Às vezes imagino como seria entrar numa máquina do tempo, sair em 2016, me encontrar e tentar explicar para mim mesma (ou para a Bruna de 2016) o Brasil de 2021.
– Ah, minha filha, você nem imagina. Já lhe disse que teve uma ópera bufa no ABC Paulista para prender Lula, depois uma outra ópera bufa de petistas gritando “Bom dia, presidente Lula!” na porta da cadeia-que-não-era-cadeia, que Jair Bolsonaro se elegeu, que no começo do governo foi barraco todo dia porque ninguém aguentava mais Carluxo no Twitter, mas depois acalmou. Até aí, tudo bem. O que eu não lhe contei ainda é que agora o povo diz que é Lula versus Bolsonaro, mas na verdade é STF contra Bolsonaro, sendo que Bolsonaro, agora, é a obsessão nacional, em vez de Lula. Antigamente, lá por 2008, não tinha aqueles jornalistas mala sem alça que só pensavam em Lula? Podiam até ter razão, mas que eram chatos, eram.
– Chatos como? – perguntaria o meu eu de 2016. – Sei que o tio Fulano é chato porque ligo pra saber da minha avó ele fala do Lula. Mas jornalista chato eu não sei mais o que é. Quem está insuportável é povo da Universidade, já não vejo mais diferença entre…
– Eu sei, eu sei. Você não vê mais diferença entre um professor respeitável e um moleque do DCE, todo mundo surtou. Eu me lembro bem de 2016. Pois lhe digo: o surto não vai passar, acostume-se. Aliás, não preciso lhe dizer isso, porque sei que você vai defender sua tese num pulo, pegar seu diploma de doutorado e correr da UFBa feito o diabo foge da cruz. Sobre os jornalistas, lhe digo agora que, em primeiro de abril de 2021, Lula Livre foi entrevistado por Reinaldo Azevedo. E foi entrevista chapa branca.
– Ué, mas foi Primeiro de Abril!
– Foi o que pensei quando vi a propaganda da entrevista. Só se foi pegadinha lá deles dois, mas não foi recebido assim pela imprensa nem pela militância. Os petistas agora adoram Reinaldo Azevedo. Mas, enfim, deixe-me continuar. Depois de primeiro de abril, teve o quê? Primeiro de Maio. Primeiro de Maio é quando as centrais sindicais fazem aquela micareta mal-humorada, cheia de dinossauro da CUT e cosplayer de Lula versão sapo barbudo, né? Pois bem: em Primeiro de Maio a CUT, agora cheia de bons-moços, organizou uma porção de live de Primeiro de Maio, inclusive uma live com Dilma. Enquanto isso, a direita tomava as ruas com um refrão “Eu autorizo”.
– Como é? Autoriza quem a quê?
– Autoriza o chefe do Executivo a dar um golpe ou contragolpe de Estado, pois entendem que a cúpula do Judiciário já dá golpe atrás de golpe. Também tem um rolo com a urna. Eles querem a tal da urna auditável, que imprime um papelzinho na hora do voto, e na dúvida dá pra contar papelzinho. O papelzinho fica na urna.
Caco Antibes agora é de esquerda
Vejam vocês que eu nem me aventurei a explicar para mim mesma que apareceria uma doença na China e que todo mundo estaria andando de máscara na rua (igual a japonês, só que com o escudo do Mengão), porque senão eu iria achar que era uma loroteira.
Mas está esboçado, acima, como eu explicaria as coisas ao meu eu de meia década atrás: há tipos que permaneceram os mesmos, muito embora mudem de coloração partidária. Não era incomum, logo quando Bolsonaro se elegeu, aparecer uma matéria ou outra apontando que lulistas desiludidos se tornaram bolsonaristas. O fetiche pela ideia de líder forte e carismático continuaria o mesmo, sendo substituído somente o homem a encarná-lo. Assim, uma vez que Lula tenha se revelado um ladrãozinho venal, capaz de vender o país por um sitiozinho e um triplex mequetrefe, o desbocado e espontâneo capitão reformado herda o apoio.
