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Estudar estética hoje é complicado. Ou bem você se transforma num historiador da arte, ou bem você se depara com o niilismo institucionalizado da estética contemporânea. Um historiador de arte sem dúvida é uma boa coisa, mas um historiador e um esteta são coisas diferentes. Quanto ao niilismo institucionalizado, seu apologista mor provavelmente é o filósofo analítico Arthur Danto (1924 – 2013). Em 1964 ele publicou o paper “The Art World”, segundo o qual é arte aquilo que o “mundo da arte” identificar como arte. O “mundo da arte” são os museus, os galeristas, os críticos de arte. Arthur Danto era crítico de arte.
Na década de 60, ele enfrentava o problema dos quadradinhos pintados que eram apresentados como arte e vendidos a peso de ouro. As pessoas normais olhavam para aquilo e diziam que eram indiscerníveis de lajotas aleatórias que encontrávamos na rua sem dizer que era arte. Para Danto, um artista poderia dar um título escalafobético para o bendito quadrado e fazer uma pequena palestra explicando o que ele quer dizer com aquilo. Assim, ele revela uma intenção artística. Se o “mundo da arte” reconhecer como arte esse objeto feito com a intenção artística, é arte.
Como todo filósofo analítico, Danto tem o hábito de criar uma teoria-espantalho, imputá-la ao grosso da humanidade e mostrar que ela, na verdade, era um equívoco linguístico esclarecido por ele. No caso, o grosso da humanidade até 1964 acreditava na Teoria da Imitação, segundo a qual é arte aquilo que imita alguma coisa (um quadro de maçã imita uma maçã, por exemplo), até que Danto resolveu esse mal entendido. Evidentemente, ninguém acredita em tal coisa. A arte existe muito antes de existir “mundo da arte”, e adornos arquitetônicos que não imitam coisa alguma têm valor artístico desde antes de aparecer a arte abstrata.
Danto nasceu em 1924. Em 1917, o “mundo da arte” já tinha reconhecido o penico de Marcel Duchamp (1887 – 1968), intitulado “A fonte”, como obra de arte. Em 1925, Ortega y Gasset (1883 – 1955) publicou o ensaio A desumanização da arte. Havia vinte anos que os jovens tinham decidido que a arte deveria romper com as tradições, e “con estos jóvenes cabe hacer una de dos cosas: o fusilarlos o esforzarse en comprenderlos”. Como Ortega y Gasset não viveu para ver os textos de Danto, ele optou pela segunda operação.
Quando a arte contemporânea era novidade
Aos seus contemporâneos, Ortega y Gasset explicou a arte nova como uma conjunção das seguintes tendências: “1.º, à desumanização da arte; 2.º, a evitar as formas vivas; 3.º, a fazer com que a obra de arte não seja senão obra de arte; 4.º, a considerar a arte como brincadeira (juego), e nada mais; 5.º, a uma essencial ironia; 6.º, a eludir toda falsidade, e, portanto, a uma escrupulosa realização. Por fim, 7.º, a arte, segundo os artistas jovens, é uma coisa sem transcendência nenhuma”.
Vamos à explicação dele para a desumanização: “Imagine o leitor que estamos olhando um jardim através da vidraça de uma janela. Nossos olhos vão se acomodar de um jeito que o raio da visão penetre a vidraça, sem se deter nela, e vá se prender às flores e frondes. Como a meta da visão é o jardim e até ele vai lançando o raio visual, não veremos a vidraça, nosso olhar passará através dela sem percebê-la. Quanto mais puro o cristal, menos o veremos. Mas logo, fazendo um esforço, podemos nos desligar do jardim e, retraindo o raio ocular, detê-lo na vidraça”. O jardim está para as coisas do mundo como a vidraça está para o estilo de um quadro. Por isso, muita gente consegue achar bonitos os quadros que representem coisas bonitas; mas discernir o estilo é para poucos, que são críticos e especialistas em arte. A arte nova seria desumanizada por querer ser como uma vidraça que não dá para nada, e não ter nenhum aspecto humano. Ela quer ser puro estilo.
