Por ossos do orifício, aproveito que estou num lugar com TV a cabo e ligo na CNN no dia 8 de janeiro de 2024 a fim de me inteirar da memorialização histérica, artificial e sectária do “8 de Janeiro”. Escolhi a CNN porque, visitando os velhos no natal (velhos ainda veem TV), descobri que os apresentadores e jornalistas do canal nutriam as expectativas mais grandiosas para a data: falavam animados da cerimônia, da presença dos governadores e de um Museu da Democracia; mas também, consternados, temiam uma nova intentona bolsonarista que poderia acontecer em 8 de janeiro de 2024. Esse temor me pareceu fascinante, pois não ouvi qualquer rumor de que os bolsonaristas cogitassem fazer tal coisa.
A ideia de criar um Museu da Democracia parece boa mesmo, se considerarmos que museus costumam expor coisas de tempos passados que já não se encontram mais entre nós. Um Museu da Democracia inaugurado em 2024 poderia ser dividido em três partes: uma dedicada à República Velha, outra à República Nova (de JK e Jânio) e outra à Nova República. São os três períodos em que o Brasil esteve num regime que se convenciona chamar democrático, ou seja: um regime pluripartidário no qual a mais importante autoridade do país é eleita em pleitos que se preocupem em parecer limpinhos (ainda que seja uma preocupação infantil igual à da criança que molhou o cabelo na pia para enganar os adultos dizendo que tomou banho).
Antes da República Velha, não era democracia porque tínhamos o Imperador como principal liderança política do país, e Imperador não era eleito. Ainda assim, existiam eleições para diversos níveis do legislativo, desde as câmaras municipais até o Parlamento na sede da Corte. No Estado novo, não havia eleição de nada; no período, militar havia eleições indiretas para o cargo máximo e (antes do Pacote de Abril) com regras que inviabilizavam a criação de partidos.
Não precisei assistir a muitas coisas, porém. Bastou pôr na CNN para, na mesma hora, ver uma reprise de Barroso dizendo que a micareta bolsonarista foi um dos episódios “mais tristes da história do Brasil”. São 524 anos de história. Tivemos escravidão indígena e negra, tivemos o Santo Ofício perseguindo sodomitas, tivemos horríveis banhos de sangue em revoltas do Período Regencial, tivemos golpes de Estado bem-sucedidos (há quem diga que a própria Proclamação da República foi um). Ora, mesmo que se seja um woke, é facílimo apontar coisas muito mais “tristes” em 524 anos de história do Brasil do que a micareta bolsonarista que resultou em depredação de patrimônio histórico (aquele relógio!!) e artístico, em prisões arbitrárias e uma morte. Pessoalmente, eu ficaria com a Cabanagem e com a Guerra do Paraguai (mesmo o Brasil estando absolutamente certo em combater Solano López), em virtude de suas letalidades descomunais, e com as atrocidades descobertas pelo Relatório Figueiredo, por causa da sua traição à história nacional e ao herói Rondon. Para a sensibilidade woke, porém, talvez a execução pública dos quatro mulatos da Revolta dos Alfaiates, que bem poderiam ser representados como quatro Tiradentes pretos e pobres lutando por Democracia.
Se fôssemos fazer um Museu da Democracia como o que propus acima, também poderíamos colocar nos períodos democráticos coisas indubitavelmente mais tristes que o 8 de janeiro. Na República Velha, tivemos a Revolta de Canudos, a Guerra do Contestado, o Bombardeio de São Paulo pelo presidente Arthur Bernardes, com inúmeras baixas civis totalmente inocentes. O bombardeio de Salvador merece ser mencionado porque destruiu a biblioteca pública mais antiga da única capitania estatal do Brasil. Toda a situação do Rio Grande do Sul, que vivia em guerra civil interminável até a ascensão de Vargas, também é certamente muito triste.
