar em Deus já era difícil, porque religiões diferentes terão ideias diferentes sobre qual é a real vontade divina, e um príncipe que quiser romper sua lealdade prévia irá legitimar o primeiro herege popular que lhe der respaldo.
Com o Povo, a situação não é tão diferente. Uns dizem que o povo é o meu povo, ao passo que o povo alheio deve ser coibido. Que fazer? Existe uma solução análoga à via religiosa, que é selecionar uma autoridade e dizer que ela tem especial acesso à imperscrutável vontade popular. O marxismo ocupou essa posição; seus sacerdotes-cientistas previam o movimento das massas e profetizavam os rumos do Povo. Com o nazifascismo e, depois, com o identitarismo, particularizou-se a condição de povo: povo é quem tem a raça tal, o sangue tal, a cultura tal. A mentalidade do verdadeiro povo lhe é inacessível porque você não pode ocupar o “lugar de fala” alheio. E se um ariano agir em desacordo com o que o Führer espera dele, os campos de extermínio podem manter a situação em que todos os arianos pensam igual, eliminando os que pensam diferente.
Dada a mitologia da legitimidade por meio do Povo, fica muito difícil distinguir moralmente a Marcha Sobre Roma da Queda da Bastilha. Na Itália fascista e na França revolucionária, os monarquistas eram parte do povo. Não conheço nenhuma história passada na Itália fascista que chegue aos pés dos afogamentos em massa de Nantes ou o cerco a Lyon, feitos pelos revolucionários franceses para dizimar a parte da população que não se alinhava com a sua ideia de povo. Os comunistas eram uma minoria ínfima da população italiana; os judeus só foram perseguidos tardiamente, e por pressão estrangeira. É difícil imaginar fascistas dizimando uma cidade italiana para impor o novo regime de cima a baixo. No entanto, aprendemos na escola que a Revolução Francesa foi um avanço para a humanidade, enquanto que a Itália fascista foi abominável.
Solução americana
Como fazer para estabelecer uma opinião comum? O socialismo, por exemplo, é um regime que dificilmente encontra respaldo na moralidade tradicional do povo. Em seu 'O caminho da servidão', Hayek comenta: “Os socialistas – pais civilizados da progênie bárbara de nossos dias – sempre esperaram resolver esse problema pela educação. Mas que significa educação neste caso? Por certo já aprendemos que o saber não pode criar novos valores éticos e que o acúmulo de conhecimento não leva os homens a terem a mesma opinião […]. De fato, os socialistas foram […] os primeiros a reconhecer que a tarefa por eles assumida exigia a aceitação generalizada de uma Weltanschauung [cosmovisão] comum de um conjunto definido de valores. Foi nessa tentativa de produzir um movimento de massas baseado numa única concepção do mundo que os socialistas criaram a maioria dos instrumentos de doutrinação usados com tanta eficácia pelos nazistas e fascistas.”
Os socialistas teriam criado a escolarização voltada para promoção de sua ideologia política e a propaganda em seu favor. Isto se revelou eficaz e os nazifascistas se apropriaram.
No entanto, cabe observar que o primeiro ministério de propaganda do mundo não é da Alemanha nem da Itália, mas dos EUA – o CPI de George Creel. A Alemanha e a Itália perderam a guerra; os EUA venceram. Os mesmos esquemas doutrinais de ditadura totalitária entraram em vigência nos EUA e vivem lá há muito tempo. Hoje, ostensivamente, pode-se ver que a ideologia de gênero e a teoria crítica da raça (ou neorracismo) são dogmas de Estado impostos à educação básica e aos treinamentos de corporações privadas. Os EUA de Biden estavam sob inflação durante as eleições de meio mandato – os EUA não são um país acostumado a inflação –, e, ainda assim, a pauta dos Democratas foi aborto, remédios com tarja e casamento gay. Em quantos países do mundo essa estratégia eleitoral teria sucesso?
Suponhamos que a Alemanha Nazista não fosse derrotada e desse aos alemães o direito de votar, mantendo porém a propaganda (imprensa e entretenimento inclusos): quais as chances de Hitler sair do poder? Nos EUA, idem. No começo do século, a paraestatal Planned Parenthood não ousava defender aborto como meio contraceptivo; limitava-se a reduzir ao máximo o nascimento de crianças (especialmente as negras) evitando a concepção – o que já era tabu. Os tabus foram quebrados, e hoje o aborto é visto por boa parte do país como um direito inalienável e um meio de contracepção corriqueiro.
