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Ayaan Hirsi Ali foi chamada para o podcast de Jordan Peterson para falar do seu novíssimo livro, Prey: Immigration, Islam and the Erosion of Women’s Rights, que não existe em português, mas cuja tradução literal seria: Presa: a imigração, o Islã e a erosão dos direitos das mulheres. Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália, numa família muçulmana, e algumas etnias africanas acrescentam seus próprios traços culturais misóginos a uma religião que já não é boa com as mulheres. A família da autora é uma dessas, e ela, quando criança, tal como muitas meninas, foi submetida à mutilação genital que amputa o clitóris (às vezes os lábios menores também) e transforma a vagina numa coisa lisa costurada, a ser descosturada somente após o casamento. O casamento é arranjado pelo pai, que reivindica a posse da filha para entregá-la, como quem entrega um camelo, a um novo proprietário.
Contra todo determinismo social, Hirsi Ali prosperou na Europa. Seu livro Infiel caiu como uma bomba na Holanda. Ganhou versão cinematográfica pelas lentes de Theo van Gogh, assassinado por islamistas por causa disso. A própria Ayaan vive sob pesado esquema de segurança há tempos, por estar na mira dos mesmos algozes. Ademais, ela é uma apóstata, e a apostasia, na xaria, é punível com morte.
Todo esse seu florescimento só foi possível por causa das liberdades oferecidas pelo Ocidente. Quando o pai de Ayann apareceu na comunidade de imigrantes na Holanda para reclamar a sua posse e enviá-la para um marido no Canadá, a funcionária disse que ela não precisava ir – para o choque e, depois, o alívio da imigrante. Porque uma coisa que nós, brasileiros, temos dificuldade de entender é que há países onde grupos humanos convivem como água e óleo, sem se misturar e nem sequer falar a mesma língua. Então essas comunidades bárbaras existem capilarizadas no seio de países ricos, como a Holanda ou a Alemanha.
Como nós somos
É verdade que nós não temos a má fortuna de receber massas bárbaras de supremacistas culturais (que são os islamistas). Os europeus recebem porque são seus vizinhos ao Leste (Oriente Médio) e ao Sul (África). Mas acontece, fora do Brasil, de imigrantes fecharem-se em seus bairros, trabalharem em empregos rudimentares e nunca precisarem aprender direito o idioma do seu novo país. É como se esses venezuelanos, haitianos e sírios que hoje chegam nunca aprendessem português direito e tivessem filhos que tampouco aprendessem português direito e não tivessem sequer uma amizade – que dirá um namoro – com um falante nativo de português.
Ainda por cima, em países europeus é comum a cidadania ser pautada pelo jus sanguinis, de modo que um filho de imigrantes nunca seja reconhecido pelo país em que ele cresceu. Isso é bem visível em época de Copa do Mundo: as seleções do norte da África, região cheia de jihadistas, têm um monte de jogadores nascidos na Europa. Eles não se reconhecem como europeus e seu nacionalismo diz respeito ao país de seus pais ou avós. Enquanto isso, alguns negros da África subsaariana (que é menos islâmica) ganham às vésperas da Copa a cidadania do país em que passaram toda a vida, às vezes até desde o nascimento. No Brasil, não existe isso de você nascer como um cão vadio, sem o mínimo reconhecimento perante o Estado. Quem nasce no Brasil é brasileiro, mesmo que seja numa favela onde todo mundo troca tiro e o Estado não recolhe os corpos. Na Europa existem terras sem lei também, chamadas de banlieue (francês) ou no-go area (inglês), onde vidas baratas se amontoam e o Estado não põe o pé.
Mas, para além ou aquém de questões legais, fato é que é impensável alguém nascer no Brasil sem ser instado a falar a mesma língua dos habitantes. Se houver uma festa do trabalho, nem passará pela cabeça do brasileiro deixar de chamar o imigrante por ser imigrante. Ao contrário, este será objeto de curiosidade e sua companhia para conversa será disputada. Vem de um país em guerra? Todos se empolgarão com a ideia de ouvir em primeira mão as impressões daquele indivíduo diferente, porém familiar, sobre tudo aquilo que passa na TV num país tão exótico.
Quando não for tratado com curiosidade, o imigrante poderá passar por brasileiro na multidão, dado que não existe um tipo étnico brasileiro único e qualquer um – negro, branco, moreno, japa – pode passar por nativo. Se um marroquino islamista resolvesse se isolar no Brasil, sempre haveria quem olhasse para a sua cara no meio da rua e perguntasse, em português, se o ônibus tal já passou. Na Europa, não. Lá ele teria sempre o aspecto de imigrante, e seus filhos não-miscigenados também. Lá o branco não lhe dirigiria a palavra espontaneamente, mesmo que tivesse nascido, crescido e obtido a cidadania de um país europeu.