Herda o apoio e, ao mesmo tempo, a oposição. Porque se havia aqueles tipos – dentro e fora do jornalismo – para o qual Lula era o único assunto possível, não pode passar despercebido que o antibolsonarismo é integrado por muitos antipetistas. Polzonoff já escreveu aqui sobre o antagonista, um tipo humano que migrou do antipetismo para o antibolsonarismo. Ele é definido por uma visão de mundo algo conspiratória e arrogante.
Creio que haja um outro tipo humano que fez a mesma migração, e quero batizá-lo com o nome de "caco-antibes". Tal como a personagem de Miguel Falabella em "Sai de Baixo", ele é definido pelo esnobismo e pelo horror a pobre. A meu ver, os cacos-antibes ajudam a explicar a popularidade do PT antes da crise de 2014. Quem estava furioso com o esnobismo da imprensa em 2018 apertou 17 na urna e quem esteve furioso com o mesmo esnobismo até 2014 apertava 13.
Hoje, quando um progressista acusa outrem de odiar ver pobre andando de avião, abrimos um bocejo, porque é um baita clichê petista. Pouca gente se lembra da origem da frase, que é uma coluna de 2012 da Folha de S. Paulo: “As viagens, por exemplo: já se foi o tempo em que ir a Paris era só para alguns; hoje, ninguém quer ouvir o relato da subida do Nilo, do passeio de balão pelo deserto ou ver as fotos da viagem – e se for o vídeo, pior ainda – de quem foi às muralhas da China. Ir a Nova York ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas, por R$ 50 mensais, o porteiro do prédio também pode ir, então qual a graça?”.
Não conheço nenhum porteiro que tenha ido para Nova York ver os musicais da Broadway. Viagem internacional de porteiro é comprar muamba no Paraguai. Eu mesma acho que não conheço ninguém que tenha ido ao Egito. Devo ser mais pobre que porteiro de colunista da Folha.
Recuando mais no tempo, vamos nos lembrar da chuvarada de críticas recebidas pelo Bolsa Família. Há críticas pertinentes, como o uso político e a falta de saída. Mas havia também críticas furibundas de quem parecia achar que todo miserável merecia morrer de fome ou que o voto no PT fazia alguém merecer pena de morte por inanição.
Podemos, sem nenhuma extravagância, dizer que há um grupo de cacos-antibes no antibolsonarismo. O caco-antibes irá se gabar de ter se posicionado contra o PT, mas na verdade seu ímpeto era apenas o de ir contra o sentimento popular porque odeia pobre. Ele prefere ficar no Leblon apoiando políticos altamente chiques, como Boulos.
A imprensa
Gostaria de comentar as manifestações ocorridas no sábado, mas só me resta buscar os nada parciais materiais produzidos pelos próprios manifestantes. Pelas fotos que vi, as passeatas foram bem grandes pelo menos em São Paulo e Porto Alegre. Em Salvador, parece ter sido grandinha. O que espanta é eu ter encontrado com mais facilidade notícia de evento da CUT, que é feijão com arroz, do que notícia dessas passeatas que podem, no futuro, ser consideradas eventos históricos.
Qualquer comunista reconhece a importância histórica das Marchas da Família com Deus pela Liberdade; qualquer petista reconhece a importância histórica dos protestos de junho de 2013, bem como dos atos pró impeachment. De admirar é que o nosso jornalismo não nos permita dimensionar essas marchas descentralizadas. Vi que aconteceu em Serrinha, uma cidade de 80 mil habitantes ao norte de Feira de Santana, famosa pela vaquejada. Certamente os manifestantes de lá têm um perfil bastante diferente dos paulistanos e portalegrenses, mas ninguém vai tentar descobrir o que aconteceu.
Ao que parece, a imprensa está cheia de cacos-antibes que se creem capazes de tutelar a plebe. Basta não noticiar, que o povo deixa para lá. Assim como bastava incitar o povo a votar no PSDB contra o PT, que uma hora ele iria acabar votando.
O jornalista que se crê capaz de tutelar as massas é tão suscetível ao aprendizado quanto o comunista do século XXI. Se jornalista iluminado tivesse metade do poder que acha que tem, não tinha um evangélico no Brasil e o país seria governado pelos tucanos desde a descoberta do Mensalão, no mínimo. Mas são iguais aos comunistas. Não aprendem.
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