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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

A reforma tributária fará o brasileiro trocar o álcool por crack e Rivotril?

Obscurantistas atentam contra a saúde e a moral públicas. (Foto: Simony Jensen/Domínio público)

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O tabaco e o álcool são dois alvos históricos do progressismo. O tabaco, nativo das Américas, era visto como a vingança do homem vermelho contra o homem branco, pois tal vício adoeceria a raça superior. O álcool, a seu turno, serviu de cavalo de batalha dos puritanos contra inimigos variados: os católicos, os anglicanos tradicionais, os imigrantes pobres dos EUA (italianos e irlandeses), os alemães durante a I Guerra. Católicos, luteranos e anglicanos tradicionais usam vinho na missa. Assim, criminalizar o álcool é um jeito de criminalizar religiões e culturas inteiras. No entanto, isso se faz usando a ciência e a saúde pública como pretexto, transformando em técnico e imparcial o que na verdade é manipulação parcialíssima.

Desde o fim da Guerra Fria e da ascensão dos EUA como potência única, o Brasil vem empreendendo campanhas contrárias ao tabaco e ao álcool. O cigarro foi taxadíssimo e acabou se tornando um filão do PCC, que contrabandeia do Paraguai. Ainda assim, pode-se supor que a campanha antitabagismo tenha sido benéfica à juventude, que aprendeu desde cedo sobre os malefícios do cigarro e não aderiu ao hábito. Mas o álcool, que tem uma importância social histórica, sobreviveu em melhor estado às campanhas politicamente corretas. O Brasil perdeu suas famosas propagandas de cerveja na TV, mas os tiozões continuaram lotando botequins nos finais de semana. O álcool continua presente entre nós das maneiras mais variadas, que vão desde o vinho caro da ocasião especial à cachaça vagabunda do mendigo alcoólatra. O álcool sem dúvida pode ser um problema grave para alguns indivíduos e famílias; no entanto, tratá-lo como se fosse crack é impossível. O álcool pode ser antissocial, mas pode também ser uma fonte especial de sociabilidade, com direito ao sagrado.

Álcool, que é lazer, não pode porque “faz mal à saúde”, mas maconha pode, porque é “medicinal”

Há pouco mais de um século, Chesterton vivia no olho do furacão progressista. Vejamos o que ele escrevia sobre a relação da nova cultura dominante com o álcool: “Uma nova moralidade veio ao nosso encontro com certa violência e se relaciona ao problema da bebida alcoólica. Os entusiastas do assunto variam desde o homem que é posto para fora dos pubs meia noite e meia, até a dama que ataca os balcões dos bares com um machado. Em tais discussões, quase sempre sentimos que uma postura moderada e bastante sábia é dizer que o vinho, ou coisas do tipo, devem ser ingeridos como remédio. Atrevo-me a discordar disso com particular veemência. A forma genuinamente perigosa e imoral de tomar vinho é tomá-lo como remédio. E por esta razão: se alguém bebe vinho por prazer, está tentando obter algo excepcional, algo que não espera a qualquer hora do dia, algo que, a menos que seja um tanto louco, não tentará obter a qualquer hora do dia. Mas se alguém bebe vinho para ter saúde, está tentando obter algo natural; ou seja, algo sem o que não deve viver; algo sem o que dificilmente passará sem consumir. […] É fácil não permitir que alguém tenha prazeres; difícil é negar a aquisição da normalidade.” Está em Hereges, capítulo VII.

118 anos depois, neste Brasil em que não se pode fazer propaganda de cerveja, eu abro o Twitter e me aparece propaganda de “maconha medicinal”. Álcool, que é lazer, não pode porque “faz mal à saúde”, mas maconha pode, porque é “medicinal”. Nada impede, aliás, que nos próximos 100 anos o álcool faça o mesmo percurso que o cânhamo no Brasil: era um hábito de lazer arraigado entre pobres de origem angolana até Vargas ter sucesso em erradicá-lo com base em argumentos eugênicos, para depois voltar como símbolo identitário de universitários, ser considerada inerradicável e, por fim, liberada para fins medicinais. É imoral dizer: “Vou beber um copo ou dar um trago para me distrair”, mas é correto – científico! – dizer: “Vou beber um copo ou dar um trago porque o médico mandou.”

Há um fetiche materialista aí que nega o livre arbítrio e que é cego para o caráter social do homem. Nega o livre arbítrio porque o homem, idealmente, deve agir conforme os ditames da Ciência (i. e., da burocracia científica) para ser livre. Começa com a restrição ao prazer pautada pela saúde. Como nada impede que cada decisão pessoal nossa seja avaliada segundo critérios científicos, nada impede que a Ciência determine tintim por tintim os rumos da vida humana. A Ciência pode perguntar: desde “Auais impactos tem o casamento sobre a saúde de uma pessoa?” até “Qual impacto que o hábito de ouvir Mozart tem sobre a saúde?”. O fato de a Ciência mudar de ideia pouco importa. Enquanto se disser que ouvir Mozart faz bem, especialmente às 6 da manhã, você deverá botar um alarme para se lembrar de obedecer a essa recomendação sanitária.

