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A ideia de democracia hoje enfrenta uma grande ameaça: a regulação arbitrária por meio da interferência das autoridades do Direito. A qualquer momento alguém importante pode se sentir mortalmente indignado porque uma regra inexistente não foi obedecida pelas autoridades eleitas, e então botar Ministério Público no meio, ou quem sabe ir direto ao STF. Em geral essa regra inexistente diz respeito ou ao progressismo, ou à luta contra a corrupção. Assim, uma hora denuncia-se o inexistente crime de gordofobia aqui, noutra hora um gasto “inapropriado” de recursos públicos ali.
Creio que, neste último quesito, o mais comum seja atacar as obras com temas católicos. Volta e meia a ATEA processa algum município que está construindo uma obra pública religiosa. O pressuposto deles é que toda estátua com tema religioso é algo estritamente confessional e limitado a uma única religião, e que o papel do Estado é gastar dinheiro somente com o que todos concordam – coisa que invalida a ideia mesma de eleição, já que a oposição sempre vai achar que o governo está gastando dinheiro do jeito errado.
Adotando-se essa mentalidade – segundo a qual todo gasto tem que ser consensual e tudo que não é laico ofende ateus –, eu deveria argumentar que eu sou ateia, portanto não participo da festa do São João, portanto as prefeituras do Nordeste estão ofendendo a mim, pessoalmente, quando enfeitam as ruas com bandeirolas juninas e preparam festas. E pouco importaria que o município nordestino não tivesse um único ateu: o que importa é não ferir a susceptibilidade do ateu da ATEA que está trancafiado num condomínio na capital de São Paulo, tomando antidepressivos enquanto prega incansavelmente a palavra de Dawkins na internet. A democracia não tem que atender aos munícipes; tem que atender a ele.
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O caso dos shows de Gusttavo Lima
Segundo informa o Correio, na sexta-feira da semana passada populares da cidade de Teolândia, Bahia, fecharam a BR-101 para protestar contra a decisão da juíza Luana Paladino, que na própria sexta decidira que a XVI Festa da Banana estava canceladíssima: “a juíza ainda estabeleceu multa correspondente ao dobro do valor do contrato em caso de descumprimento. Também determinou que a Coelba suspenda imediatamente o fornecimento de energia elétrica aos locais que estavam previstos para receber os shows e que os equipamentos sonoros que seriam usados sejam lacrados”. O MP acionara o Judiciário com um arrazoado parcialmente orçamentário: “Rita de Cássia Pires [a promotora] ressaltou ainda que as despesas para o evento seriam superiores a 40% de todo o gasto com saúde realizado em Teolândia em todo o ano de 2021. Cinco atrações chegam ou superam a cifra de R$ 100 mil: Gusttavo Lima (R$ 704 mil), Unha Pintada (R$ 170 mil), Adelmário Coelho (R$ 120 mil), Marcynho Sensação (R$ 110 mil) e Kevy Jonny e Banda (R$ 100 mil)”. O outro motivo listado me parece pertinente, que é o valor da festa quase coincidir com o dinheiro enviado pelo governo federal por causa das chuvas que abateram a região. Ainda assim, a prefeitura é inocente até prova em contrário.
Nem no Correio, nem na Folha de S. Paulo (que também cobriu o assunto), é mencionada alguma lei ligada à proporcionalidade das despesas. A Constituição Federal, sim, amarra um monte de obrigações orçamentárias, que o consenso liberal até ontem acreditava ser uma má coisa. O fato de o show custar 40% do orçamento municipal da saúde não me diz nada. Teolândia, com seus 15 mil habitantes, tem algum centro de tratamento especializado que justifique gastos muito altos? Porque qualquer um sabe que pelo interior não existe a expectativa de ser atendido sempre na sua própria cidade. Um bom governo estadual pulveriza centros hospitalares em cidades de demografia média e as transforma em polos de atendimento regional (lembremos que o território da Bahia é um pouco maior do que a França e bem menos povoado). A saúde de Teolândia deve consistir em postinho e transporte de pacientes. Quem elegeu a procuradora do MP para determinar uma proporcionalidade entre gasto com festa e gasto com saúde?
Gusttavo Lima ficou sob os holofotes por causa de críticas à Rouanet. É um erro colocar os shows da Rouanet no mesmo balaio que os shows das prefeituras. Afinal, a Rouanet é uma isenção fiscal. Sendo dada a empresários do ramo do showbusiness, vai para o saco todo caráter não-lucrativo que ela poderia ter, pois alguém como Ivete Sangalo pega o dinheiro da isenção fiscal e faz shows com ingressos caros do mesmo jeito. Por outro lado, prefeituras não vendem ingressos. Pensemos: quantas pessoas em Teolândia teriam condições de se deslocar para um grande centro e pagar um ingresso de show de Gusttavo Lima? Dividindo os R$ 706 mil pelos 15 mil habitantes, tem-se um custo per capita de R$ 47. Um show dele que vai acontecer em Votorantin, São Paulo, neste sábado, cobra o ingresso de R$ 116. Se eu fosse um fã de Gusttavo Lima de Teolândia, ia queimar pneu na BR-101 também.
