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Neste jornal, foi saudada a criação da Universidade do Texas em Austin, cuja proposta é ser a universidade anticancelamento dos Estados Unidos. É bom que exista uma universidade com tal proposta no mundo ocidental; no entanto, essa é uma característica pequena demais para nós, cá do Brasil, lançarmos confetes. A hegemonia do cancelamento woke é recente demais na história da humanidade para que, com apenas uns 10 anos de domínio, fiquemos deslumbrados com o anúncio da criação de uma instituição onde ele (supostamente) não esteja presente. Além disso, duas coisas comemoradas na matéria saltam aos olhos do brasileiro que tem pelo menos a minha idade como trivialidades que já tivemos à mão. A primeira é “a admissão e as decisões sobre a graduação serão feitas sem qualquer consideração sobre raça, gênero, orientação sexual, filiação política ou fé religiosa”; a segunda, a gratuidade. Passar por um processo seletivo cego e estudar de graça numa instituição de qualidade era o sonho tangível da classe média brasileira até o advento do Reuni, do Ministro da Educação Fernando Haddad, implementado a partir de 2008, no governo Lula 2.
Haddad, pelo jeito, é um ministro polivalente que pode ser posto aonde quer que Wall Street queira. Graças a Haddad, pai do Reuni e do Prouni, os brasileiros se viram privados de boas universidades públicas e foram apresentados às dívidas estudantis, às student debts que grassam nos EUA. Entraram no Brasil os conglomerados transacionais das universidades fuleiras, compraram tudo, e ano passado estávamos vendo Bolsonaro perdoar as dívidas estudantis – coisa que Biden quis fazer este ano. Problema dos EUA importado para o Brasil pelo ministro predileto dos farialimers.
Sigamos lendo a matéria: “A Universidade de Austin busca retomar a tradição de artes liberais – modelo de educação superior em que o estudante recebe uma formação em diversas áreas em vez de focar desde o início em um campo estreito do conhecimento. Por isso, o único diploma oferecido inicialmente será o de ‘estudos liberais’.”
Isto tem cheiro de Reuni pelas seguintes razões:
- Oferece um diploma generalista inferior ao de uma graduação completa;
- O nome não designa nenhum profissional com uma competência tangível, mas apenas alguém que deve ter passado por um processo de doutrinação;
- Forma fortes candidatos ao desemprego.
Nos EUA, existem os BA, os bachelor of arts, que às vezes vale menos que uma graduação brasileira normal. Aqui, bacharelado ou licenciatura em letras vernáculas é uma graduação, do mesmo jeito que bacharelado em direito; nos EUA, a Law School só recebe alunos que já passaram por uma graduação, ou seja, é uma pós-graduação. Daí podemos imaginar que isso crie a pressão por bacharelados mais curtos e não-profissionalizantes, que são uma antessala para o verdadeiro curso profissionalizante: Direito. Essa deve ser uma das razões para os EUA terem uma porção de BAs estrambólicos. (De todo modo, vale frisar que eles têm também os BLA, ou bachelor of liberal arts, voltado para coisas generalistas.)
No Brasil, quando Anísio Teixeira esteve à frente de uma reestruturação do sistema universitário (que acabou dando origem à nossa pós-graduação), ele teve em vista o sistema dos EUA (que era o melhor à época) como inspiração. Ele pensou em criar uma espécie de ante-graduação para superar as deficiências de aprendizado do alunado calouro, além da pós-graduação. No Reuni, o nome de Anísio Teixeira foi evocado para criar a versão tabajara dos BAs dos EUA, os bacharelados interdisciplinares ou BIs, de duração de 3 anos. Tal como nos EUA, seriam um curso não-profissionalizante voltado para um curso profissionalizante. A diferença da versão tabajara é que todo curso superior profissionalizante precisaria dessa etapa prévia: se nos EUA existe o bacharelado em arquitetura, que é tão bacharelado quanto o BA e não tem pré-requisito, no Brasil, o BI é um pré-requisito para o bacharelado em arquitetura (nas universidades onde o BI é compulsório, que felizmente são poucas; em universidades que incluíram o BI como acesso possível, reservam-se vagas para os egressos). Tal como o bacharelado em liberal studies, o bacharelado interdisciplinar serviria para evitar a "especialização precoce" -- que não se confunde com o generalismo. Por exemplo: a preocupação de Anísio Teixeira com a hiperespecialização do ensino superior o levou a imitar o sistema de departamentos dos EUA (antes era cátedra), e um resultado disso foi a possibilidade de departamentos oferecerem disciplinas para outros cursos. Introdução à filosofia é uma matéria de vários bacharelados profissionalizantes (direito, economia, administração...), e é oferecida pelo departamento de filosofia. A interdisciplinaridade de Anísio Teixeira seria isso: o cara do Direito não ver só lei, mas pegar disciplinas de outros cursos. O generalismo entraria pela grade curricular, e não pela criação de um curso especificamente generalista (algo como um círculo quadrado).
