Todas as culturas têm de lidar com o fato de que bebês requerem estabilidade. Por isso, todas as culturas têm alguma forma de casamento. Seja com ou sem divórcio, com ou sem monogamia, com casas de sólidos fundamentos ou em tendas errantes, homens e mulheres se juntam para manter um lar estável no qual crianças sejam criadas. Na maior parte da história da humanidade, cuidar do lar é atribuição feminina. Seja uma oca ou sobrado, as crianças que ali vivem precisam de comida e de cuidados, e a mulher era a encarregada disso.
Munido de lápis e caderninho, um antropólogo pode ir a qualquer cultura tradicional descrever essa pequena associação que convém ser chamada de lar. Mesmo nas sociedades mais guerreiras e masculinas, na qual os homens cultivem o interesse erótico uns pelos outros e releguem ao segundo plano o sexo frágil, fato é que os bebês terão de vir de algum lugar. Por trás do exército de espartanos e das hostes de hunos, sempre haverá esposas espartanas e hunas, cujos filhos sabem o nome do pai.
Assim, em qualquer cultura tradicional, às vezes conhecedora e até promotora do erotismo entre homens, faria cair o queixo a ideia de que homens se casassem com homens, e mulheres se casassem com mulheres. A homossexualidade sempre existiu e nem sempre foi reprimida. Mas não creio que jamais tenha ocorrido aos nossos antepassados a ideia de casamento homossexual. Agora, a ideia não só é popular, como tem jeito de ser o próximo objeto de disputa da guerra cultural nos EUA. Após a queda da liberação federal do aborto (com a reversão de Roe v. Wade), a liberação federal do “casamento igualitário” (ou seja, casamento gay) foi um dos objetos da eleição de meio mandato.
Terra estranha
Os religiosos costumam apontar a militância gay como a causa da mudança nos costumes. No Brasil em particular, as novelas da Globo ocupavam o centro do debate, com o beijo gay sendo esperado por uns e temido por outros. Não creio que essa explicação esteja correta. Creio que tal mudança de mentalidade só foi possível após uma outra mudança, muito maior e que levantou muito menos objeções: a ideia do que é o próprio casamento.
Imaginemos um antropólogo sério, que veio examinar não uma sociedade tradicional, não uma tribo, mas sim a nossa sociedade. Nosso antropólogo veio de Marte, sabe como são as demais sociedades humanas (os marcianos vivem milênios e ele mesmo já etnografou espartanos e hunos), e está curioso para ver como vivem os ocidentais no século XXI.
Em seu bloquinho, anota: pela primeira vez, os humanos estão fazendo filhos de maneira solta, sem casamento nem lar. Para começo de conversa, ele observa que os humanos vivem em casas empilhadas umas em cima das outras, formando torres imensas. Quanto mais novas essas torres, menores e com menos quartos. Dentro delas, moram muitos humanos sozinhos, ou fêmeas com um rebento. Mesmo sem guerra, notaria que há muitas casas sem homem, só com mulher e criança. Nas ruas, muitos homens vagam sem propósito, entorpecidos. Os humanos chamam esse tipo de cracudo, noia, saci. Mas há homens sozinhos em casas minúsculas também. Dentro delas é possível encontrar coleções de bonequinhos sem que haja crianças na casa. Os bonequinhos são do homem adulto, que aliás tem um aparelho de videogame também. Em vez de trabalhar para dar as coisas para a mulher e os filhos, como o habitual, esse homem trabalha para comprar os brinquedos do filho que ele não teve e paga para fazer sexo com a mulher que ele não tem. Ou nem faz sexo; apenas compra fotos de uma “modelo” com a qual ele interage pela internet e se masturba.
O que é casamento hoje?
Nosso antropólogo marciano perguntaria, então, o que aconteceu com o casamento, e de onde vêm os bebês agora. Uma informação não o chocaria de modo algum: os bebês nascem cada vez menos. A taxa de natalidade caiu por todo o Ocidente. No Brasil, mesmo, está abaixo da substituição há anos. (A taxa de substituição é 2,1 filhos por mulher. Dois para substituir pai e mãe, 0,1 por causa dos natimortos.)
De onde vêm, portanto, os bebês existentes? Parte vem do tradicional casamento. Um quinhão de homens e mulheres continuam se juntando e fazendo filhos em lares estáveis. Outra parte, porém, é de dar um nó na cabeça. O antropólogo teria de se inteirar do Direito para entender que muitas leis e muitíssimas jurisprudências vêm agindo no sentido de transformar a procriação numa guerra de todos contra todos. Em vez de a mulher temer engravidar de um homem com o qual ela não tem uma boa relação, ela agora tem motivos financeiros e emocionais para, não tendo uma boa relação com um homem, engravidar dele mesmo assim: o incentivo econômico é um terço do salário dele; o emocional é ele não poder nunca mais se desembaraçar dela. Para entender isso, o marciano precisaria ainda se inteirar de inovações de ordem biológica. Gravidez não é mais a consequência natural do sexo, porque as mulheres passaram a se esterilizar de modo voluntário e provisório para trabalhar fora, igual aos homens.
Outra coisa de ordem jurídica e conceitual que ele precisaria entender: nem sempre o casamento de fato é o casamento jurídico. Casar no papel costuma ser mais caro que virar “união estável”, que às vezes é até compulsório para uma das partes. Ora, na maior parte da história da humanidade, um casal faz uma cerimônia ou um ritual que marca a mudança para o status de casados. No Ocidente, esse ato foi um sacramento religioso. Depois separaram o jurídico do religioso. Por fim, desmembraram o jurídico de modo que aquilo que antes caracterizava inequivocamente um casamento – um casal casar numa igreja, morar junto e procriar – passou a ser somente “união estável”. Casar no civil passou a ser uma coisa cara e excepcional.