E esse fetiche é cego para o caráter social do homem porque reduz o ato de beber um copo de vinho à atuação química do álcool sobre o cérebro humano. Um alcoólatra e um bêbado ocasional nasceram com um cérebro humano sem vícios e ingerem o mesmo tipo de substância. No entanto, as escolhas de cada um determinaram relações diferentes com o álcool, e, no caso do alcoólatra, essa relação foi capaz de alterar o seu próprio organismo a ponto de sofrer de síndrome de abstinência caso fique sem álcool. Para se evadir desse tipo de conclusão, a moral atual tende a buscar explicações genéticas – ou seja, materiais – para negar outra vez o livre arbítrio. Fulano não é mais alcoólatra porque fez más escolhas, mas sim porque nasceu predestinado ao alcoolismo por genes ruins. Já fizeram isso até com a obesidade para vender Ozempic e acabar com a necessidade de disciplina…

O fato é que cada ser humano é livre para escolher como beber. E, para não pararmos no liberalismo e suas derivações, é preciso acrescentar: o homem é impactado pela cultura dominante. Não é determinado, como pretendem os deterministas sociais, mas é impactado porque nenhum homem é uma ilha e o pensamento comum da sociedade exerce influência sobre o juízo privado de cada um.

Chesterton chegou a dar conselhos sobre o trato com a bebida: “A regra sadia parece ser a mesma de muitas outras regras saudáveis: um paradoxo. Beba por estar feliz, mas nunca por se sentir extremamente infeliz. Nunca beba quando estiver infeliz por não ter uma bebida, ou irá parecer um triste alcoólatra caído na calçada. Mas beba quando, mesmo sem a bebida, estaria feliz, e isso o tornará parecido com um risonho camponês italiano. Nunca beba por precisar disso, pois tal ato racional é o caminho para a morte e para o inferno. Mas beba por não precisar disso, pois beber irracionalmente é a antiga fonte de saúde do mundo.” Há sociedades que prescindem do álcool, como as islâmicas, e que escolhem outros métodos de entorpecimento, tais como comer cânhamo, mascar coca ou beber chá de ayahuasca. Abstraindo, podemos dizer que entorpecer-se irracionalmente é a antiga fonte de saúde no mundo; no caso do Ocidente, fazia-se isto com álcool. Isso só mudou com o advento do calvinismo.

A dependência de opioides massificada tem exatamente a origem imaginada por Chesterton: mandar as pessoas tomarem para ficarem saudáveis

Uma sociedade que infunda nos bebedores esse conselho de Chesterton faz bem aos indivíduos que a compõem. Já uma sociedade que mande se entorpecer por motivos sanitários é uma sociedade que fomenta cracolândias.

E já que chegamos à cracolândia, é a esse lugar que a reforma tributária se empenha em empurrar o bebedor pobre de final de semana. Se o preço da cervejinha, da cachaça, do licor, se tornar proibitivo por causa do “imposto do pecado”, que tipo de coisa que dá barato e não tem imposto se poderá consumir? Crack e maconha, duas drogas de pobre.

Nos EUA também há um fenômeno parecido com as cracolândias, a saber: massas de zumbis que ficam vagando pelas ruas das metrópoles. Nos EUA, em vez de crack, a droga que causa isso costuma ser fentanil, um opioide analgésico. É interessante que um opioide tenha os mesmos resultados que um derivado de coca. Por outro lado, ao me mudar de uma metrópole para uma cidadezinha do interior, uma dificuldade que tive foi identificar cracudo. Na metrópole, ele se apresenta sob a forma de zumbi ou de “noia”, com um aspecto vidrado. Aqui, apresenta-se como um sujeito aéreo demais. Hoje, se vejo um tipo desses pular seminu no Rio Paraguaçu e ficar dançando, atirando água pros lados, já sei que é cracudo local; enquanto isso, os turistas de Salvador acham tudo muito bonito e sacam as câmeras para fotografar a cena ao pôr-do-sol. Será que na metrópole eles têm acesso a mais droga e isso lhes dá um aspecto de zumbi? Será que há algum fator psicossocial inerente às metrópoles que explique uma diferença e uma semelhança inesperadas? Não faço ideia, nem tenho condições de averiguar.

Mas deixem-me insistir no fentanil. Sabem por que os EUA têm tanto problema com dependência de opioides? Porque lá ninguém toma dipirona; dipirona é proibida. Em vez de dipirona, toma-se opioide. Quanto à história do vício em opioides em geral, recomendo este texto de Paula Schmitt. De fato, houve um conluio das farmacêuticas com o governo e a imprensa para destruir a vida do cidadão estadunidense. E ainda que não houvesse tamanhas fraudes, o fato é que a dependência de opioides massificada tem exatamente a origem imaginada por Chesterton: mandar as pessoas tomarem para ficarem saudáveis, o que demanda um uso normalizado e, portanto, vicia.

Agora, um uso não imaginado por ele é o uso identitário de drogas associadas a transtornos psiquiátricos. O uso identitário de uma droga tem exemplo na maconha a partir da contracultura. A pessoa fuma para ser algo ou alguém; para assumir uma identidade revolucionária. Em tempos mais recentes, temos assistido a uma glamourização, seguida por normalização, de doenças mentais. As pessoas chegam a pôr “TDAH” nos seus perfis em redes sociais: os diagnósticos do DSM passaram a ser mais ou menos como horóscopo; a pessoa associa um temperamento a um “transtorno” do mesmo jeito que fazia com um signo. Em vez de “sou virginiano”, a pessoa diz “sou autista”. A única diferença (pois a coisa mais fácil do mundo é conseguir um diagnóstico) é que vem um remedinho junto, que a pessoa tem que tomar por razões médicas. E, tal como o crack, é possível que as drogas psiquiátricas não tenham muito imposto. Sabiam que fentanil é direito humano? Fentanil é remédio, saúde é direito humano e a OMS tem uma lista de remédios essenciais que todo país respeitador dos direitos humanos deve dar.

Então é isso: vamos deixar de beber para obedecer ao médico. Nada de vinho. Entorpecimento, agora, só com remedinho, quando o médico mandar.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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