Pelo menos dois acontecimentos marcam o noticiário da semana: a eleição argentina e o atentado na escola em Sapopemba, Zona Leste da cidade de São Paulo. Quanto ao primeiro assunto, concluí que a direita brasileira hoje é trotskista sem saber. Caso não saiba quem é Trótski, pode-se ler um resumo biográfico nesta Gazeta para tomar pé. No entanto, lá não consta o motivo pelo qual imensa parte da esquerda se considera trotskista: o internacionalismo. Após a morte de Lênin, Stálin assumiu a chefia da União Soviética e manteve, por um tempo, Trótski à frente do Exército Vermelho, tendo sido vitorioso contra o Eixo. Mas o chefe do Exército não tardaria a ser expurgado. As razões apontadas para isso costumam ser duas: antissemitismo (Trótski era um judeu étnico) e internacionalismo. Os mais velhos hão de se lembrar do hino: “De pé, ó vítimas da fome / De pé, famélicos da terra”. É a letra da Internacional Comunista.
Bom, os comunistas tinham um hino internacional porque achavam que as fronteiras nacionais acabariam após o sucesso da Revolução mundo afora. O comunismo foi, em sua raiz, um movimento internacionalista: “Proletários do mundo, uni-vos!”
Stálin muda isso. Com ele, a União Soviética abandona o internacionalismo e passa a adotar o “socialismo de um só país”, sendo assim, de certa forma, um fundador da esquerda nacionalista. Trótski, a seu turno, se aprofundou no internacionalismo e passou a pregar a “revolução permanente”. A esquerda da contracultura era, via de regra, trotskista.
Reparem que, quando alguém fala mal do “brasileiro”, ninguém reclama. “O brasileiro” fala em terceira pessoa do brasileiro, como se ele próprio não fosse brasileiro; "o brasileiro" é sempre o outro, um fuleiro. Agora experimentem falar mal da direita... Aí um monte de brasileiro que se considera de direita vai se sentir pessoalmente ofendido. A lealdade à “direita” é superior à lealdade à pátria.
E a “direita” é uma entidade internacional. Assim como o lacrador de esquerda tem um rol de candidatos e causas mundo afora – e não pensava duas vezes em prejudicar o Brasil para prejudicar Bolsonaro (queimando-o em embaixadas, por exemplo) –, o neodireitista brasileiro tem um rol de candidatos e causas direitistas mundo afora. Vide Milei, que conta com mais torcida entre brasileiros que muito time de futebol. Será que esse direitista prejudicaria o Brasil para prejudicar Lula? Eu não sei; mas já vimos que essa direita, após passar anos falando que a ONU era um antro de comunistas globalistas, não pensou duas vezes antes de ir à mesma ONU denunciar violações dos direitos humanos cometidas pelo STF. (As violações são reais – mas vocês pretendem mesmo delegar mais poder à ONU, em vez de tentar resolver os problemas internamente?)
Agora experimentem falar mal da direita... Aí um monte de brasileiro que se considera de direita vai se sentir pessoalmente ofendido
Assim, fica a pergunta para exame de consciência: entre ajudar um político filiado a um partido de esquerda a tocar um bom projeto social no seu município, e ajudar Milei a se eleger na Argentina, qual é a sua prioridade? Aliás, com base em que você tem tanta certeza de que Milei será bom para os argentinos? É só porque a turba das redes sociais e os influencers de direita disseram que sim? Eles acertam sempre? Será que você não age mais por impulso do que por ponderação?
O sentido original de ponderar é pesar; pondus (gen. ponderis) é "peso" em latim. Fazendo ponderações, devemos pesar e comparar os ônus e bônus. Um exemplo elementar: qual é a relevância do meu eventual endosso à candidatura de Milei? Minha chance de influenciar o voto de um eleitor argentino se aproxima de zero, e olhem que eu escrevo em jornal. Por outro lado, uma coisa de que eu certamente sou capaz é de mudar a percepção que os outros têm de mim. Agora imaginem que Milei se elege e faz um governo ruim (atenção: essa possibilidade existe). Nesse caso, eu não ajudei em nada e ainda atrapalhei a mim mesma, pois todos considerariam que sou uma doida que faz propaganda de qualquer porcaria que digam ser “de direita”. Lembram-se da esquerda dizendo “Como é bom ter um presidente!”, fazendo propaganda de Alberto Fernández no começo da pandemia? Pois é. Olhem o vexame aí. Fernández foi tão ruim, que a esquerda argentina nem tentou a sua reeleição.
