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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Cultura

A riqueza de um país não tem nada a ver com seu refinamento cultural

O Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, apresentada na Ópera Real Sueca em 2008. (Foto: Alexander Kenney / Kungliga Operan )

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O último texto fez chover comentários, então vale nos alongarmos no assunto. Comecemos por um esclarecimento sobre algoritmos. Muita gente não entendeu que treinou o próprio algoritmo. Assim, proponho que façam um teste: abram o computador, baixem outro navegador e acessem o Youtube sem fazer o login na sua conta Google. O que aparece na tela?

Como eu tenho o hábito de usar o Youtube sem fazer o login, cada vez que formato o computador o algoritmo está virgem. Tive que fazer isto no penúltimo fim de semana e uma das recomendações que me aparecia é "Nadson, o Ferinha", um cantor sergipano de arrocha que tem feito muito sucesso na minha região. Outra coisa que aparece muito quando formato o computador é música evangélica; de fato, há muito evangélico pela área. Pelo visto, na falta de informações sobre o meu gosto e a minha identidade, o algoritmo do Youtube segue um critério geográfico e aposta que vou gostar das mesmas coisas que os demais habitantes do Recôncavo baiano.

Como o algoritmo se comporta após aprender que está lidando com um menor? Não faço ideia, nem pretendo fazer experimentação em humanos para descobrir.

Mas desta vez aparecia um troço meio noir escrito "Antipatriota". Chamou a minha atenção, mas não cliquei. Esta semana descubro que é um pseudo-humorista pardo chamado Tiago dos Santos, que adota um sobrenome italiano com grafia errada, e cujo suposto humor consiste em simular a tortura e morte de pessoas como Luciano Hang e Monark. Ele virou notícia porque descobriram o seu passado de apologista da violência pela violência, bem como de tuítes que manifestavam ódio racial contra pretos e judeus. Um nazipardo que descobriu a violência é socialmente aceita na esquerda e foi para lá? Bom, essa recomendação é estranha, já que os meus vizinhos arrocheiros e crentes só sabem por alto da existência de Luciano Hang graças ao Jornal Nacional, e Monark para eles é a bicicleta. Assim, eu suspeito de que o algoritmo do Youtube faça propaganda desse cara.

Vocês não sabem como se comporta um algoritmo virgem e eu estou dando uma ideia porque faço o teste com alguma frequência. Como o algoritmo se comporta após aprender que está lidando com um menor? Não faço ideia, nem pretendo fazer experimentação em humanos para descobrir. O que eu sei é que, se o menor manifestar interesse por autolesão, anorexia e suicídio, o algoritmo vai oferecer mais e reforçar esse interesse — vide o caso da finada Molly Russell. Ou, mais impressionante ainda, vide essa influencer anoréxica com 2,1 milhões de seguidores no Youtube.

Seja como for, o que vale para doenças psiquiátricas vale para música: o algoritmo reforça aquilo que você já conhece e de que já gosta. Não serve para expandir os horizontes musicais de ninguém. Por isso, fiquei contente com a novidade que a minha amiga de TI me contou depois de ler o meu texto: já existe plataforma de streaming com curadoria humana. Holandeses apreciadores de música clássica criaram um serviço de streaming chamado "Primephonic", específico para o gênero. A Apple comprou em agosto 2021, tirou-o do ar já em setembro e relançou-o com outro nome em março deste ano. Chama-se "Apple Music Classical", que fica à parte do streaming normal da Apple, o Apple Music. Mas quem não quiser dar dinheiro para a Apple pode ouvir web-rádios de música clássica do mundo inteiro, como esta, suíça. Do rádio ao streaming, portanto, a curadoria faz parte da fruição musical de qualidade. A automação desse âmbito não é boa coisa.

A educação formal e a educação em sentido lato são coisas diferentes, e as duas não andam sempre juntas.

Assim, meu último artigo insistiu na educação do gosto musical das novas gerações, que, diferentemente de nós, estão sujeitas aos algoritmos antes de amadurecerem. Disso muitos leitores depreenderam que eu estava discutindo ensino formal. Assim, precisaríamos ter o PISA da Coreia do Sul antes de termos uma cultura musical decente. Ora, a educação formal e a educação em sentido lato são coisas diferentes, e as duas não andam sempre juntas. Um camponês da Idade Média era analfabeto e tinha uma sensibilidade musical melhor do que a de um cocainômano diplomado fã de música eletrônica. Cartola era pedreiro, mas compunha poesias melhor do que os engenheiros. Eu tenho doutorado, mas não tenho a menor pretensão de saber musicar melhor do que Luiz Gonzaga. Aliás, nada mais favorável ao hábito de versejar do que o analfabetismo, já que a métrica serve para ajudar a memória a guardar um texto que será repetido para os outros. Ao analfabeto convêm as habilidades de repentista.

A Coreia do Sul deu um salto de desenvolvimento que passou pela escolarização de suas massas. O gênero musical que a Coreia criou depois desse fabuloso aumento da educação formal foi o... k-pop. Alguém em sã consciência dirá que o k-pop é mais refinado que o chorinho? No entanto, o analfabetismo grassava no Brasil durante o Segundo Reinado e a República Velha, épocas em que o chorinho surgiu e se desenvolveu.

