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A pressão por pensamento único na direita, parte 1
| Foto: Pixabay

Desde 2016 não tenho uma boa relação com a esquerda. O ano do impeachment foi um marco da degeneração do ambiente intelectual universitário, com professores fiscalizando redes sociais de alunos e se revelando, em suas crenças, indiscerníveis de aluninhos de DCE.

O grosso da gente que se considerava “de esquerda” entrou num surto do qual não saiu até hoje, e os que não entraram adotaram uma destas duas posturas: ou reviram suas crenças políticas e abandonaram o rótulo, ou passaram a se considerar a única esquerda verdadeira, ainda que composta por uma meia dúzia de gatos pingados. O primeiro grupo é cheio daqueles que aprenderam a fazer contas e passaram a se dizer liberais. As corporações empresariais ocuparam o lugar sagrado do Estado em suas cabeças.

Esse movimento na esquerda em 2016 coincidiu com a identificação da esquerda com o fanatismo identitário. Se a esquerda tradicional não via com bons olhos essas correntes burguesas que desprezam o trabalhador para tratar de moda afro e beijo gay, em 2018 era ponto pacífico que a eleição de Bolsonaro constituía um risco à vida de negros, gays, mulheres, índios, quilombolas, pessoas portadoras de nanismo etc.

Os escritores costumam ter uma ideia do perfil do seu leitor. De minha parte, percebo que existe um nicho da esquerda que gosta de coisas que escrevo. Trata-se dos dois ou três gatos pingados que se mantiveram na esquerda tradicional e chamam a atual de ex-querda. O que os atrai na minha escrita é a minha oposição incondicional ao identitarismo, por eles partilhada. Sinto que posso ter uma conversa honesta com eles, por mais extravagantes que sejam suas ideias. Mas não posso fazer o mesmo com um identitário, seja ele um autodeclarado esquerdista ou liberal. Em matéria de política nacional, esses gatos pingados tendem a se reunir em torno de Aldo Rebelo, embora este não se diga mais de esquerda e tenha saído do PCdoB. Ciro Gomes é complacente com o identitarismo e misturou-se demais com o lulismo em sua trajetória. A pegada nacionalista meio retrô de Aldo Rebelo pode ser vista em seu portal Bonifácio.

Assim, olhando para trás, podemos dizer o seguinte acerca da esquerda: ela comportava um dissenso interno muito amplo, sofreu uma pressão por uniformização, essa pressão foi vitoriosa e hoje ela não comporta mais dissenso. Reina o pensamento único progressista ou identitário.

Eu acho que a mesma pressão está ocorrendo na direita, e acho que a pressão é para que haja um pensamento único disfarçado de esquerda e direita; um pensamento idólatra de corporações empresariais e visceralmente antidemocrático. Um pensamento pró cartel que enxerga os Estados nacionais ora como obstáculo (na medida em que são democráticos e legalistas), ora como instrumento (na medida em que têm poder de compra e monopólio da violência legítima).

As correntes da nova direita na década de 00

Chamo de nova direita aquela que surgiu independentemente do apoio à ditadura militar. O liberalismo de Roberto Campos remonta à ditadura, mas é um pensamento autônomo em relação a ela. Em 1983, Donald Stewart Jr., brasileiro, criou o Instituto Liberal no Rio de Janeiro, e suas atividades estão em continuidade. À frente do instituto está Lucas Berlanza, pesquisador aficionado por Carlos Lacerda. Por aí se vê que esse liberalismo faz jus ao aspecto político, que é a democracia.

Carlos Lacerda foi, na maior parte da vida, um defensor da democracia contra regimes autoritários: esteve contra Vargas e fez campanha pela redemocratização. Com a ditadura militar, guardou uma relação ambígua, já que aderiu a um golpe que tirasse Jango e pusesse apenas um general num mandato tampão para o país se aquietar. É uma corrente americanófila e promove o norte-americano Milton Friedman, um autodeclarado neoliberal.

Creio que esta seja a direita organizada mais antiga do Brasil em atividade. Embora fosse composta por alguns gatos pingados, a esquerda provavelmente os tinha em mente ao chamar meio mundo de neoliberal.

Uma corrente independente do Instituto Liberal, porém aparentada, é a dos “austríacos”, isto é, a dos seguidores da escola austríaca de pensamento político-econômico. Ludwig von Mises dá nome ao instituto e Friedrich Hayek pertence à corrente. Junto com os anarcocapitalistas seguidores de Rothbard, agregam-se no Instituto Mises Brasil, fundado em 2007, em São Paulo, por Hélio Beltrão. O site do Instituto Mises poderia ter informações sobre sua história. Seja como for, depois dos anos 10 o anarcocapitalismo seria moda na juventude, portanto podemos apontá-lo como uma tendência independente que alcançou bastante sucesso no mercado de ideias. Seu foco no aspecto econômico não deixa de lado a teoria política.

Em 2008, Olavo de Carvalho funda o Curso Online de Filosofia (COF). Era um intelectual autodidata munido de uma personalidade carismática e um trajeto bastante agitado. Sua vida já incluía passagens por: Partido Comunista Brasileiro, comunidade mística islâmica, cursos de astrologia e colunas nos jornais mais respeitados do Brasil. O sucesso foi estrondoso, e já em 2008, mesmo ano da fundação do curso, Olavo de Carvalho já contava com milhares de admiradores pelo Brasil, muitos dos quais fanáticos insuportáveis que passavam o dia xingando os outros na internet.

