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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Virtudes

A perda da capacidade de entender o que é ser bom

(Foto: Bigstock)

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Muito se tem falado da sinalização de virtude, a qual tem sido atribuída também a um único espectro político. Se virmos alguém condenando a sinalização de virtude alheia, podemos apostar que esse alguém não é de esquerda, nem progressista. Tem grandes chances de ser liberal clássico ou conservador. A despeito de se tratar de política, agora, em março de 2022, as acusações de sinalização de virtude têm boas chances de se referirem a alguém que se gaba de usar máscaras mesmo sendo permitido ficar sem. De fato, durante esta pandemia a propaganda inculcou a ideia de que tomar vacinas (qualquer vacina, sem dar uma de abominável “sommelier”) e usar máscaras era um ato de amor ao próximo, de um senso de coletividade. Assim, gabar-se de seguir usando máscaras de fato é um ato propagandístico da própria bondade. E é claro que esse ato divisivo coloca o lugar não só do bom, como também do mau. Sabendo que lhe cabe o lugar do mau, o conservador e o liberal acusam o progressista, o devoto da Ciência, de ser um sinalizador de virtudes. Um frívolo, um hipócrita. Nessa, amiúde nem reparam que aquilo que se chamava de esquerda até ontem desapareceu. Os céticos quanto ao capitalismo sumiram; agora, irmanam-se com os lavajatistas na defesa da Ciência e seus bispos, os executivos da Pfizer.

Outra coisa a qual conservadores e liberais deixam passar são os motivos. O que faz alguém se empenhar tanto em exibir virtudes? Cada um tem sua experiência, e algumas pessoas têm bons motivos para achar que é tudo uma questão de cinismo, ou de oportunismo. Mas proponho que se recue no tempo: foi na pandemia que se iniciou a mania da ostentação de virtudes? De novo, cada qual tem sua experiência, então haverá quem revise o seu passado e conclua que sim. Mas quem esteve em ambiente de gente letrada dirá um rotundo, um sonoro NÃO a essa pergunta. A compulsão por sinalização de virtudes já era pesada na década passada, com o politicamente correto e as chamadas pautas identitárias. Pode-se dizer que é um ambiente de maioria esquerdista, e é verdade. Mas podemos considerar também que há um perfil letrado de classe média e alta mais propenso à sinalização de virtude, e que esse perfil é muito mais amplo do que os nichos de esquerda. Chegou a pandemia, mudaram-se as narrativas políticas, e a sinalização de virtude, que antes se hospedava nos corações das viúvas de Lula, se alastrou para círculos antipetistas.

Questão de culpa

Falo do cenário brasileiro por ser o que conhecemos melhor. Mas como o identitarismo (ou progressismo) surgiu nos Estados Unidos, convém olhar para lá, a fim de enxergar o quadro geral. Ademais, como importamos todo tipo de bobagem progressista, olhar para os EUA é como olhar para as nuvens negras no horizonte que estão contra o vento.

Em Black Rednecks and White Liberals, Thomas Sowell critica o mito imposto à sua sociedade, segundo o qual a escravidão é um evento único na história da humanidade, por eles praticado. Ele também mostra que está redondamente enganado quem pensa que a escravidão está essencialmente atrelada ao racismo, já que foi praticada por povos de todas as cores contra os seus vizinhos. Negros escravizaram negros; orientais, orientais; brancos, brancos etc. E faz aquilo que sempre recomenda contra a visão dos ungidos: comparou a escravidão no Ocidente e nos Estados Unidos à escravidão em outras culturas e países. Não é razoável comparar os países a utopias; para valorá-los bem, o correto é comparar com outros países.

Pois bem: com base nessa propaganda, “nos Estados Unidos, e sem dúvida em outras sociedades, um dos maiores legados psicológicos da escravidão foi um sentimento de vergonha e ressentimento na população negra, e um sentimento de culpa na população branca. A reiterada representação da escravidão como uma experiência peculiar negra faz com que esta pareça, falsamente, um singular destino vergonhoso ao qual uma raça particular se submeteu, sendo preciso que alguns dos seus descendentes façam exageros retóricos para compensar, e, se possível, extraiam benefícios compensatórios dos outros. Aos brancos, a falsa representação da história da escravidão faz alguns se sentirem singularmente culpados e responsáveis pelas desventuras atuais dos negros. Tais atitudes, bem como as muitas contracorrentes que elas geram, dificilmente são um contexto para discussões razoáveis ou para a solução de questões sociais de hoje”.

Aqui o brasileiro de classe média reconhecerá a culpa burguesa, um fenômeno bastante comum no Brasil ainda antes da onda progressista, que era voltado para os pobres. A preocupação com os pobres, na tradição católica, está estreitamente ligada à caridade. O catolicismo é uma religião pré-moderna, e na Idade Média – como tanto explica Foucault n’A história da loucura – fazia-se caridade por se enxergar no mendigo a imagem de Deus. Deus viria à Terra disfarçado de mendigo observar como os homens agem. A caridade era um jeito de ir para o Céu, não um jeito de compensar as injustiças do mundo – até porque o acerto final de injustiças cabe a Deus, e o homem, muito mais humilde à época, nem sonhava com engenharia social. Essa cosmovisão acabou por decreto com o Rei Sol, que criou asilos estatais e fez o clero, todo burocrático, dizer ao povo que Deus jamais viria vadiar como mendigo. Começa a modernidade, e a miséria, de condição humana, passa a problema social a ser gerido pelo Estado.

Se antes o homem esperava ganhar uns pontinhos a mais com Deus pela caridade, se o mundo era uma antessala caótica da Vida Eterna (esta, sim, ordenada), podemos concluir que a caridade não era movida por culpa. Logo, isso de fazer o bem a outrem por culpa na consciência é um problema moderno.

