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Bruna Frascolla

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Bernanos e a conspiração contra a vida interior e a liberdade individual

Liberdade
Em algum momento dos últimos séculos, tornou-se moralmente aceitável olhar para um homem como um elemento sem valor especial. Não é de admirar que o século XX tenha sido o século dos genocídios tecnologicamente avançados. De admirar seria se o século XXI não fosse. (Foto: Pixabay)

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Se, como vimos, Tocqueville deu no século XIX uma ideia iluminadora da Revolução Francesa como uma consequência e não uma causa da modernidade, seu compatriota do século seguinte, Georges Bernanos, deu uma ideia iluminadora de uma revolução religiosa operada pela modernidade.

Hoje nos é empurrado goela a baixo que a civilização judaico-cristã ocidental é absolutamente abominável. É bom deixar claro que nós integramos tal civilização: nossa língua materna é latina; nossas instituições e nossa religião fundadora, idem. Não somos ricos, somos moreninhos, mas nada disso faz com que não sejamos ocidentais, e é estranho quererem condicionar cultura a dinheiro ou raça. A outra coisa que vale deixar clara é quem exatamente nos empurra essa ideia goela abaixo: são, em primeiro lugar, as grandes corporações monopolistas. Aqui no Brasil vimos isso surgir primeiro nas universidades, com a racialização artificial e compulsória da nossa população – mas não atentamos ao fato de que isso se deu em com o financiamento da Fundação Ford. Nos EUA, vimos os cursos “antirracistas” racistas surgirem nos RHs das grandes corporações antes de irem para o Exército. Essas corporações impõem suas doutrinas após corromperem as instituições; depois, olhamos para as universidades e governos achando que o mal surgiu ali, quando não é verdade.

Bernanos e o capitalismo

Georges Bernanos saiu da França ocupada pelos nazistas e veio para o Brasil, pelo qual desenvolveu um amor bem grande. Antes da guerra ele era conhecido por suas obras literárias. Durante a guerra, começou a escrever panfletos político-filosóficos contra o marxismo, contra o racismo, contra o fascismo e contra o capitalismo. Para ele, tudo no fim era a mesma coisa: uma conspiração contra a vida interior e a liberdade individual.

À primeira vista, pode parecer só chilique de intelectual francês; mas quando o vemos adivinhar, já em 1944, que o comunismo se tornaria capitalista, temos que dar o braço a torcer e admitir que ele não pode estar muito errado nas coisas que diz. Cito-o:

“A Rússia leninista era anticapitalista e antimilitarista. Mas a Rússia está reorganizando o seu capitalismo, assim como já reorganizou magnificamente o seu exército. Se os acontecimentos seguirem o seu curso, a Rússia será brevemente a maior potência capitalista do mundo.” Se trocarmos a Rússia pela China, está mais do que certo.

“De que adianta fazer uma distinção entre capitalismo de Estado e capitalismo privado? Ambos procedem da mesma concepção de vida, da ordem, da felicidade, e acabam sempre por se entender. As democracias anglo-saxônicas não se orientam para uma espécie de capitalismo de Estado?”

A promessa do marxismo clássico de fato era a abundância material. De minha parte, desejo o liberalismo político, o liberalismo completo que instaura a limitação do poder, a igualdade perante a lei e a liberdade de expressão. Mas vemos que o velho liberalismo político está sendo substituído pelo identitarismo, que defende a desigualdade perante a lei (cotas) como meio de o indivíduo oprimido atingir o pináculo de sua existência, que nada mais é que carguinho ou emprego — ambos, no frigir dos ovos, materiais. Penso que o liberalismo político deve ser visto como ferramenta indispensável à manutenção da liberdade, e não como guia norteador da vida de alguém.

Penso ainda que Bernanos está consideravelmente certo nesse trecho. Se uma sociedade decidir que nortear o seu ideal de vida pelo conforto material, mais cedo ou mais tarde vende-se o Estado. Então, se as coisas seguirem piorando, tanto faz se você está na China, com um Estado que cria monopolistas, ou nos Estados Unidos, onde monopolistas compram o Estado: as liberdades morrem em nome do “bem comum”. “Bem comum” este que sai mais barato quando comprado no atacado, pelo Estado, do que por indivíduos, no varejo. E tome-lhe monopólio.

