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Vivemos tempos instáveis; por isso, é natural que ninguém saiba o que está acontecendo ao certo. Se alguém disser que tem certeza do que está acontecendo, o mais provável é que seja um iludido por propaganda. É sempre bom pensar na II Guerra ou na Guerra Fria: ninguém sabia – nem os alemães comuns – dos campos de extermínio nazistas. No Ocidente, o jornalista que foi à URSS fazer uma peça de propaganda pró Stálin ganhou um Pulitzer pelo seu trabalho. E enquanto todos temiam que a animosidade entre os Estados Unidos e a União Soviética culminasse num holocausto nuclear, o inesperado aconteceu: a União Soviética caiu de madura.
Ainda assim, há que se tentar entender mais ou menos o que se passa, já que o Brasil é parte do mundo e, nos dias de hoje, tem muito mais importância do que na época da II Guerra ou da Guerra Fria. Hoje somos responsáveis pela cadeia alimentar do mundo e temos um imenso território de riquezas minerais inexploradas. Temos, portanto, todos os motivos para sermos enxergados como estratégicos por qualquer potência global. Dominar o Brasil é dominar a cadeia de produção alimentos mundial.
Tendo isso em mente, vamos ao assunto do momento: o Capitólio tabajara, há muito anunciado e enfim concretizado com a ajuda de atores duvidosos. E se eu contasse ao leitor que nós temos, desde 2016, uma lei que especifica as motivações ideológicas que um terrorista tem que ter para ser considerado terrorista? Diz assim: “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Oposição ao progressismo é terrorismo doméstico
Nos Estados Unidos, temos assistido a uma tentativa crescente de criminalizar a oposição ao progressismo, alegando tratar-se de terrorismo. Ora é supremacismo branco, ora é crime de ódio, etc. Pessoalmente, o que me chamou mais a atenção foi a tentativa de tachar de terroristas domésticos os pais que se manifestassem contra o ensino de teoria crítica da raça (negro = bom; branco = ruim) em escolas. Mas isso aconteceu só depois do paradigmático 6 de janeiro de 2021, o “Ataque ao Capitólio”, no qual terroristas domésticos quase acabaram com a democracia mas felizmente foram contidos pelas security forces (“forças de segurança”). Nisso, uma manifestante levou um tiro letal.
Esse processo de criminalização é generalizado no Ocidente e, se tratado à exaustão, daria um livro maior que o Houaiss. O último causo que me chegou vem da Noruega, onde uma mulher pode pegar três anos de cadeia por ter dito no Facebook que homens não podem virar lésbicas. Discurso de ódio. Na Inglaterra, a novela é longa, e pode ser acompanhada pela trajetória da ativista Posie Parker.
Tendo em vista esses dois nomes usados para a criminalização – “terrorismo doméstico” e “discurso de ódio” –, cabe então pegar uma lupa e voltar à lei brasileira de 2016, sancionada quando Trump nem tinha sido eleito presidente ainda. Ela trata como terrorista quem for motivado por “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. A xenofobia mal faz parte do léxico do político brasileiro médio, e no entanto é citada primeiro. Essa expressão está na ponta da língua dos progressistas do primeiro mundo, que lidam com uma imigração descontrolada. Quanto à religião, a redação é ambígua; não sabemos se é motivado por “xenofonia, discriminação… e religião”, ou se por xenofobia e preconceitos relativos à cor da pele e à religião. Como no Brasil o evangélico foi pegado pra Cristo (à falta de homens brancos), eu aposto firmemente na primeira interpretação. Gente como Jean Wyllys volta e meia fala de “fundamentalismo cristão” como se fosse algo análogo ao fundamentalismo islâmico – que, como se sabe, produz terroristas aos montes.
Dito isso, eu não acredito que essa lei tenha sido redigida dentro do Brasil.
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O que petistas, trumpistas e bolsonaristas têm em comum
Em 2021, os trumpistas não tardaram a acusar o próprio FBI de estar envolvido com os protestos no Capitólio. Nada foi confirmado, mas nada é confirmado acerca de fato algum – por exemplo, nem se sabe o nome do agente que deu um tiro na manifestante. Como pondera Tucker Carlson, o governo Biden tem a faca e o queijo na mão: nada é investigado, e o evento serviu para que as autoridades dos EUA dissessem que o terrorismo doméstico dos supremacistas brancos era a maior ameaça enfrentada pelo país. Seja como for (como vemos no material coligido por Carlson), o FBI admite que tinha infiltrados nos movimentos trumpistas. Polícia secreta, senhoras e senhores. Não é impossível, portanto, que o ataque ao Capitólio tenha sido tramado pelo próprio FBI.