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Catarse ególatra

Há décadas, Sowell tem penado para mostrar que as políticas progressistas (ou liberals) para os negros têm sido desastrosas. Nesse livro em particular, ele foca nas escolas negras e na educação de pobres em geral. Segundo os dados que traz, o que mais atrapalha é a imposição burocrática do método de alfabetização que não ensina a soletrar e trata as palavras como se fossem ideogramas (outro problema que importamos), a cultura racista dos próprios negros segundo a qual ser estudioso é “agir como branco” (cultura essa celebrada e fomentada por progressistas brancos), e o fato de não haver centros de excelência para alunos dedicados (se você botar CDFs com bagunceiros, os CDFs serão sacrificados sem benefício nenhum dos bagunceiros). Sowell traz uma série de exemplos de excelentes escolas de negros e minorias étnicas; para reforçar a importância da cultura, aponta que os orientais chegaram bem pobres aos EUA, não tinham nenhuma “representatividade” no quadro docente e seus pais sequer sabiam falar inglês direito – não obstante, prosperaram. Em particular, Sowell gosta muito de citar a escola Dunbar, uma escola de elite só para negros, cujo perfil socioeconômico era bem baixo. Não obstante, os CDFs aprendiam grego e latim. A escola surgiu em 1870 e foi desmontada quando a política de dessegregação fez com que ela se tornasse mais uma escola pública e recebesse os alunos do bairro, deixando de ser uma escola de CDFs.

Sowell é bem pragmático, bem pé no chão, e é negro. Deveria ser a pessoa ideal para quem quer que quisesse aplacar a culpa pela cor branca, não? Então por que a sociedade como um todo dá ouvidos aos progressistas? Ele acha que é porque o fracasso atrai dinheiro. Quem apontar a desgraça educacional dos negros poderá passar o chapéu pedindo mais dinheiro para os pobres coitados. Negros bem-sucedidos não servem para expiação de culpas nem caridade culpada; logo, não servem para pegar dinheiro.

A resposta é verdadeira, mas não suficiente. Se as pessoas de fato se sentem culpadas pelas misérias dos negros e querem fazer algo a respeito, a consequência natural é se inteirar do problema. Para se inteirar do problema, ninguém melhor do que Sowell.

Daí ser razoável pensar que as razões econômicas não sejam bastantes para explicar tudo. Talvez o grande público esteja justamente atrás de vítimas com as quais terá sua pequena catarse, dizendo “oh, meu Deus! Coitados dos negros! Apoio a destinação de mais dinheiro para a educação negra!”. Ai dos negros, se eles deixarem de servir para o papel! Como os culpados farão para se sentir bons?

Culpa megalomaníaca

Ninguém normal sente culpa por ter chovido demais (acrescentei a palavra “normal” depois de me lembrar de ter visto matérias sobre a “ansiedade climática” de jovens europeus). Isso se deve ao mero fato de que ninguém normal se sente na capacidade de gerir a chuva; assim, resta lamentar que tenha chovido demais. Se alguém se sente culpado pelas misérias dos negros, daí inferimos que a pessoa se julga capaz de resolver os problemas dos negros. É só por omissão de Joe, o Poderoso, que os negros estão como estão. Se Joe pressionasse mais os políticos, a sociedade, o Estado, tudo estaria resolvido. É como que Todo-Poderoso por procuração: sua boa vontade pode tudo por meio da coletividade.

Por que, então, não reformar a consciência e aceitar que o mundo não está sob o seu controle? Tamanha mudança deveria atirar a pessoa numa crise de ansiedade, que é justamente o sentimento que temos ao ficarmos muito inseguros. Ansiedade é um problema frequente no mundo contemporâneo. Mas além disso há a posição confortável no universo moral que se ganha. Joe ganha o negro, para se sentir mais poderoso que ele; o militante negro ganha um branco culpado, para se sentir moralmente superior a ele. Ambos, branco e negro, ganham um vilão, para ambos se sentirem moralmente superiores: é o dissidente. Tudo isso sem fazer nada, só na garganta.

Todos os adeptos dessa mentalidade saem ganhando. A sinalização de virtude serve para assegurar que o universo moral está inabalado. Eu sou bom por oposição a você, pois uso máscara, seu vilão. Eu sou bom porque defendo distribuição de modess para garotas pobres. Como você ousa ser contra, seu malvado? E assim vive o sinalizador de virtudes: por oposição. Se você, o mau, de repente passar a usar máscara e defender a distribuição de modess, aí eles vão ficar sem saber o que fazer. Como ficam mesmo, quando Bolsonaro diz alguma coisa com a qual concordam.

Perda da noção de bondade

Ao cabo, a própria noção do que seja a bondade acaba comprometida. Tudo o que são capazes de apreender é um certo adestramento com vaga referência ao bem comum. Como adestramento dispensa pensamento, a referência ao bem comum pode vir sendo cada vez mais débil. O homem absorvido por esse mundo moral abre o Twitter, ou um site de sua ideologia favorita, e vê qual é a ordem da vez. Agora precisa ter uma opinião veemente sobre o presidente da Ucrânia cujo nome ele não sabia um mês atrás, para não ser um abominável putinista. Amanhã pode ser um ministro do Timor Leste ou um columbófilo do Reino Unido: tanto faz. Nenhum sacrifício é demandado, nenhum preço é pago, nenhum resultado é avaliado, nada de muito complexo precisa ser pensado. Basta repetir as palavras.

Tudo isso só pode ser reflexo de uma vida bem vazia, destituída de propósitos individuais. Se tirarmos essa convicção dessas pessoas, o que será que vai lhes restar?

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