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A defesa do anarcocapitalismo, consciente ou não, vem crescendo no Brasil. Anarcocapitalismo é a ideologia que defende o fim do Estado por crer que o homem possa se organizar apenas por meio de contratos individuais, e que o Estado é não só desnecessário, como antiético. Eles têm, naturalmente, uma ética particularíssima; o fundador dessa ideologia, Murray Rothbard, defendeu não só o aborto, como a venda de crianças pelos pais. Para eles, toda a moral deve girar em torno do consentimento contratual estritamente individual. Assim, nada de criticar escolhas individuais, com base numa moral universalizante que determine um bem comum, pois isso faz de você um abominável coletivista.
A defesa aberta do anarcocapitalismo é diminuta; restringe-se a entidades estudantis e a think tanks bem financiados (entre nós, há o Mises Brasil). A defesa inconsciente, porém, se dá com a distorção do liberalismo, da qual já tratei aqui. A retórica anti-Estado é tamanha, que não sobra nenhuma função essencial a ser cumprida por ele. Se o Estado é tão ruim, se os funcionários públicos são tão canalhas, se os políticos são tão ladrões e se o povo é tão burro, por que deixar a Justiça e a polícia entregues ao Estado, em vez de promover a livre concorrência entre empresas de arbitragem e segurança que lutem pela eficiência? Toda a ingenuidade (para não dizer estupidez) do senso comum de nossa época aponta para isso: uma máquina mágica do livre mercado, na qual empresários competindo promovem a paz e a prosperidade para todos. Até a esquerda, em tese estatista, trocaria fácil um presidente "fascista" (eleito pelo povo) por um empresário filantrópico cheio de ESG, consciência social e contratos.
A esquerda considera "opressão" qualquer opinião sobre a conduta moral alheia; já a direita condena-a sob o nome de "coletivismo"
Os anarcocapitalistas pararam de defender aborto, para agradar à direita, e evitam falar de venda de crianças e de órgãos para não chocar o público adulto (já adolescente gosta), mas a sua ética vem sendo assimilada à direita e à esquerda. A esquerda considera "opressão" qualquer opinião sobre a conduta moral alheia; já a direita condena-a sob o nome de "coletivismo". O argumento comum para defender a liberação da maconha é o mesmo das feministas para relaxar a moral sexual, e é o mesmo dos devotos da Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias (IBUD) para fazer pix para Bolsonaro: "Faço o que quero comigo mesmo e ninguém tem nada com isso." É um raciocínio errado porque tem uma premissa falsa. Toda moral tem uma dimensão social; é um delírio achar que cada indivíduo é uma ilha e poderíamos viver em sociedade tendo cada qual um código estritamente pessoal. O caso do feminismo ilustra bem: é estapafúrdio pensar que se cada vez mais mulheres forem convencidas de que sexo deve ser só diversão e a coisa mais importante da vida é a carreira, isso não terá impacto sobre o país. Acabe gradualmente com a figura da mãe de família realizada e respeitável, e o resultado vai desde aumento da criminalidade a crise previdenciária. No caso dos devotos da IBUD, propaga-se uma ideia absolutamente errada do que é um líder político e de qual é o papel da oposição.
O genocídio perpetrado no Congo por capitalistas transnacionais foi maior do que o genocídio perpetrado na Europa e no norte da África pelos nazistas
Pois bem: discute-se muito o anarcocapitalismo como se ele fosse um devaneio jamais posto em prática. No entanto, já existiu algo muito próximo disso: as chartered companies, que, por meio de contratos, tomavam conta de uma grande porção de terras povoadas e usavam-na para extrair lucro. O caso mais famoso é o do Estado Livre do Congo (depois chamado de Congo Belga), que, diferentemente das demais possessões europeias na África, não tinha um Estado. Em vez disso, o Estado Livre do Congo era uma possessão pessoal do Rei da Bélgica, que o alugava — com os congoleses dentro — para empresas transacionais de capital inglês explorarem a borracha e os habitantes. O resultado disso foi conhecido graças ao irlandês Roger Casement (que terminou executado pela Coroa inglesa) e a Joseph Conrad.
