A fim de escrever este texto, baixei pela primeira vez na minha vida o iFood. Ao pesquisar restaurantes, o resultado foi este.| Foto: Reprodução
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Antes de propagandearem a palavra “empatia”, a ideia de se colocar no lugar do outro era parte do senso comum e estava mais para regra de bom-senso do que para imperativo moral. Colocar-se no lugar do outro, um outro que está defronte de você, servia para entender a realidade que está bem aí no seu nariz. Qualquer um que barganhe, por exemplo, tem que ter um pouco de imaginação para saber com o que seduzir o vendedor ou comprador. “Do que será que eu gostaria, se eu fosse ele?”

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Expliquei a Polzonoff por que eu mesma não poderia boicotar a Uber. Ele se interessou pelo cenário econômico interiorano e diz que o farialimer não faz ideia de que isso existe. Então vamos à explicação. Mas vou me alongar um pouco para além do econômico e explicar o que vai na minha cabeça para não usar aplicativos – até porque me é difícil entender quem vive gastando com eles.

Por que não posso boicotar a Uber

Não posso boicotar a Uber porque ela me boicotou primeiro. Usei-o uma única vez, anos atrás, em Feira de Santana, para ir fazer uma prova na universidade estadual. Minhas opções eram: pegar um ônibus, um táxi ou instalar o aplicativo da Uber. Nunca morei em Feira de Santana, então não conheço a rotina e não tinha como ter certeza de que chegaria no horário, caso pegasse um ônibus. Como estava num hotel no centro e a UEFS é afastada, o táxi sairia caro. Por isso, e só por isso, instalei o bendito aplicativo, e fiz uma corrida. Depois descobri que estava excluída da plataforma. Presumo que tenha dado bode com o cartão de crédito, o meu único uso numa cidade onde sou forasteira.

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Naturalmente, só descobri que não podia usar Uber porque tentei usá-lo em outras circunstâncias na vida. Substituí-o por um outro aplicativo concorrente, que tem a vantagem de contar com taxistas na plataforma. Prefiro-os, porque assim não tem o risco de pegar um bocó que conhece a cidade menos do que eu e não sabe andar dez metros sem olhar para o GPS. As circunstâncias em que o usei foram todas em Salvador, quando não podia contar com o ônibus. Já aconteceu de eu mofar no ponto em final de semana esperando o ônibus em área turística. Me lembro de o prefeito Kalil, de Belo Horizonte, dizer no Roda Viva que os ônibus estão deficitários porque os homens compram moto. Esse problema seria nacional, sem solução descoberta. Ainda segundo ele, em ponto de ônibus quase só tem mulher, que não gosta de moto. Depois da observação dele, passei a reparar no sexo da gente no ponto e vi que tinha razão.

Mas duvido que a culpa seja toda das motos. Deve haver algum dedo de má gestão (como tudo) e os aplicativos não devem ser irrelevantes nisso. Fala-se demais de economia e liberalismo; falta discutir o impacto que os aplicativos de motorista têm sobre o transporte urbano, seja público ou particular. A única pessoa que me lembro de ouvir tratando disso na mídia, em rádio, é o Prof. Márcio Campos, de Arquitetura da UFBA. (Como eu sei que tem gente que me lê por causa de discussão sobre universidade, aproveito para recomendar esse texto dele sobre estacionamento grátis.

Para além de implicações públicas, uma coisa que me causa espécie são as finanças privadas de gente que regula de idade comigo e não tem uma vida econômica confortável. Pegam Uber daqui para ali, como se de 10 reais em 10 reais não se chegasse a um valor insustentável.

No frigir dos ovos, não pude boicotar aplicativo porque nunca achei razoável aderir. Gosto de andar de ônibus – de preferência, sentada na janelinha, olhando a paisagem – e ainda por cima é mais barato. Também serve para se inteirar dos costumes e novidades, com vendedores se desculpando por “perturbar o silêncio da sua viagem” e oferecendo produtos que variam conforme a cidade ou estado. Em São Paulo, muita muamba tecnológica; em Salvador, doce de banana e até abará. Acho que as pessoas evitam ônibus por acharem que é coisa de gentinha.

Tentando boicotar demais aplicativos

Há três meses, me mudei para a “Cidade Heroica”, da qual já dei maiores detalhes aqui. Com a presepada da Uber, tentei descobrir se poderia boicotar o concorrente, se quisesse. Não posso, porque o aplicativo não funciona aqui. Perguntei por Uber a uma forasteira que mora aqui faz tempo. Ela me disse que o aplicativo chegou, mas não deu certo porque toda a Cachoeira tinha um único motorista inscrito no aplicativo.

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Nisso, Polzonoff pergunta se tem táxi. Tem muito mototáxi, como creio ser comum nos interiores do Brasil todo. Além disso, tem uns poucos motoristas que ficam junto do Mercado Municipal, onde é realizada a Feira Livre. Eles parecem ter como itinerário certo a ida para a zona rural. Cobram cinco reais para repetir o itinerário do ônibus, que é só no asfalto e também cobra cinco reais, e vinte para ir até uma determinada propriedade, precisando entrar numa estrada de terra. De modo que, segundo creio, o táxi de quatro rodas parece ser mais coisa voltada a atender a zona rural.