O bacharelado em “liberal studies”, portanto, tem tudo para ser mais um dos blá blá blá studies (black studies, gender studies, fat studies etc.), um BA não-profissionalizante que serve somente para a ideologização, ou como etapa burocrática para cursar algo importante de verdade.
Se os liberal studies fossem uma reedição das “artes liberais” da Idade Média, e não mais uns studies da infame família dos cultural studies, seria de esperar que, ao estilo de Anísio Teixeira, preconizassem o generalismo por meio das disciplinas, ou então remontassem ao trivium e ao quadrivium, cujas artes liberais são estas sete: gramática, dialética e retórica (as três do trivium), mais aritmética, geometria, astronomia e música (as quatro do quadrivium).
Voltemos à matéria: “O currículo tem três componentes principais. Nos primeiros dois anos, a prioridade são as ‘fundações intelectuais’: a ideia é apresentar os alunos à tradição intelectual do Ocidente. Eles lerão autores como Homero, Euclides, Descartes, e George Orwell — além do livro de Gênesis e do Evangelho de João.” No Japão ou na Etiópia, faz sentido criar um curso de dois anos para apresentar aos alunos “a tradição intelectual do Ocidente” – no singular! Quando alguém pretende criar um curso desse dentro do próprio Ocidente, só podemos crer que seja um projeto de definir ideologicamente o que é o Ocidente. Marx está nessa relação? Marx é chinês? O socialista inglês George Orwell fez uma crítica às tradições intelectuais estrangeiras em 1984? E a matemática indo-arábica, será computada como ocidental? Os nomes árabes de Al-Jabr e Al-Kwarizmi (donde vieram “álgebra” e “algarismo”) serão apagados da tradição intelectual ocidental?
O bacharelado em “estudos liberais” durará 4 anos. Depois desses dois anos supostamente generalistas de “fundações intelectuais”, virá mais uma etapa de dois anos, na qual “os universitários terão de escolher dentre três áreas do conhecimento. A primeira é a de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática. A segunda é a de Economia, Política e História. A terceira, a de Artes e Letras.” Porém, antes mesmo de se especializarem, “vão participar, do ano 1 ao 4, do ‘Projeto Polaris’, em que cada estudante vai liderar um projeto ‘para construir, criar ou descobrir algo que supra uma necessidade humana urgente.’” A consequência óbvia necessária é que um calouro de 18 anos deverá se ver como um salvador da humanidade, sabendo quais são as tais necessidades humanas urgentes. Uma crítica que faço há anos ao projeto do BI, é que ele pretende criar bacharéis iluminados – os chamados “cidadãos críticos” – em vez de mão de obra para o mercado de trabalho. Se no BI de Haddad o cidadão crítico é um generalista que aprende saberes e conheceres para sair dando pitaco sobre os rumos da humanidade, o bacharel em liberal studies é um farol da civilização ocidental que vai salvar o mundo com sua ideologia peculiar. Só não se chama de “cidadão crítico” porque aí é de esquerda.
E periga terminar igualmente desempregado. Diz a matéria: “Se o roteiro funcionar conforme o planejado, os estudantes sairão da universidade com uma fundação intelectual sólida e uma formação prática orientada para a resolução de problemas. Isso deve evitar dois problemas comuns no modelo acadêmico predominante: o do aluno que ignora tudo o que não pertence à sua disciplina de escolha e o do aluno que se forma sem ter uma habilidade capaz de lhe assegurar um emprego.” É o REUNI over and over again. O “cidadão crítico”, "especialista em generalidades", vai ser disputado a tapa pelo mercado de trabalho por causa de sua visão privilegiada – mas é só um “bacharel interdisciplinar”, que o empregador não sabe o que significa, porque não tem significado nenhum mesmo. Meu amigo, você acha que alguém vai contratar um bacharel em liberal studies porque ele fez parte do Projeto Polaris? Quem contrata um arquiteto sabe qual é a habilidade aprendida num bacharelado em arquitetura. Para que diabos serve um bacharel em estudos liberais??
Last, but not least, a “universidade anticancelamento” já cancelou um antes de ser inaugurada: Richard Hanania, um óbvio racista científico que citei no meu último artigo. Ele estava no quadro que comporia a universidade, levou um exposé, criou-se uma petição no Change exigindo a sua não-contratação e ele não foi contratado. No exposé, revelou-se que ele era “Richard Hoste”, o pseudônimo com o qual ele assinava seus textos em sites alternativos nos quais defendia coisas como a esterilização compulsória de pessoas de baixo QI.
O cara era obviamente racista e continua sendo. (Interessados podem ler este texto ou este.) Se os contratantes não perceberam, é porque são estúpidos. Se achavam que suas ideias mereciam ser aprendidas e discutidas pelo alunado, mas tiraram só por causa da petição, então não podem dizer que são contra o cancelamento.
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