As mulheres fritas pelo multiculturalismo
Mas voltemos a Ayaan Hirsi Ali. Nos dias de hoje, a funcionária holandesa, bem como a maioria da opinião pública holandesa, acharia muito feio isso de dizer para uma somali que ela não precisa se entregar a um desconhecido porque seu pai surgiu de repente e assim determinou. Afinal, existem múltiplas culturas e moça Ayaan, em vez de ser olhada como uma alma individual e sagrada, seria tida por membro de uma cultura a ser respeitada. Respeita-se a cultura, não a pessoa. Sabem aqueles antropólogos que acham bom deixar o índio matar bebê gêmeo porque é uma questão cultural? Pois então: na Europa rica, o pós-modernismo está fazendo a mesma coisa com os filhos de imigrantes. Não com o índio perdido no meio da selva, que o brasileiro da cidade nem sabe que existe: é com a atendente do café deles, com a garçonete, com a diarista. Dalrymple vira e mexe escreve sobre o drama de suas pacientes nascidas e criadas na Inglaterra, formalmente cidadãs inglesas, a quem as famílias paquistanesas tratam como querem, porque a polícia não quer ser acusada de racista pelos burocratas progressistas.
É claro que, em suas bolhas, o europeu branco pode achar que tudo é um problema de gente morena que habita certos bairros ou no-go areas. Mas Ayaan Hirsi Ali tenta abordar, em seu novo livro, o problema que a combinação de imigração muçulmana e burocracia pós-moderna já causa para mulheres europeias de um modo geral.
Em primeiro lugar, é difícil tratar do assunto, porque a própria burocracia dificulta a análise de dados relativos à violência contra a mulher. Se um casal jovem bebe junto, vai para a cama e no dia seguinte a moça se arrepende, isso conta como estupro. Assim, zonas ricas sem imigração também vão ter um índice alto de violência sexual. Por outro lado, se uma mãe pobre está abrindo a porta de casa com um bebê no colo com medo de um homem predatório, isso não conta como violência sexual até que ela seja estuprada. E, quando ela for estuprada, terá todos os motivos para não meter a polícia no meio, caso more numa banlieue.
E se ela for branca, for estuprada por um árabe e procurar a polícia? Para encontrar registros de muçulmanos estuprando europeias, será preciso ler um a um os relatos das vítimas registrados pela polícia – porque a polícia, seguindo a ordem de burocratas pós-modernos, não vai registrar a nacionalidade ou a religião, para não fomentar o racismo. Nisso, espanta a arrogância dessa burocracia: como não percebem que, assim, fomentam uma grande incredulidade perante as instituições e que a falta de transparência não ajuda em nada a enxergar os imigrantes honestos? Só se eles, no fundo, acreditam mesmo na supremacia do homem branco, de modo que o estupro seja algo natural entre os povos ao sul do Mediterrâneo, sem distinção entre um islamista marroquino ou um brasileiro normal.
Conta ainda Hirsi Ali que existem áreas, nessas no-go zones, em que mulheres na rua são proibidas. Isso bate com relato de viagem de Dalrymple em Qualquer coisa serve: há banlieues nos arredores de Paris em que as mulheres simplesmente não põem o pé na rua. Entra o repórter para entrevistar uma, que garante estar satisfeita vivendo a sua própria cultura. O repórter não parece se perguntar se ela poderia responder outra coisa. Dalrymple tinha razão no seu ceticismo, pois Hirsi Ali conta que algumas feministas europeias quiseram entrar numa dessas áreas para mostrar a realidade das mulheres por lá. Obviamente, não puderam, e não havia garantias para a sua integridade física caso entrassem no maravilhoso “jardim” (como diria Kabengele Munanga) plantado por muçulmanos de terceiro mundo.
Hirsi Ali diz a um espantado Jordan Peterson que a mentalidade pós-moderna, sim, é supremacia branca. A humanidade inteira foi escravocrata em algum período e povos de todas as cores foram imperialistas, mas o pós-moderno acha que só o branco tem agência moral para assumir culpa. Por que isso? Árabes e negros são como menores de idade e só o branco deve ser legado a sério como ente moral?
Dar valor ao que temos
Para Hirsi Ali, o problema do Ocidente é ter parado de acreditar em si mesmo. A filosofia niilista dos pós-modernos é a expressão disso: a cultura ocidental passa a ser somente mais uma cultura entre várias culturas, sem nenhuma razão para ser preferível. A igualdade dos indivíduos perante a lei, a liberdade de expressão, o respeito à mulher e à dignidade da vida humana: tudo isso passa a ser tão valorizado quanto a gangue de jihadistas que espancam e estupram mulheres.
Nessas horas, cabe olhar para as nossas favelas e compará-las às banlieues e no-go areas da Europa rica. Em nosso país ocidental de formação cristã medieval, nunca será socialmente aceitável portar-se como estuprador perante uma mãe com um bebê abrindo a porta de casa. Nunca entrará nas cogitações do traficante mais vil a ideia de criar uma área onde as mulheres não possam pôr o pé na rua. E mesmo entre os traficantes mais vis o estupro é um crime abominável, a ser punido da maneira mais intimidadora.
Nosso país não aprendeu a olhar as mulheres como gado. Nem a ver gente estranha como membro de raça ou cultura, em vez de indivíduo portador de uma alma imortal. Isso, nenhum governo nos tira. A inflação pode chegar a um milhão por cento ao mês, o PSOL pode se eleger para o governo federal, o STF pode decidir abolir a letra A do alfabeto e os burocratas podem passar leis iguais às pós-modernas da Europa. Mas, para o bem e para o mal, o Estado brasileiro não é eficiente. E a formação cultural do nosso povo estará sempre lá, sólida, independente das bagatelas do noticiário. Com uma régua moral, e pecuniária ou política, digo que moro no melhor país do mundo.