Internamente, Olavo era famoso pela tese do sucesso do gramscismo no aparelhamento das instituições de ensino e da produção cultural, pela denúncia do Foro de São Paulo e por apresentar uma seleção de autores diferente da apresentada nas universidades. (Registro, aliás, o seu feito de trazer a obra de Voegelin para o Brasil.) Externamente, era conhecido pela agressividade dos seus seguidores e pela bizarrice de suas teorias, tais como a da Pepsi feita com fetos abortados. Bastava uma alma escrever na internet que, ao contrário do que Olavo disse, a Pepsi não tem feto abortado, e apareceriam comentaristas que ela nunca viu mais gordos xingando-a e fazendo mil estrepolias exegéticas para dizer que Olavo tem razão.

Eu não tenho problemas com a figura do louco que mistura a Verdade à sandice. Há até alguma beleza nisso e o teatro retrata. Mas eu tenho problemas com o pinscher que escolhe uma pessoa para confiar cegamente e fica latindo contra quem abale a sua crença. Esses não podem ser levados a sério como interlocutores e são tão incapazes de discussão quanto um identitário que xinga todo mundo de racista ou transfóbico.

O PT feliz com Bolsonaro

Enquanto a esquerda estava em plena calmaria nos anos que precediam o impeachment, as múltiplas correntes da direita fervilhavam. Conheciam-se, articulavam-se, brigavam por protagonismo nas manifestações. Não havia nenhuma pauta definida, nenhum candidato discernível. A tradicional pauta da intervenção militar sempre aparecia em cartazes, por mais que a nova direita protestasse. E segue aparecendo. Quanto aos partidos, que fazer? Em 2013, os manifestantes proibiram as bandeiras de partido. O verde e amarelo imperava, sem que surgisse nenhum partido capaz de representar os anseios difusos das multidões antipetistas.

Um deputado folclórico começou a ganhar destaque. Lá na mais vetusta direita havia um deputado que representava no Congresso os interesses dos militares da Repressão e defendia abertamente Ustra. Juntava-se aos evangélicos na causa contrária à agenda LGBT, que ainda nem tinha Q.

Os petistas acharam-no um vilão perfeito e parecem ter se esforçado para dizer ao Brasil: “Se vocês não ficarem conosco, vão ter que ficar com o bicho papão!” E apontavam Bolsonaro. Muito mais tarde, já em 2018, Breno Altman chegou a chamar de ideal a presença de Bolsonaro no segundo turno, porque ela significava a certeza da vitória do PT. (Breno Altman é um intelectual orgânico, dono do portal Opera Mundi. Vocês podem ver a cabeça dele entre a de Maduro e Evo, ao lado de Stédile.)

O PT se revelou um péssimo leitor da realidade.

Correntes de direita surgidas na década de 10

Dessa década são o Partido Novo (2011), o MBL (2014) e o Livres (2016).

Comecemos pelo mais velho. O Novo foi a primeira iniciativa político-partidária do antipetismo. Assim, não é de admirar que estivesse coalhado de futuros apoiadores de Bolsonaro: era a única opção que se apresentava como antissistema então. Apesar de a base de apoiadores ser grande, a de financiadores iniciais era centralizada. Os financiadores eram do Itaú Unibanco. Podemos dizer que é um partido de banqueiros monopolistas que contou com adesão ampla.

O MBL (2014) brotou do meio olavete e tinha o fito de liderar manifestações de massas para tirar o PT da presidência. Ao contrário do Novo, o MBL nasceu com o intuito de ser um movimento de massas, em vez de uma instituição partidária. O MBL nunca se movimentou para formar um partido próprio; em vez disso, optam por tratar partidos como hospedeiros. Do jeito que é capilarizado e gozava de apoio antipetista, o MBL não teria grande dificuldades para criar um partido.

O Livres (2016) tem como seu nome de proa Fábio Ostermann. Ele foi um dos fundadores do MBL e saiu em 2015. Diz que saiu do movimento por querer que ele fosse institucionalizado e ganhasse transparência. Talvez possamos descrever o Livres como o resultado de um racha no MBL, com Renan Santos ficando e Ostermann criando um movimento novo. Ao contrário do MBL, o Livres não tinha tanta facilidade para regularizar um partido. Assim, optaram por um acordo com o coronel dono do PSL para fazerem da sigla a sua casa.

Destaco, porém, que o Livres plantou uma tremenda confusão filosófica na praça. Seu slogan é “liberal por inteiro”. Isso deveria significar “liberal na economia e nos costumes”, como se a face política do liberalismo político não fosse a base, e não houvesse “liberalismo político”. Então se o sujeito sabe fazer conta e é a favor de bundalelê, é liberal, mesmo que seja contra a liberdade de expressão e defenda a centralização do poder de decidir o que é Verdade nas mãos das agências de checagem. Uma barbaridade.

Uma barbaridade que é tendência na direita aceita pela mídia tradicional e que tende a torná-la indiscernível da “ex-querda” identitária.

Nesse sumário, faltou um racha importante ocorrido dentro do olavismo, que fica para a próxima.

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