Vou deixar o leitor curioso quanto ao resto, porque não vou entrar nos detalhes. É que, ao meu ver, a perspectiva de Ortega tem mais valor para os meus contemporâneos por ser a de um dos últimos filósofos argutos a ter vivido a arte tradicional quando esta era novidade, e ainda por cima viveu a arte dita “contemporânea” quando esta também era novidade. O mais importante dessa perspectiva, ao meu ver, é que ele pôde entrar em exposições de artistas vivos e julgar seus quadros bons ou ruins, enquanto que nós hoje dificilmente temos essa possibilidade.
Fotografia aposenta a pintura?
Em 1925 houve uma exposição de arte contemporânea na Espanha e ninguém gostou. Comenta Ortega: “Se alguém, depois de percorrer as salas da Exposição dos Artistas Ibéricos, dissesse: ‘Isso não é nada. Aqui não tem arte’, eu não hesitaria em responder: ‘O senhor tem razão. Isso é pouco mais que nada. Isso ainda assim não é arte. Mas o senhor quer me dizer melhor que coisa se deveria tentar? Se o senhor tivesse 25 anos e uma dúzia de pincéis à mão, que faria?’ Se o interlocutor fosse moderado, não poderia responder em outra forma além destas duas: ou propor a imitação de um estilo antigo – o que implica reconhecer a inexistência de um estilo atual –, ou apresentar concretamente um quadro, um único quadro, que sendo herdeiro da tradição insinue um novo tema pictórico, assinale algum rincão ainda intacto na topografia da arte usada”. Em resumo, somos capazes de apontar o que a arte não deveria ser, mas não o que a arte deveria ser, sem propor a repetição do passado. Trinta anos antes, as pessoas iriam às exposições esperando ver quadros impressionistas, como Monet. Nada diminuía a beleza de Velázquez, mas Velázquez era reconhecido como arte de outra época.
Ortega diz que apreciar arte atual (supondo que haja) e arte antiga suscita prazeres diferentes. Melhor dizendo, apreciar a boa arte no tempo em que ela foi feita é diferente de apreciá-la duzentos anos depois. No primeiro caso, a arte foi feita para você. Eu posso ler artigos de jornal de Ortega e tirar proveito deles (como estamos tirando agora), mas fato é que o destinatário mais apto a capturar o assunto de que ele estava falando eram os seus contemporâneos, de preferência os que foram à exposição citada. Não é nenhum absurdo pensar que com a pintura se dê o mesmo, já que em ambos os casos – escrita e pintura – o autor produz para quem compartilha o mesmo mundo que ele.
Para nós, hoje, apreciar um quadro implica uma certa viagem no tempo e espaço, o que também é uma coisa prazerosa. Mas nós desconhecemos a sensação de ir ver um quadro novo e nos encantarmos apenas com o quadro em si mesmo, sem acudir a transportes espaço-temporais. Eis um prazer no qual somos todos donzelos. Falta-nos uma “vidraça”, um estilo artístico próprio à época.
Que eu me lembre, a única vez em que me ocorreu esse tipo de assunto foi – ao menos isso – numa aula de estética. Ouvi que os pintores e desenhistas já podem representar à perfeição o real, e prova disso são as telas e desenhos indiscerníveis de fotografias. Ora, uma foto é igual a uma foto, e não ao real. Como sou péssima fotógrafa, quase sempre me ocorre tirar uma foto, olhar o resultado e concluir que ela não faz jus ao que vi. Se eu quisesse fazer jus ao que vi e tivesse habilidades, o melhor seria desenhar ou pintar um quadro. Ocorreu-me também que o jogo de luz dos quadros barrocos é bem difícil, se não impossível, de ser capturada numa fotografia. E que o pintor barroco faria muito bem em dispensar uma câmera fotográfica para mostrar o que ele vê.
Técnica basta?
É verdade que a pseudoarte legitimada por Danto eliminou a busca pela excelência. Não é necessária nenhuma habilidade especial para pegar um penico e botar um nome jocoso. Daí não se segue, porém, que arte seja simplesmente o produto de uma habilidade técnica especial. Já em 1911, Ortega criticava o espantalho de Danto: “É algo sério crer que a humanidade precisou de milhares de anos para aprender a desenhar bem, isto é, conforme à natureza? […] É um pressuposto, além de gratuito, vaidoso e limitado crer que aqueles estilos dessemelhantes do nosso são resultado de um não poder desenhar, pintar ou esculpir melhor” (isso está no ensaio de jornal “A arte deste mundo e do outro” geralmente publicado com A desumanização da arte). Os bustos de políticos romanos são muito mais realistas do que os retratos de múmias coptas, mas nem por isso são mais bonitos do que elas. Pode-se dizer que isso faz delas mais estilizadas do que os bustos de políticos romanos. Da Vinci é o rei da técnica, mas suas pinturas a óleo não seriam bons substitutos para mosaicos bizantinos. Monet poderia fazer quadros com o traçado mais preciso, mas nem por isso faria quadros mais bonitos. Se Picasso resolveu que a técnica era um problema e passou a fazer garrancho em nome disso, problema dele. Na verdade, a mentalidade dele se parece mais com o nosso estilo de vida: se você quer “arte”, vá a um museu; os prédios e as coisas quotidianas não têm de ter nenhuma beleza e tudo tem que ser quadrado e se pretender estritamente funcional. A técnica deveria estar a serviço da beleza, como sempre esteve antes do século XX, em vez de ser relegada à mera funcionalidade.
Mas como a técnica a serviço do belo está em falta, é fácil o homem do século XXI achar que ela é boa em si mesma. Mais uma vez Ortega traz um exemplo iluminador. No artigo “Meier-Graefe”, ele saúda um dos poucos alemães não-bárbaros. Seu feito? Meier-Graefe é um crítico de arte que desancou Böcklin, uma espécie de artista oficial do Reich alemão – não o terceiro, estamos em 1908. “O trabalho educativo alemão é hoje”, diz Ortega, “uma fábrica de falsificações. Desde o jardim de infância até os seminários das universidades acha-se montada uma gigantesca indústria para falsificar homens e convertê-los em servidores do Império. Há uma ciência imperialista, uma música nacionalista, uma literatura celestina, uma pintura idealizante e enervadora que operam sem descanso sobre a economia espiritual dos alemães”. À Kulturkampf original (uma guerra cultural do Bismarck contra o Papa) seguia-se uma guerra cultural no sentido lato.
O artista oficial era esse Böcklin, acusado por Ortega e Meier-Graefe de ser piegas e meloso. Em tempos de internet, qualquer um pode olhar o estilo. De minha parte, peguei logo um quadro com motivo religioso, já que é repetido por vários estilos e dá para comparar. Apresento-lhes então o Luto sob a cruz (1876), que vocês podem ver em alta definição clicando aqui. Olhem bem para o conjunto do quadro.
Jesus é um corpo cinzento e embotado. Como indica o título, o foco do quadro é o luto e não o morto. Há um destaque para Maria cansada e desesperançosa, um tanto inanimada para quem perdeu um filho. Junto está um José de cara cinzenta, cuja roupa colorida chama mais a atenção e foi mais cuidadosamente desenhada do que a cara. Qual é o verdadeiro enfoque do quadro? A moçoila agonizante ao fundo, vestida num lindo tecido azul. Parece que ele gosta de desenhar moças e roupas, e que o luto por Jesus foi só um pretexto para fazer uma moçoila aflita numa roupa linda de morrer.
Dá para dizer que é um quadro de bom gosto?