Nisso o leitor mais sofisticado objetará: “Então você está propondo uma gestão de autoimagem?” Só de maneira circunstancial. Estou propondo, como eu disse, ponderação. Numa ponderação, devem-se levar em conta as consequências de um ato. No caso em tela – fazer campanha por um candidato qualquer em um país estrangeiro – as consequências imediatas são unicamente a possibilidade de se queimar.
A pessoa só não vai se queimar se viver dentro de bolha, claro. Nas bolhas, é preciso seguir uma espécie de coreografia e estar sempre disparando os mesmos slogans. Mas também nesse caso, não vejo como ficar em bolha repetindo slogan faça bem a alguém. Tanto na esquerda como na direita, é muita sujeição para pouco resultado. Um monte de direitista vende curso, mas poucos devem ter alunos que bastem para pagar as contas. Um monte de lacrador fica bajulando subcelebridade woke, mas poucos conseguem virar assessores remunerados.
Como nem só de pão vive um homem, podemos procurar outro tipo de explicação: uma parcela das pessoas que vivem numa bolha de slogan está à procura de emoções – do mesmo jeito que um torcedor de futebol. As boas torcidas de futebol servem para criar solidariedade entre estranhos e são pretexto para socialização, sem que haja nada de concreto em risco. É a solidariedade de guerra, mas sem guerra. Se o Flamengo perder, nenhuma desgraça se abaterá sobre os torcedores e suas famílias. É um sentimento bom, é parte da vida social (sobretudo masculina).
Um exemplo elementar: qual é a relevância do meu eventual endosso à candidatura de Milei?
No entanto, os paralelos entre torcida de futebol e torcida política trotskista param por aí. Ninguém rompe com família e amigos por causa de futebol; a torcida de futebol serve só para se somar às relações sociais prévias, sem comprometê-las. Já as torcidas políticas sincronizadas se levam a sério demais, e tratam o outro como inimigo. Esse “inimigo” permeia toda a sociedade, e leva o fanático a romper amizades antigas e a causar confusão na família.
Eis uma disposição difícil de entender: a dessas pessoas que brigam com tudo e todos por causa de política. As relações sólidas de longa data são substituídas por um punhado de estranhos na internet que oferecem algo que a gente de carne e osso não pode dar. O que seria isso? Ora, a mesma coisa que o “amor livre” promete: falta de compromisso. Tudo é diversão momentânea, sem cobranças, sem trabalho. Talvez as redes sociais tenham tido sobre as relações pessoais o mesmo impacto que a revolução sexual teve sobre o casamento: nada mais de amizades duradouras; agora, é cada um por si, em busca de prazer efêmero, indisciplinado.
E isso me leva ao outro assunto do noticiário, que é a aparente propagação, em terras brasileiras, do massacre em escolas, um mal bem comum lá nos EUA. Por questões legais, a mídia informa muito pouco sobre o dimenó; no entanto, no Telegram correram soltas as estrepolias virtuais do pequeno homicida. A pergunta que não quer calar é: onde estavam os pais? O rapaz era evidentemente perturbado e fazia um monte de besteira diante das câmeras. Sabemos que ele tinha pai e mãe em casa, porque a arma usada no crime era do pai.
As torcidas políticas sincronizadas se levam a sério demais, e tratam o outro como inimigo. Esse “inimigo” permeia toda a sociedade, e leva o fanático a romper amizades antigas e a causar confusão na família
Hoje muitos pais têm certeza de que os filhos menores têm direito a uma privacidade absoluta. Já vi um lar, mesmo, em que o adolescente passa o dia inteiro trancado no quarto jogando videogame com estranhos na internet, aparecendo somente para se alimentar. Os pais o defendem porque “tira notas boas e a escola é rigorosa”. Ou seja, os pais se demitiram por completo do papel de educar. Pais deveriam se sentir responsáveis pelo filho que entregam à sociedade, e isso, obviamente, inclui saber o que ele faz da vida online: quais redes sociais têm, que tipo de ambiente virtual frequentam. Se os pais deixarem o filho solto na rua no interior de São Paulo, dificilmente o filho irá encontrar aliciadores de qualquer canto do globo. No entanto, sentem-se muito seguros largando o filho solto na internet, com toda privacidade do mundo. Deveriam, em vez disso, dizer: “No dia em que você pagar as suas contas, você vai ter privacidade na internet.”
Então muita gente está assim: mora com cônjuge e filhos, mas convive com eles como se fossem estranhos num albergue estudantil. Para ter uma rápida sensação de conexão, procura relações superficiais com gente que não diz não, com a qual concorde tintim por tintim. Buscam a união não na sua família, no seu círculo de amigos e na sua cidade ou bairro. Onde buscam a união? Na "direita", isto é, na turba virtual e nos influencers.
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