Que concluir daí? De minha parte, concluo que ter boas instituições (e os EUA têm maravilhosas) não tira a obrigação de pensar e a de cultivar bons valores. Deveria ser óbvio, mas é lugar comum no Brasil culpar alguma coisa pretérita pelas nossas mazelas. Em vez de lastimar a tradição iliberal ibérica, devemos perguntar em que medida as instituições são causa ou efeito da nossa conduta. Porque se nossa inércia se mantiver, dá para considerar as nossas instituições como causadas por nós mesmos.

A hipótese sobre religião

Na mesma entrevista, Bernanos diz: “O erro dos cristãos, nos últimos duzentos anos, foi acreditar que a partida estava definitivamente ganha para o Cristianismo […] Quem teria imaginado então que um dia uma nova moral viria se opor a ele, que essa moral formaria consciências, imporia disciplinas mais estritas que a nossa e – por uma inversão sacrílega da ordem divina – teria seus místicos, seus ascetas e seus mártires?” De fato, o comunismo, o nazismo, o fascismo se enquadram nessa descrição. (Na verdade, até o hábito fazer com o nome de um mártir o slogan “Presente!”, que víamos há pouco com Marielle, tem precedente com o falangista José Antonio Primo de Rivera.) Como essas caricaturas terrenas do cristianismo pegaram no Ocidente?

Em outro texto publicado no Brasil, Bernanos dá uma explicação bastante plausível: as massas “tinham o culto da Ciência, do Progresso. Teriam podido pensar contra a Igreja, mas como teriam ousado pensar contra a Ciência, opor a vontade delas ao Progresso, expressão popular do Determinismo universal?” (De fato, o progresso é tratado como inexorável, o que faz dele um determinismo).

“Vimos nascer e propagar-se nas massas populares essa religião da Ciência. De início, ela não pareceu ter outro inimigo além da superstição. Não prevíamos que, ao arruinar indistintamente não apenas as superstições, mas também as crenças, acabaria por destruir uma crença essencial, indispensável, na qual se baseia a ideia de liberdade – a fé do homem em si mesmo. Enquanto exaltava a Humanidade, simultaneamente humilhava o homem, esmagava-o um pouco mais a cada dia diante da natureza; elevava a Humanidade às maiores alturas e delas precipitava o homem, o macaco superior em evolução; sacrificava o homem à Humanidade […]. O culto da Humanidade, que substituiu aquela Religião do Homem cuja mais alta expressão é o Cristianismo, que nos diviniza – quero dizer, diviniza a cada um de nós, que faz com que cada um de nós participe da Divindade, que dá cada um de nós, ao mais humilde entre nós, um preço infinito, digno do sangue divino –, o sacrifício do homem à Humanidade”.

Esta é uma hipótese muito plausível, já que é fácil atrelarmos o declínio do poder religioso no Ocidente ao crescimento de ideologias centradas na Humanidade, um entre abstrato e coletivo, em primeiro lugar. Para o cristão antigo, a vida de um camponês aleijado tem valor e não pode ser sacrificada à toa. Mas o que dizer da vida de um burguês para o comunista? Ou da vida de um homem branco cis hétero para um progressista? Ou, para ficarmos no tema premente: que dizer da vida de um único óbito causado por vacina experimental de covid? Que nada vale, pois a liberdade de escolher os riscos não lhe deveria ser dada mesmo, já sua vida perdida supostamente representa menos de 1%.

Um homem, um indivíduo, não vale nada se o cálculo (certo ou errado) de um burocrata decidir que o bem comum foi servido. “Essas mortes representam”, digamos, “0,01% dos vacinados. O Estado deve obrigar à vacina em nome do bem comum!” Pois bem. E se outra medida futuramente considerada essencial para o bem comum matar 0,01, mas 1%, ainda não será favorável ao bem comum? E se matar não 1%, mas 10%, por que ainda não será bem comum?

Em algum momento dos últimos séculos, tornou-se moralmente aceitável olhar para um homem como um elemento sem valor especial. Não é de admirar que o século XX tenha sido o século dos genocídios tecnologicamente avançados. De admirar seria se o século XXI não fosse.

PS: As citações de Bernanos foram retiradas de “A França contra os Robôs” (É Realizações, 2018).

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