Não que os roceiros andem todos de táxi. É comum ver na cidade, junto com os carros, homens a cavalo com dois cestões de palha. Com esses animais são trazidas as mercadorias da zona rural para a cidade. A minha tia de Salvador achou o trânsito parecido com as imagens que ela vê da Índia, mas o trânsito é pequeno porque a cidade é pequena. Ademais, não dispomos de elefante.

Em Salvador, eu fazia tudo quanto possível a pé, tendo fixado (caso não houvesse problema com horário) o limite máximo de 45 minutos de caminhada. Meu limite inicial era meia hora. Aumentou à medida que eu mofava no ponto de ônibus e pensava que chegaria com mais pontualidade andando, por causa da imprevisibilidade do tráfego e do ônibus. Resolvi o problema me mudando para uma cidade de pedestre.

Andar nunca foi um problema para mim, mesmo numa cidade cheia de ladeiras como Salvador. Nunca frequentei academia,e está fora de cogitação pagar para ficar fazendo movimentos sem sentido enquanto meus tímpanos são massacrados. O povo de classe média da minha idade paga pra fazer academia e paga à Uber para ir daqui a ali. Podem até cortar a academia, mas não largam o aplicativo nem quando estão desempregados.

Não posso boicotar aplicativo de comida

A fim de escrever este texto, baixei pela primeira vez na minha vida o iFood. Será que eu conseguiria boicotá-lo, caso começasse a usá-lo antes? Tal como o da Uber, o aplicativo pega aqui. Mas, ao pesquisar restaurantes, o resultado é a figurinha que encabeça este texto. Amigos do Sudeste me disseram que existe um concorrente do iFood especializado em cidades do interior; que é uma beleza, pois entrega marmita de PF. Baixei-o, e ele de fato traz uma lista de cidades por estado onde há restaurantes inscritos. Na Bahia, há apenas doze cidades, constando na letra C somente Caetité e Catu. Nada de Cachoeira. Não posso boicotar nem um aplicativo interiorano de comida.

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Já escrevi aqui sobre o iFood e, com alguma hipérbole, disse que proibiria o aplicativo se fosse ditadora. Mas, sem hipérbole nenhuma, digo que ficaria mais preocupada se tivesse um filho usuário frequente de aplicativo de comida do que se encontrasse um cigarrinho eventual.

Depois do texto sobre iFood, amigos me explicaram que é uma coisa “gamificada”, em que você fica recebendo um montão de cupons e tem prazo para aproveitá-los. Se você não aproveitou, perdeu. Então, para ter uma sensação de ganho, é preciso comprar mais e mais – e tome-lhe comida. Nesta Gazeta, aprendi ainda que os tais cupons são bancados pelos restaurantes e não pelos aplicativos. Do impacto sobre  restaurante, este jornal já falou. Eu me pergunto sobre o impacto que o iFood tem sobre o bolso e a saúde dos clientes.

Um amigo do interior Sudeste leu e contou que usa aplicativo de comida pra pedir PF de arroz, feijão e bife porque trabalha fora – é a tradicional quentinha chegando por outros meios. Mas é impossível o povo da minha idade, da cidade grande, que fica trancado em home office comprando as refeições por aplicativo gamificado, ter a mesma expectativa de vida do que seus pais.

Acho que essas pessoas não têm disciplina. É muito fácil para mim acordar, tirar um pacote de sururu do congelador, ler alguma coisa, começar a escrever este texto, parar para jogar uma água no sururu na peneira, picar uma cebola e alho, refogar com açafrão e sal, jogar uma água, voltar para o computador, em seguida voltar para a panela, jogar arroz, dar uma mexida e esperar ficar bom. Almoço, espicho as pernas e volto para terminar este texto.

Ontem comi o almoço de anteontem, feito na panela de pressão. Não preciso cozinhar todos os dias e comida cotidiana não é trabalhosa, nem requer muito tempo na cozinha. Realmente, só com indisciplina, preguiça ou inércia se explica a necessidade que as pessoas sentem de comprar comida todo dia. A qualquer gamificação, deveríamos opor os preços das comidas saudáveis vendidas na feira. Nenhum desempregado deveria se sentir esperto comprando uma pizza borrachuda barata, por mais bacana que seja o cupom.

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Não vejo nada de irracional nas minhas escolhas de vida. De certa forma, me considero até calculista, pois não conheço outras pessoas que elenquem razões e decidam se mudar para uma cidade onde não conheçam ninguém previamente. (Morando a duas horas de Salvador, posso visitar e receber visitas com facilidade). Irracional é viver gastando dinheiro com coisas ruins e isso me parece mais um fenômeno de manada do que de relação custo-benefício.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]