Se os trumpistas estiverem corretos, o mecanismo consiste em fomentar o caos para passar a repressão depois. Quem opera esse mecanismo? O tal do Deep State, ou Estado Profundo, que consistiria em agentes estatais fixos que não saem do governo com as eleições e que são os reais detentores do poder nos EUA. É parecida com a noção de “aparelhamento”, usada pelos brasileiros para se referir aos postos burocráticos tomados por esquerdistas.
Pois bem. Falando neles, em 2013 os petistas estavam plenamente convencidos de que os black blocs estavam a serviço da CIA e queriam derrubar Dilma. Em 2014, era a vez dos defensores do impeachment de acusar os black blocs de estarem a serviço de outrem; no caso, do PT, que teria o fito de transformar as manifestações em quebra-quebra e afastar os manifestantes sérios – que eram a maioria. Agora, tendo fresco na memória o caso do Capitólio, torna-se bem natural a direita supor que se tratava de uma operação análoga, que fomenta o caos para legitimar a repressão. Quem seriam os incendiários? Recomendo este dossiê de Kim Paim sobre o assunto.
Mas agora deveríamos recuar mais no tempo e pôr os olhos na lei de 2016. É possível que os petistas estivessem certos quanto aos black blocs serem plantados pelos EUA de Obama; é possível que os antipetistas estivessem certos quanto os black blocs serem infiltrados. E o fito era o mesmo de hoje: passar a repressão. No caso, a repressão que Dilma passou é uma lei 100% alinhada com a esquerda dos EUA.
O guru Fukuyama e a desilusão dos neocons
Os últimos presidentes dos Estados Unidos foram: George W. Bush (2001 – 2009), Barack Obama (2009 – 2017) e Donald Trump (2017 – 2021), com Biden começando em 2021. Antes desse período, os EUA estavam em seu apogeu no plano global: vitoriosos na Guerra Fria, líderes mundiais do capitalismo e da democracia.
Segundo explica John Gray em Missa Negra, os anos 90 foram também os anos dourados do filósofo norte-americano Francis Fukuyama, autor de O fim da história e o último homem (1992). Sua ideia era que o fim da Guerra Fria era o Fim da História. A humanidade encontrara o seu ideal na combinação entre democracia e livre mercado. Assim, os EUA se sentiam vanguarda moral do mundo e tratavam de impor a democracia a qualquer custo. Um primeiro povo a ser “liberado” era o iraquiano, com o pacifista Bill Clinton iniciando uma guerra com base na mentira de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Em todas as suas intervenções no Oriente Médio, os EUA fracassaram. A conclusão só poderia ser uma: Fukuyama tinha de rever sua posição. Esse ideal de que a combinação global de livre mercado e democracia resolve todos os problemas, de modo que algumas bombas podem ser gastas para consegui-lo, é conhecido como neoconservadorismo.
Agora Fukuyama diz que um Deep State é necessário à manutenção de democracias liberais, e que ele mudou de ideia após ver o colapso dos Estados montados pelos EUA no Iraque e no Afeganistão.
Uma hipótese
Creio que Obama tenha marcado uma profunda mudança no Deep State, que trocou a ideologia neoconservadora pelo progressismo duro, que fomenta relações promíscuas entre Estado e empresas. (Thomas Sowell diz, por isso, que Obama é fascista.) O governo Obama foi marcado também por um uso maciço de espionagem sobre países estrangeiros, como mostrou o Wikileaks à época, cujo fundador, Assange, paga o preço até hoje.
No Brasil, o governo Dilma marcou uma mudança profunda no perfil da esquerda. Antes de Dilma (e Obama) a esquerda brasileira era majoritariamente antiamericana e anticapitalista; durante Dilma (e Obama), a esquerda brasileira se transformou em opositora do “racismo”, “machismo” e “homofobia” em vez de opositora dos EUA. Dilma fez as alterações legais que permitiram a Lava Jato e, com isso, neutralizou-se a ala tradicional da esquerda brasileira, alinhada com o Foro de São Paulo. Gosto de lembrar que Dilma não foi punida pela refinaria da Petrobras nos EUA (a “ruivinha” Pasadena) e que o Ciência Sem Fronteiras, bilionário, transferiu dinheiro do Brasil para as universidades públicas e privadas dos EUA, que estão sempre em crise. (Biden deu anistia às dividas estudantis agora; se ele tivesse uma Dilma, talvez isso não fosse necessário.)
Essa nova esquerda é bem ruim de voto. Lula é solto com um papel a cumprir e o seu governo, em vez de se assemelhar a Lula I e II, desenha-se como uma continuidade do governo Dilma. Ou seja: essa catástrofe financeira deve ter sido planejada em Washington, do mesmo jeito que a lei antiterrorismo.
É esta então a minha hipótese: o governo Obama marcou uma nova direção nos rumos da política global dos EUA, e Dilma era uma infiltrada aliada.