O genocídio perpetrado no Congo por capitalistas transnacionais foi maior do que o genocídio perpetrado na Europa e no norte da África pelos nazistas. No entanto, a propaganda neocon fez crer que o capitalismo é moralmente superior ao comunismo e ao nazismo. Não é. O mercado em si mesmo é moralmente neutro; já a ideologia que coloca o lucro como um fim em si mesmo (chamando-o pelo enganoso nome de "liberdade") é uma abominação equiparável ao nazismo e ao comunismo, pois a vida humana perde seu valor intrínseco do mesmo jeito. A liberdade apregoada pelos devotos do livre mercado é a liberdade de vender a si próprio e de se sujeitar a todo tipo de degradação que a folha de papel de um contrato aceite.
A propaganda capitalista, que vive de prolongar o clima da Guerra Fria ad infinitum, fez com que nos esquecêssemos dos genocídios perpetrados pelas chartered companies em nome do maravilhoso livre mercado. E do nada aparece um sheik das arábias, dono de uma corporação, que aluga 10% do território da Libéria — com gente dentro — a título de crédito de carbono. Vejam os comentários do colega Luciano Trigo a respeito. Resumidamente, o sheik comprou de um país subdesenvolvido — i.e., o direito de se desenvolver —, enquanto a sua empresa fica "tomando conta" de 10% de um país, garantindo que seus habitantes não "poluam".
O ambientalismo é promovido hoje pelos mesmos colonizadores de outrora. O ambientalismo consiste numa fraude pseudocientífica, anti-humana e letal cujo fito é repetir hoje o que faziam outrora: dilapidar os mais pobres e impedir que se desenvolvam.
A boa notícia (há de haver alguma) é que o Brasil, quando tudo parecia estar perdido, provou-se capaz de enfrentar esse problema e vencê-lo. A história do Acre deveria ser conhecida dos brasileiros de todos os estados.
O genocídio do Congo (1885-1908) é o mais famoso; não é o único perpetrado pelas chartered companies. O que elas buscavam eram os seringais, que são nativos da Floresta Amazônica. Esta se encontra em um país continental (o nosso) e numas republiquetas vizinhas. Era mais fácil começar com as republiquetas; e, de fato, o Peru alugou um pedaço do seu território — com os índios dentro — para a Peruvian Amazon Company, de capital inglês. Morreram 90% da população no chamado genocídio do Putumayo, também denunciado por Roger Casement. Esse genocídio começou antes e terminou depois do congolês: foi de 1885 a 1908.
O Peru tem bem menos unidade linguística e territorial que o Brasil. Lima fala espanhol; muitas áreas andinas falam a língua do Império Inca e os índios amazônicos não tinham tanta convivência com uma população de língua espanhola. A Amazônia brasileira também tem áreas de difícil acesso e com pouco conhecimento da língua pátria — mas esse definitivamente não era o caso do Acre. Ele estava cheio de brasileiros mesmo quando era parte da Bolívia.
Com o ciclo da borracha na Amazônia e as secas atrozes do Ceará, houve no s. XIX uma grande migração cearense que efetivamente garantiu a ocupação de significativas parcelas da Amazônia por brasileiros. Na diplomacia sul-americana, desde o Tratado de Madri (costurado pelo santista Alexandre de Gusmão), vale o uti possidetis: o território é da nacionalidade dos seus habitantes. Esse tratado nos tirou a Colônia de Sacramento (atual Uruguai) e o direito a reivindicar as atuais Filipinas, mas deu-nos o interior da atual região Sul e, bem mais tarde, o Acre.