Na República Nova, tivemos a limpeza étnica de índios por funcionários psicopatas do Serviço de Proteção ao Índio criado pelo genial Cândido Rondon, um dos maiores da História, figura humaníssima. Ele havia confiado em Darcy Ribeiro como um sucessor seu na SPI. A coisa só foi descoberta com o fim da democracia, quando os militares deram uma passada em revista na situação das instituições públicas e desmontaram o esquema. Infelizmente, a descoberta, que culminou no Relatório Figueiredo, é usada como “crime da ditadura”, quando na verdade foi um crime da democracia que se encerrou na ditadura.
Quanto à Nova República, não podemos apontar nenhum grande episódio traumático. No entanto, como estamos escolhendo crimes de sangue, eu apontaria o crescente vício em drogas e o estado de guerra civil latente nos centros urbanos como a maior tragédia da Nova República. Isto não veio desacompanhado de uma reforma dos valores da sociedade. A globalização e a desregulação do mercado financeiro, a adoção do liberalismo no âmbito da moral e a adoção do neoliberalismo no âmbito econômico (o Bolsa Família é o imposto negativo de Milton Friedman) criaram o caldo cultural niilista no qual é muito bonito as pessoas quererem ganhar dinheiro sem trabalhar para torrar em drogas.
Resta saber, porém, se ainda estamos na Nova República, ou se entramos numa Novíssima República, ou República Judiciária. O ato público do dia 8 de janeiro de 2024 é um tanto quanto estranho: normalmente, quem faz manifestações públicas não são “as instituições”, mas sim o povo e suas lideranças políticas, que ficam à frente de cargos eletivos ou de variadas entidades civis (como sindicatos, ordens profissionais e sociedades diletantes). Por isso, foi estranho pra burro ver uma manifestação capitaneada pelo Supremo Tribunal Federal (o nome “Democracia Inabalada” veio de lá) na qual juízes constitucionalistas dividiam o protagonismo com autoridades eleitas. Pacheco e Lula gozam de legitimidade popular; Barroso e Xandão, não. Supostamente, teriam de ser técnicos e imparciais em suas análises constitucionais. Barroso tem tantos projetos que Sarkozy já perguntou se vai se candidatar à presidência; Xandão fez um discurso político sobre a necessidade de regulamentar as redes. Bem poderia se candidatar ao legislativo, se os tempos fossem outros.
Chamou-me a atenção a Constituição gigante instagramável que colocaram no Planalto para as autoridades tirarem fotos. Ao que tudo indica, a Novíssima República será regida pelo Livre Exame da Constituição de 1988 exercido pelos ministros do Supremo. O Livre Exame é um conceito do protestantismo; o Brasil tem um longo histórico de magia e possessão por entidades. Assim, em breve é capaz de vermos os ministros em transe pitarem um charuto enquanto recebem o Espírito da Constituição.
Na Novíssima República, creio que devemos acender velas e botar despachos para o Espírito da Constituição, rogando-lhe, entre outras coisas, que considere inconstitucional a saidinha de natal.
***
Li a réplica do Sr. Susskind neste jornal e fiquei contente por tê-lo feito afirmar, às claras, dois despautérios que estavam implícitos no seu artigo criticado: que Platão só escreveu a República por obra e graça dos judeus (“Platão escreveu 'A República' em 375 BCE, portanto o mundo vinha sendo ensinado pelos judeus sobre tais valores por longos 895 anos antes de Platão escrever seu livro. Quando Platão nasceu, seus tataravós e os bisavós de seus tataravós já haviam aprendido de algum judeu o significado destes valores [de não matar, não roubar etc.]”) e que toda a moralidade ocidental, por seu passado cristão, é tributária da religião judaica (“Jesus era judeu, jamais abandonou o Judaísmo e difundiu os princípios judaicos.”)