A defesa apresentada pelos defensores da manutenção do show é que a Festa da Banana movimenta a economia da cidade. E é verdade: dada a onipresença das canções de Gusttavo Lima pela Bahia (o povo faz n regravações dele e de Marília Mendonça em versão arrocha), é de se esperar que a população das cidades vizinhas lote o tal Festival da Banana – e jogue o preço per capita ainda mais para baixo. E isso pode ajudar a cidade a se recuperar economicamente das chuvas, atraindo o dinheiro de turistas. Mas o fundamental mesmo é que as cidades têm que ter o poder de decidir o que fazer com o próprio dinheiro.
Por que será que o Estado tem saúde pública? Ora, porque os cidadãos sozinhos não podem comprar um aparelho de radioterapia e levar pra casa. A ideia de uma saúde pública se consolidou com o avanço da medicina e seu consequente encarecimento. O Estado serve para providenciar esse tipo de coisa. O Estado tem bibliotecas por entender que livros são boas coisas, e faz sentido comprar um montão para dar acesso a toda a população. Os shows públicos passam por essa lógica.
No caso dos pequenos municípios, todo prefeito é um pouco síndico; é vigiado pela população. Se um prefeito contratasse um desses artistas lacradores que vivem de edital, o povo já ia querer saber quem é o desconhecido. E quando o artista lacrador começasse a gritar no palco que Jesus é bicha ou sei lá o quê, a morte política do prefeito estaria decretada.
Polêmica paranaense
Por mim, fica assim: prefeituras bancam festas populares, os governos estaduais e federal cuidam de preservar e difundir a cultura mais elevada ou tradicional. A Rouanet fica, mas com mais critérios; nada de dar dinheiro para artistas famosos cobrarem ingressos caros. As cidades grandes também precisariam garantir que os shows municipais saíssem em conta e não fossem capturados por panelinhas de psolistas. Já critiquei algumas vezes neste espaço a atual gestão cultural da dupla de tuiteiros que ocupa a Secretaria de Cultura. Numa delas, comentei que a Bahia petista, que é sovina com a cultura, faz muito bem em gastar um dinheirinho com o Neojibá, um projeto surgido no governo Jaques Wagner, inspirado no Maestro Dudamel da Venezuela, que consiste em levar música clássica às periferias e caçar aí talentos musicais. Agora, é claro que isto não foi um raio em céu azul, e o PT soube manter o histórico prévio da Bahia de preservar a alta cultura.
Nesse tipo de debate, volta e meia aparece quem ponha uma cisão absolutamente inflexível entre culturas popular e erudita. No caso da dupla tuiteira, só caberia ao Estado dar dinheiro ao popular, condenando uma criança nascida na favela a morrer ouvindo só funk. Agora descubro que, para a esquerda paranaense, quem é do interior não pode ouvir orquestra sinfônica sem viajar, e que orquestras sinfônicas não podem tocar música popular. A polêmica paranaense considera que “ao fazer a Orquestra Sinfônica do Paraná adotar um repertório sertanejo, governo dá mais um passo no desmonte da cultura no estado”!
O articulista Rogério Galindo é contra as orquestras tocarem sertanejo e culpa pessoalmente Carlos Prazeres por ter aceito embarcar nessa missão do "desmonte" bolsonarista da cultura. Ora, Carlos Prazeres é maestro da Orquestra Sinfônica da Bahia, bem conhecido da população soteropolitana. Nunca tinha me dado ao trabalho de procurar sua orientação política, mas não é difícil descobrir que é de esquerda. Ponto para Ratinho Jr., que procurou um maestro experimentado independentemente de orientação política.
A mistura entre música erudita e popular é coisa das mais arraigadas no Brasil. Não é possível enquadrar Villa Lobos como erudito ou popular. Chiquinha Gonzaga, tampouco. Tom Jobim é outro que transita pelas duas áreas. Mas o chilique contra a música sertaneja tocada por orquestra só mostra que o articulista não deve fazer ideia de quem é Sivuca. Recomendo ao leitor, caso não o tenha feito, que ouça o CD "Sivuca Sinfônico", em que o hábil sanfoneiro paraibano, compositor de "João e Maria" (famosa na voz de Chico Buarque), toca músicas próprias e alheias com a Orquestra Sinfônica do Recife. Não, ninguém acha que Luiz Gonzaga precisa de um carimbo erudito para ser respeitável – e eu tampouco acho que Renato Teixeira, citado no artigo de Galindo, precise disso. E justo por achar bonita a música de Renato Teixeira, acredito que Carlos Prazeres tenha feito um belo trabalho. Choca-me que a esquerda paranaense considere digno cultivar jazz, uma música popular estrangeira, e desdenhe do sertanejo.
O articulista parte do pressuposto de que o povo vai gostar da versão sinfônica, mas que dar isso ao povo é errado mesmo assim. Deslocar orquestra é caro e orquestras devem tocar só música erudita. Eu já acho que transportar orquestra sinfônica estado adentro é um jeito bom de se gastar o dinheiro da Lei Aldir Blanc. E se isso é uma novidade tão grande, creio também que tocar músicas sertanejas em praça pública seja um jeito bom de introduzir os cidadãos na música clássica. No mais, pelo que conheço do feijão com arroz baiano, eu duvido muito de que Carlos Prazeres não tenha tocado nenhum autor erudito nos concertos paranaenses.