Embora não povoasse intensamente o Acre, a Bolívia aproveitou a Guerra do Paraguai (1864 - 1870) para empurrar o Tratado de Ayachuco (1867), no qual o Brasil cedia grandes terras contestadas e aceitava usar um meridiano como fronteira (algo que Gusmão evitava, porque ninguém vê meridiano no mato). Tudo de que o Brasil não precisava era se meter em outra guerra, ou dar a Solano López um aliado. Assim, sendo o atual Acre um território boliviano, formou-se nos EUA o Bolivian Syndicate com o fito de repetir ali o seu modus operandi. Segundo lemos na obra Plácido de Castro (Civilização Brasileira, 1973), de Cláudio de Araújo Lima, o presidente do Bolivian Syndicate era filho de Theodore Roosevelt.
A Revolução Acriana foi de 1899 a 1903, e teve uma série de altos e baixos. A Bolívia tentou ocupar o Acre para garantir o uti possidetis; não conseguiu. Ao cabo, arrendou-o ao Bolivian Syndicate em 1901 — com os brasileiros dentro. Cito a página 70 da obra mencionada, que lista os poderes da chartered company: "Direitos absolutos de administração fiscal e policial. Exclusividade para as iniciativas de exploração do território. Poderes para manter um exército. E uma pequena esquadra também."
O conflito teve muitas fases. No começo, os rebeldes eram financiados pelo governador do Amazonas, que não queria perder as receitas dos seringais para a Bolívia. O presidente Campos Salles, porém, não queria comprar briga. E o Bolivian Syndicate ia tentando comer os brasileiros pelas beiradas, fazendo crer que respeitaria os seus direitos. Na guerra, havia três países formalmente envolvidos: o Brasil, a Bolívia e... os Estados Unidos, cujo presidente era o pai do dono da empresa.
Até que, em 1902, o Bolivian Syndicate decretou "um prazo de seis meses, improrrogável, para que se registrem as medições e a demarcação de todas as propriedades territoriais, sem o que não se concretizará a legitimação da posse [dos brasileiros]. As propriedades não registradas passarão a considerar-se baldias ou devolutas, outorgado à Bolívia o poder de assumir-lhes a posse 'sem direito da mais leve oposição, embargos ou protestos'." (Plácido de Castro, p. 86) Aí a luta passou a ser dos próprios ocupantes, e não mais uma questão fiscal do estado do Amazonas. E a revolução afinal tomou corpo com a liderança do caudilho gaúcho Plácido de Castro, que se mudara para lá após deixar o exército. Com um caudilho gaúcho e uma infantaria de seringueiros cearenses fizeram-se as batalhas vitoriosas na selva amazônica.
Como o cerne da questão era o dinheiro, o experiente Barão do Rio Branco (agora José Maria Paranhos Júnior, pois era República), resolveu a questão comprando o Acre da Bolívia, que assim pôde ressarcir o Bolivian Syndicate sem que o papai Roosevelt tivesse que sujar as mãos. Plácido de Castro, porém, foi assassinado numa emboscada poucos anos depois.
Muito pouco se escreveu sobre tal personagem histórica; por isso, fica a recomendação do livro supramencionado. Registro que ele deixou um extenso diário (do qual o autor se serviu) e que se correspondeu com Euclydes da Cunha. Plácido de Castro o acusa de plágio, como se pode ler à p. 272. Por sua versão, Euclydes da Cunha teria pedido a ele informações sobre a vida dos seringueiros no Acre e publicara a sua monografia, em versão adulterada para despertar a piedade do público.
São muitas as lições do Acre para nós. No séc. XXI, as novas chartered companies alegam proteger os nossos índios de nós, mas, em vez de tentar engabelar os brasileiros não-índios da Amazônia, expulsam-nos, para não ter o risco do uti possidetis com os garimpeiros e arrozeiros. Mas o maior ensinamento é moral: o Brasil é melhor do que as "modernidades" dos capitalistas transnacionais, e pode vencê-los.
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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima