Produtos de roceiros à venda nas ruas de Cachoeira (BA).| Foto: Bruna Frascolla
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Uma das primeiras coisas que notei ao me mudar de Salvador – uma metrópole com 2,9 milhões de habitantes – para Cachoeira, com seus 30 mil espalhados por sede e distritos, foi a falta de pão francês no supermercado. No frigir dos ovos, isso quer dizer que não existe aquele lugar ao qual você vai e compra tudo de que precisa. Pensei então que talvez Cachoeira se assemelhe mais, sob este aspecto, à ideia de cidade que a humanidade teve durante a maior parte do tempo.

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As cidades se destacavam das áreas rurais justamente por causa do comércio. Concentrando gente que vivia de atividades não-relacionadas à agricultura e recebia dinheiro, era natural que a comida chegasse por meio de comerciantes. Podemos imaginar um começo bem primário em que agricultores fizessem bico de comerciante: assim, cada qual trazia um punhado de gêneros alimentícios que achasse ser do interesse dos homens da cidade. Aqui em Cachoeira, é possível ver o homem da roça vindo em seus jegues e cavalos com dois grandes cestos na lateral, abastecendo mercadinhos. Como a montaria é europeia, é bem provável que a cena que vejo aqui seja familiar aos europeus desde a Idade Média até pelo menos a época do Iluminismo. Quando eles escreviam sobre o mundo urbano – inclusive sobre as maravilhas do livre mercado – certamente tinham em vista um cenário mais parecido com Cachoeira do que com Salvador. Inclusive quando escreviam sobre as maravilhas do livre mercado.

Vida de pedestre e compras descentralizadas

Com o tempo, aprendi que cada supermercado e mercearia tem o seu fornecedor. Se eu gostei do biscoito de goiaba que vem de um certo Povoado de Onça (segundo dizem as letras miúdas do rótulo), não adianta procurá-los nos estabelecimentos X, Y e Z, pois sei que só encontro do W. O mel da cooperativa de apicultores baianos com endereço na zona rural de Palmas do Monte Alto chega a um supermercado em São Félix, mas não à mercearia onde compro os biscoitos do Povoado de Onça. A água de coco envasada em Santo Antônio de Jesus aparece em restaurantes e na área de frios de alguns mercados (Minha maior surpresa foi ver que minha jarra de leite comprada num supermercado de Cachoeira veio da Polônia. Como eu notei que a porcelana do oeste do Paraná é muito bem distribuída por aqui, suponho que a jarra polonesa tenha feito uma escala na terra de parentes paranaenses antes de rumar para o norte).

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O supermercado que vende peixes congelados raramente vende bandejas de frango congelado. O supemercado que os vende, vende também peças soltas congeladas de um abatedouro de Feira de Santana. Mas compram-se peças frescas num box só de frangos do Mercado Municipal. O mercadinho do biscoito de goiaba vende carne bovina fresca, mas só de terceira, para ensopados.

Quanto aos pães, é tão eficaz procurá-los numa mercearia ou num supermercado quanto numa loja de roupas. Lugar de pão é na padaria. Nela encontramos coisas que acompanham o café da manhã – a saber, manteiga, leite, café –, ou que são aparentadas dos pães, tais como as broas e os biscoitos de trigo. Algumas padarias evoluem para delicatessens ou lanchonetes.

Como vocês já terão imaginado, eu faço as compras em pinga-pinga. Uma coisinha em tal mercado, outra em outro. Assim, tenho condições de sair carregando as compras. Quanto ao perigo de descontrolar os gastos, o método de pagamento resolve: basta sacar uma quantidade relevante de dinheiro e ver quanto tempo dura. Os cachoeiranos jamais abrirão a boca para dizer que a cidade é segura, porque eles comparam a Cachoeira de hoje à Cachoeira de dez anos atrás. As práticas deles são mais informativas do que suas palavras. Aqui as pessoas andam com dinheiro, enquanto que nas metrópoles isso seria loucura.

O carro, a violência e os monopólios

Como são realizadas as compras pela classe média nas cidades grandes? Pega-se um carro e vai-se ao supermercado fazer “as compras do mês”, que são arrumadas na mala e pagas com o cartão. O freguês provavelmente foi a um supermercado pertencente a uma rede de supermercados, o que quer dizer que ele pode cruzar a metrópole e encontrar preços iguais. Para piorar, ele pode ter ido a supermercados de redes com nomes diferentes, mas que na verdade pertencem a uma rede estrangeira que saiu comprando várias redes nacionais, como a Walmart e a Cencosud. Ou seja: no nosso ato de sair de casa para comprar “tudo”, acabamos favorecendo monopólios.

Naturalmente, fazer compras pinga-pinga na maior parte das metrópoles é difícil. Você precisaria pegar o carro e cuidar do estacionamento várias vezes; ou, se for um desses raros seres de classe média que acredita em transporte público, teria que pagar várias passagens. O preço das passagens não compensaria o deslocamento para pequenas compras. Além disso, o custo do deslocamento, nas metrópoles, não se restringe ao dinheiro: tempo também é um problema, por causa de engarrafamento.

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No método de pagamento, uma terceira parte morde o dinheiro. É a operadora das maquininhas. Na prática, a violência nos faz pagar um imposto a empresas como a PagSeguro. Esse também parece um setor propenso à formação de monopólios.

Mas se isso tudo é visível na diferença física entre as cidades, a coisa chega a níveis estratosféricos com a internet. Lojas como a Amazon de fato têm a pretensão de que encontremos TUDO nelas. Na Amazon dos Estados Unidos, que começou vendendo livros, encontra-se até pão francês.

Não será o caso de pensar que o estilo de vida das metrópoles favorece a formação de monopólios?

Os produtores

Outra cena que vejo em Cachoeira e deve ser igual à da Europa de antanho é o roceiro que vai à feira vender o excedente. Ele planta em primeiro lugar para si mesmo, deve ter tratos com os vizinhos que produzem coisas diferentes a fim de fazer trocas, e leva o excedente para os arredores da feira. Organizam as raízes e os legumes em pequenos montinhos. Você pode comprar os montinhos; não há balança, nem a possibilidade de pegar menos que um montinho. A ideia é voltar para casa com o mínimo de carga possível. Não interessa acumular, porque é tudo perecível.

O que quero notar aí é a falta de especialização do pequeno produtor. Isso explica, inclusive, a diversidade das prateleiras do comércio. Se um indivíduo sai da zona rural para vender seu variado e modesto excedente a um ou dois merceeiros, é natural que cada mercearia tenha uma combinação de produtos única.

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É claro que o açougueiro que se gaba da carne de fumeiro que ele próprio produz com seus próprios porcos não terá condições de atender a supermercados, nem a grandes exportadores. Para estes, só o agronegócio e a agricultura tecnológica, que têm produção especializada e de larga escala.

Assim, há uma tendência tanto do lado vendedor, quanto do lado produtor (e até do método de pagamento) para uma grande concentração. E é bom ter isso em mente ao lermos escritos clássicos sobre economia, pois a realidade que vivemos hoje é bem diferente daquela em que os grandes pensadores viveram.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]