Certamente a escola pode fazer algo pela cultura musical das crianças, mas eu me referia mais à educação doméstica. Lembrei-me de, criança, ter ficado frustradíssima quando soube que um outro grupo estudaria "Carinhoso" na aula de música, e eu teria de me contentar com "A Banda" (que eu não conhecia). É claro que a escola fez bem em dar Pixinguinha para as crianças estudarem: melhora a sensibilidade musical e, coisa nada desimportante, aumenta o vocabulário. Mas me pareceu improvável que uma criança de hoje tivesse a mesma frustração que eu, porque me parece improvável que uma criança de hoje sequer conheça "Carinhoso". Hoje os pais, bem escolarizados, botam "A Galinha Pintadinha" no Youtube e dão-se por satisfeitos. Não cantam mais; quem canta é o computador, que canta sempre o mesmo. Numa gravação, Paulinho da Viola comenta que até o final do século passado "Carinhoso" era universalmente conhecida pelos brasileiros. Independentemente da idade, todos sabiam cantarolá-la.

Isso era outro ambiente social — a casa, os vizinhos, os colegas de escola —, não o resultado objetivo da educação formal. Nesse outro ambiente, exibir a bunda não era um jeito bonito de se destacar. Hoje, é. Em todas as classes sociais. Não sei a razão exata da decadência cultural. Mas sei que escolaridade e decoro não andam sempre de mãos dadas. Posso apostar que uma idosa analfabeta tem muito mais decoro do que uma jovem rica que estudou em escola cara e hoje ostenta no Instagram, junto com outras partes do corpo, a cara deformada por "harmonização facial". Aposto também que a idosa analfabeta sabe cantarolar "Carinhoso"; já a patricinha, tenho minhas dúvidas. Talvez isso tudo seja resultado da tão falada crise de valores, de achar que ser bem sucedido é ser rico. Dinheiro deve ser um meio de conseguir as certas coisas. Quem não sabe o que é bom ou ruim não tem muito o que fazer da vida, com ou sem dinheiro. Aí fica ostentando bobagem em rede social, desnorteado.

Vamos então ao último esclarecimento. Certamente existem amantes da música clássica dispostos a desembolsar grandes somas para assistir a concertos. Além disso, mecenas podem fazer grandes doações a orquestras (que em geral são abatidas no imposto, em vários países do mundo). Mas o fato de haver um nicho não basta para viabilizar um gênero musical seguindo as leis de mercado. Se todas as orquestras perdessem o financiamento estatal (inclusive o da isenção fiscal), quantas orquestras o público de melômanos conseguiria bancar? Seria preciso uma cidade bem grande para ter um número significativo de melômanos endinheirados para ter uma única orquestra capaz de tocar uma sinfonia, com ingressos bem caros vendidos a um público extremamente assíduo. Quanto à possibilidade do lucro dos produtores, sou bem cética, para dizer o mínimo. Orquestra sinfônica não atrai quem quer ganhar dinheiro e ficar rico. Atrai quem quer estabilidade para se dedicar à música, e ninguém jamais dedicaria anos de estudo a instrumentos clássicos se tivesse que agradar ao mercado.

A música clássica foi um feito dos países atrasados e perdedores na Europa.

A música clássica fornece mais outro exemplo do desatrelamento entre a riqueza de um país e o seu refinamento cultural. Podemos colocar o seu pináculo facilmente no Sacro Império Romano Germânico do séc. XVIII, no qual viveram Bach (1685 - 1750), Mozart (1756 - 1791) e Beethoven (1770 - 1827). Nesse período, a potência em ascensão era a Inglaterra, que estava se industrializando e modernizando a produção material. Pois bem: que fez a Inglaterra na seara da música clássica?

A música clássica foi um feito dos países atrasados e perdedores na Europa. As grandes potências que começavam a decair eram Espanha e Portugal; Inglaterra e Holanda ascendiam. Os corpos políticos feudais que hoje correspondem aos países germânicos e à Itália, juntos à atrasada França camponesa, foram a chave da música clássica. E depois de os germânicos, franceses e italianos se industrializarem, a tocha da música clássica foi para a atrasada Rússia do czar — a qual, ao virar comunista, manteve o Bolshoi e vetou todo tipo de pop music. E lembremos que o funk não é brasileiro; é um estilo musical criado nos EUA com o nome de Miami bass. Sempre foi música pornográfica para bandidos, e as tentativas brasileiras de transformá-lo num gênero romântico (vide Claudinho e Bochecha) não frutificaram.

Onde impera o mercado, o critério para diferenciar bons músicos de maus músicos é o dinheiro. Uma orquestra é um absurdo: tem músico demais para pagar, não se custeia com bilheteria e a mão de obra é de formação muito lenta. Já o funk é bom, porque bastam uma periguete seminua e uma batida gerada pelo computador. Surpreende que o mercado mate a boa música e fomente a má?

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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