Eu citei a República por dois motivos. O primeiro é ela ser um exemplo de pilar fundamental da moralidade ocidental e precede o cristianismo; ela lembra que, com Grécia e Roma, o ocidente cristão teve muitas fontes sem origem judaica para a sua formação moral. Inclusive, é muito duvidoso que, em milênios de interação com outras culturas, o judaísmo tenha permanecido isento de influências e tenha sido somente um farol iluminando os outros, sem se deixar influenciar nem um pouco. O Novo Testamento, mesmo, foi escrito em grego, e usava a Septuaginta (tradução grega do Velho Testamento hebraico) como fonte. Para a importância da Septuaginta entre judeus, recomendo o prefácio de Frederico Lourenço do seu primeiro volume da tradução do Novo Testamento, publicada no Brasil pela Companhia das Letras.
A outra razão é que na República Platão explica, por meio de seu exemplo da “sociedade dos ladrões”, que a ética é essencial à existência de qualquer sociedade. Quando ladrões se associam num bando, há uma ética (precária, é verdade) que os impede de roubarem uns aos outros, senão o bando não dura. Podemos dizer que algumas sociedades estão mais próximas da Ideia de Bem e do Justo do que outras, mas em todas elas é preciso haver algum pálido vestígio.
Por isso mesmo, não é verdade que “Bruna ainda atribui a moralização do mundo a Jesus.” Eu não sou maluca para achar que um único indivíduo ou grupo étnico é capaz de moralizar o mundo inteiro. A moral desponta em várias partes do globo porque é uma necessidade social intrínseca à natureza humana. A poesia de Homero não tem nenhum fundo moral? Homero é anterior à Torá. Confúcio tem uma moral também. Será que os chineses só tinham moral porque os judeus foram à China? E se aceitarmos que os ameríndios também tinham moral, faremos como os mórmons e diremos que eles são tribos originárias de Jerusalém?
É preciso que o código moral seja escrito na forma de leis? Pelos números de Susskind, Moisés entregou a lei aos judeus em 1.260 a. C. O Código de Hamurábi, notório introdutor do princípio da proporcionalidade da pena reconhecido como Direito Humano até hoje, foi escrito uns quinhentos anos antes disso. É contra assassinato, adultério, roubo, essas coisas elementares. Se todo conhecimento de normas morais é transmitido e não pode se originar de modo espontâneo, então havemos de dizer que os acádios são o povo escolhido e ensinaram as leis aos judeus. Em vez de Deus, Moisés terá ouvido um acádio, que estava ali por perto no Oriente Médio.
Quanto à afirmação de que Jesus permaneceu um judeu religioso, isso é a melhor prova do fato de que judeus sofrem influências de outras culturas. Isso é papo de seita evangélica neopentecostal. Pessoas com cultura geral sabem que os judeus religiosos consideram Jesus um falso profeta (diferentemente do islamismo), e que Jesus, no Novo Testamento, fixou uma lei nova. É preciso amarmos até os nossos inimigos (para ficarmos com um imperativo mais profundo), e (para escolhermos um mais banal) é proibido o divórcio. Além disso, desconheço seitas cristãs proibidas de comer porco (isso quem imitou foram os muçulmanos). A maneira como os evangelistas se referem aos judeus seria facilmente cancelada hoje, ainda que esteja claro, pelo contexto, que eles se refiram às lideranças religiosas dos judeus étnicos (afinal, Jesus e os apóstolos eram de etnia judaica).
Mas o protestantismo, sobretudo as seitas evangélicas neopentecostais, não é sério; o protestantismo é uma fraude intelectual. Os protestantes fizeram o Livre Exame de um texto que proíbe o divórcio para romper com uma instituição que proíbe o divórcio e criar religiões que permitem o divórcio. Por isso que o Brasil está sob a juristocracia: por causa da influência de uma potência fundada por seitas protestantes onde se governa por meio do Livre Exame.
Desejo muita sorte ao Sr. Susskind. Ainda bem que ele estudou Arqueologia Clássica e assim poderá descobrir para nós as evidências de que algum judeu ensinou a República a algum antepassado de Platão.
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