Além disso, com o caos amoroso surgido neste mundo que desvincula sexo de procriação, o Estado avocou para si o papel de determinar quem está em “união estável” (ou seja, casado na prática), abrindo mão do consentimento de ambas as partes que sempre marcou a tradição ocidental. Ao mesmo tempo, também avocou para si a tarefa de chamar os pais a reconhecerem os filhos.
Ao fim e ao cabo, aquilo que chamamos de “casamento” hoje é uma coisa excepcional e grande que algumas pessoas resolvem fazer quando estão apaixonadas. Elas poderiam coabitar sem casar e poderiam ter filhos sem casar. Uma união estável não é um casamento, e um casamento tampouco precisa ser estável: pode durar tanto quanto a paixão. Pode e, segundo a nova moral, deve. Afinal, continuar casado sem paixão implicaria reprimir os próprios desejos, coisa gravíssima segundo psicanalistas de demais autoridades novas.
Paixão, novo fundamento do casamento
A paixão, não a constituição de um lar estável, é o novo fundamento do casamento. Alguns homens só se apaixonam por outros homens; algumas mulheres só se apaixonam por outras mulheres. Se o casamento é o sacramento de uma paixão, resulta que alguns homens e algumas mulheres são privados disso. Nesse ambiente de uniformização e de individualismo que caracteriza a modernidade, trata-se de uma discriminação intolerável.
Não são as novelas da Globo as causadoras da mudança de mentalidade, porque essa mudança começou antes do advento da TV. Se for para apontar um produto cultural, creio que mais valem os filmes de princesa da Disney e a Barbie.
Os brinquedos das meninas incluíam panelinhas e bonecas, que replicam o universo da dona de casa. A menina brinca de se tornar uma mulher igual à mãe, que é o seu grande modelo. Em 1959, surge a Barbie, que nada tem a ver com as bonecas de pano tradicionais. Representa uma mulher adulta de cinturinha e peitões que, em vez de lar, tem roupas bonitas. A Barbie é bem diferente da mãe da menina e se assemelha muito mais às mulheres cujas vidas são propagandeadas pela imprensa. Barbie, em vez de um marido, tem Ken, um namorado bonitão que não parece importante em sua vida. Nas brincadeiras femininas, a imagem da mãe de família é artificialmente trocada pela de uma proto-empoderada, uma socialite que vive de futilidades. Ao mesmo tempo, os filmes de princesa deslocam a imaginação das meninas para a paixão. O filme acaba antes do casamento, e tudo o que interessa na vida de uma mulher é anterior a ele. O que interessa é beleza e paixão.
Creio que esse deslocamento também tenha sido artificial, haja vista que a paixão não faz parte dos sentimentos aos quais crianças pré-púberes estejam acostumadas. A história da Branca de Neve era, antigamente, uma história feita para alertar as crianças contra monstros – assim como os Três Porquinhos e muitas outras. Nas mãos da Disney, em 1937, é que se tornou uma propaganda do amor romântico para meninas pré-púberes. Com esses passos dados em 37 e 59, muito antes das novelas da Globo, é que se preparou o cenário para a revolução cultural de 68.
Consequências indesejadas?
A pressão pelo casamento gay foi posterior à revolução cultural. O evento marcante para o movimento gay são as revoltas de Stonewall, de 69, e, como Douglas Murray lembra (vide o seu “A loucura das massas”), não tinha o casamento gay entre as pautas. De fato, seria muito estranho que casamento fosse pauta de algo naqueles anos em que se defendia o “amor livre”. No entanto, alguns países, como a Alemanha, têm testes que condicionam a aceitação do casamento gay à cessão da cidadania. A crença no casamento gay tornou-se profunda e obrigatória em pouco tempo. Mas não sem a pressão pela uniformização dos comportamentos homossexual e heterossexual.
Douglas Murray, com seu lugar de fala, aponta que a união homossexual tende a ser menos estável: “Se não tiverem filhos para uni-los, faz sentido esperar que dois homens e duas mulheres que se conheceram antes dos 30 se casem e transem exclusivamente um com o outro pelas próximas seis décadas ou mais?”. A resposta subentendida por Murray é “não”, e procede comentando que relação aberta é um tabu entre defensores do casamento gay nos países de língua inglesa. Todos os defensores falam de gays como se fossem elfos fofinhos que fazem cupcakes e não fazem sexo. Murray procede também tratando de gays que simulam o casamento tradicional (às vezes penando para esconder da mídia as puladas de cerca consensuais) e pagam barrigas de aluguel para ter filho. Mas não precisamos acompanhá-lo nisso; basta apontar que, dada a igualdade, o que tende a acontecer é os relacionamentos abertos serem normalizados para heterossexuais também. Ninguém mais espera que homens e mulheres casem antes dos 30 e fiquem juntos por décadas. Simples assim.
No fim, como a igualdade é um dogma, fica até difícil estudar as diferenças das relações homo e heterossexuais. Qual será a dimensão estatística dos gays que querem ter um simulacro de casamento tradicional com os seus namorados, com direito a crianças correndo pela casa? Se os cientistas sociais descobrissem que só uma parcela muito diminuta dos gays tem vontade de ter uma criança em casa, jamais teriam paz para investigar esse público em maior detalhe.
Quanto à difusão de relacionamentos abertos entre os heterossexuais, não parece haver muitos estudos, mas o pouco que há mostra ser uma fabricação da mídia, sem muito amparo na realidade. O que reina mesmo é uma confusão sentimental que dá dinheiro para advogados e psicólogos.