Pois bem: é possível instaurar um regime de feições totalitárias numa democracia, desde que a propaganda fique concentrada na mão de uma meia dúzia de atores coordenados.
Revolução colorida ou terrorismo?
O que deveria chocar qualquer pessoa de bom-senso é a reação dos progressistas (imprensa inclusa) às manifestações do domingo. Invasão e vandalismo são os termos mais naturais para descrever o que ocorrera ali. No entanto, “invasão” vinha sendo riscado do vocabulário jornalístico e substituído por “ocupação” – e as invasões noticiadas eram invariavelmente de esquerda. O vandalismo, que faz do perpetrador um vândalo, era substituído por depredação. Os black blocs, em particular, eram queridinhos da imprensa. Não é violência quando se quebra vidro, diziam. Caetano Veloso, idoso adolescente, tirou uma foto posando de black bloc. E os black blocs mataram o cinegrafista Santiago Andrade. Mas nunca foram chamado de terroristas. (Como lembrei outro dia, até saiu uma lei antiterrorismo à época. A lei, porém, era feita sob medida para deixar progressistas de fora.)
Que se saiba, não houve um único morto domingo. Ainda assim, os eventos passados são tratados como terrorismo.
A imprensa ocidental tem suas revoluções prediletas. As revoltas no Chile são lindas; dá um monte de morto, mas ninguém chama de terrorismo. Na Ucrânia, em 2014 derrubaram o presidente eleito que era alinhado com a Rússia numa revolta conhecida como Euromaidan. Não foi bonita e contou com uma milícia neonazista antirrussa. A milícia foi incorporada ao Estado e hoje temos de achar que a Ucrânia é o bem na luta contra o mal.
Se a imprensa quisesse, domingo teria havido uma Revolução Verde-Amarela. Estavam lá todos os elementos para ser descrito como uma Tomada da Bastilha. No entanto, preferiram tratá-lo como Marcha sobre Roma.
O erro de interpretação de 64
Os revolucionários (ou golpistas) de 64 seguiram à risca a mitologia do poder popular para reivindicar a legitimidade. Segundo o mito, os militares foram chamados pelo povo para salvar o país do comunismo, então encarnado por Jango. O povo, como sempre, era parte do povo. Quem conferiu legitimidade às manifestações então foi a imprensa. Não posso pensar em outro setor da sociedade ligado à opinião em que houvesse um consenso. Entre os intelectuais sempre houve os esquerdistas; na universidade, idem.
A outra coisa elementar que não pode deixar de ser notada é que Jango não era exatamente o cara que deu uma medalha de Ordem do Cruzeiro do Sul a Che Guevara. Quem fez isso foi Jânio Quadros, cuja renúncia causou o temor da ameaça comunista. Faz sentido?
Jango não era comunista; Jango era um herdeiro de Vargas, que passou de implacável perseguidor de comunistas (no Estado Novo) a aliado de Prestes (na democracia). Não é seguro dizer que Jango representaria a ascensão do comunismo no Brasil. O que é seguro, sim, é dizer que ele traria de volta a hegemonia gaúcha sobre a política brasileira – coisa que muito desagradaria os liberais de São Paulo. Sairia um ex-prefeito da capital paulistana e primeiro ex-governador de São Paulo desde a República Velha a ocupar a presidência e entraria um herdeiro do caudilho gaúcho que a elite paulistana tanto abominava.
Ao cabo, o golpe de 64 acabou trazendo de volta líderes gaúchos, com políticas que desagradaram a mesma elite paulistana. Só aí a imprensa começou a desgostar da Revolução e passou a chamá-la de golpe. Estas três coisas importantes fizeram 64 ocorrer: 1) imprensa; 2) elite paulistana; 3) apoio dos EUA.
Como o povo acreditou nesse mito, vem tentando replicá-lo desde 2013. Mas contra os interesses da imprensa, dos paulistanos e dos EUA.
Fim do ano legislativo dispara corrida por votação de urgências na Câmara
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Frases da Semana: “Alexandre de Moraes é um grande parceiro”
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais