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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Drogas

Cientistas, cracudos e hipsters em busca do soma

Biblioteca do Museu Freud, em Viena, na Austria. (Foto: EFE/ Roland Schlager)

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Evangélicos e antropólogos maconheiros vivem às turras no que concerne às drogas. Dizem os antropólogos maconheiros que as drogas são parte integrante de culturas tradicionais; os evangélicos dizem que as drogas são a perdição de um sem número de famílias. Ambos têm razão. Assim, competiria aos cientistas sociais competentes abandonar o proselitismo em defesa de suas substâncias prediletas e se perguntar por que drogas têm um papel importante em sociedades tradicionais e um papel antissocial na nossa.

O cidadão comum, pouco interessado em investigações científicas, fica mais preocupado com a moralidade da questão. Assim, outra coisa que os antropólogos maconheiros costumam dizer, cheios de razão, é que o álcool é uma droga de grande potencial destrutivo para as famílias e nem por isso se fala em proibi-la. Se o marido espanca a mulher depois de beber, errado é o marido, não o álcool ou os que bebem socialmente. É claro que há uma dimensão moral nos crimes cometidos sob o efeito de droga. Dizer que a culpa é “da droga” é um jeito de as famílias dizerem que seus filhos não têm nem um tiquinho de responsabilidade sobre os próprios atos, e que quando houver um policial em cada esquina de olho nos filhos, os lares serão felizes. Pais e filhos são absolvidos; a culpa é da droga ou do Estado.

Proibição de drogas ritualísticas no mundo moderno

O próprio álcool é uma bebida ritualística de uma religião tradicional, que acontece de ser a religião formadora do Ocidente. A Lei Seca constituiu uma ameaça à liberdade de culto dos católicos, já que é preciso haver vinho para haver comunhão. A Lei Seca saiu, como de costume, do progressismo. O primeiro presidente progressista dos EUA, Woodrow Wilson, assinou-a em 1920. Considerando-se que a pressão partiu primeiro de protestantes pietistas (partindo justamente da degradação familiar), e que os imigrantes considerados white trash usualmente vinham de países católicos (Irlanda e Itália), é possível que tenha sido mesmo uma medida anticatólica e eugenista ao mesmo tempo. Outra comunidade afetada era a alemã. A maioria dos alemães se divide em católicos e luteranos, que também fazem uso litúrgico do vinho. Durante d I Guerra Mundial, os EUA promoveram uma forte propaganda antigermânica, focada inclusive nos imigrantes, tidos como agentes do Kaiser (veja-se o livro de Jonah Goldberg a respeito da tirania progressista).

De todo modo, depois de cerca de dois anos com a liberdade de culto ameaçada, a Igreja conseguiu permissão para fazer o vinho litúrgico, e assim tornou-se visada pela criminalidade e pela corrupção.

Durante a era da proibição, os EUA fizeram pressão para a proibição de várias drogas mundo afora. No Brasil, nunca emplacou a proibição do álcool. Por aqui, tínhamos a maconha há bastante tempo, trazida de Angola provavelmente no século XVII pelos negros que faziam uso ritualístico dela, e a coca, que só nasce em três países do mundo: Bolívia, Peru e Colômbia. Para chegar até nós, precisou dar um balão na Europa.

A coca dos incas e a de Freud

Segundo nos conta do Dr. Freud no seu "Über Coca" (1884), os incas acreditavam que a coca fora dada aos homens pelo filho do Sol. De posse do presente divino, os mortais deixariam de sentir fome e se sentiriam fortes. A fonte de Freud é o historiador Garcilaso de la Vega, mestiço descendente da aristocracia inca. Ele relata ainda que a coca era de elite antigamente, mas, quando os espanhóis chegaram, a droga já estava ao alcance de todos. Os espanhóis quiseram proibi-la por causa do seu papel em ritos pagãos. Mudaram de ideia ao ver que os cativos trabalhavam mais sob o efeito da planta. O uso litúrgico fazia com que os incas pudessem jejuar por longos períodos, e teria ademais serventia profana ao salvar a vida dos usuários numa grande carestia ocorrida no fim do século XVIII. Freud nota que Garcilaso defendia a coca. O que poderia dar errado se seu uso fosse disseminado na Europa, não é mesmo? “É verdade que Poeppig pintou uma imagem terrível da decadência física e intelectual que é supostamente a consequência inevitável do uso habitual da coca. Mas todos os outros observadores afirmam que o uso moderado da coca é mais propenso a promover a saúde do que prejudicá-la, e que os coqueros vivem até idade avançada”, pondera Freud. Ele próprio, porém, viria a se tornar um cocainômano e batalhar contra o vício.

É possível que um pesquisador sincero, de uma cultura não familiarizada com o álcool, fizesse uma pesquisa com velhinhos do Mediterrâneo que têm o hábito de tomar vinho e fazem uso ritual do mesmo e extrapolasse as conclusões, de modo a virar alcoólatra. O que aconteceu com Freud?

No famoso ensaio "Über Coca", Freud defende apenas os efeitos terapêuticos de ordem física da planta, e promete outro artigo, em que fala dos principais efeitos terapêuticos: os sobre a alma. Para Freud, a cocaína era um estimulante que deixava algumas pessoas felizes e falantes sem causar depressão. No artigo de 1825, sobre os efeitos gerais, ele defende que cocaína seja usada em pacientes psiquiátricos para tratar depressão, melancolia, hipocondria, histeria, entre outros. Freud visava resolver justamente o problema do vício, pois os psiquiatras tinham o costume de prescrever morfina e os pacientes ficavam viciados. Além disso, o remédio mostrava-se eficaz para curar o alcoolismo. Então a cocaína entrou para valer na sociedade europeia moderna com a psiquiatria. E como o próprio Freud ficava falante e ligado, usou ele próprio a droga para sonhar e escrever. Acabou se viciando.

Uso instrumental e uso irrefletido

Os velhinhos do Mediterrâneo que tomam vinho não tomam vinho por causa das descobertas em papers. Tomam porque gostam, gostam porque aprenderam com os pais, e sabem que pode causar vício, pois têm beberrões à vista. Têm vidas equilibradas e é possível que o vinho lhes tenha feito bem à saúde. Mas é mais razoável atribuir sua longevidade a um conjunto de fatores (que vai desde a famosa dieta a aspectos psicossociais) do que ao vinho. Agora imaginemos que o cientista interessado estritamente nos benefícios condensasse o álcool num destilado e o tomasse como se fosse um remédio para alcançar um dado bem.

De fato, olhando para a experiência comum, vemos que bons bebedores podem até beber rotineiramente, mas fazem isto sem ter em vista o alcance de um dado objetivo. Bebem por questão de paladar, ou para estreitar os laços com os amigos. Ninguém bebe para alcançar um estado de consciência superior, nem para se tornar um trabalhador mais eficaz, nem para alcançar a longevidade. Se o fizesse, seria de esperar que o álcool pudesse ser substituído por gotas ou comprimidos. Por outro lado, conhecemos bem o tipo que bebe para alcançar a débil leveza de espírito causada pelo álcool: o alcoólatra. Para ficar sossegado, tem que estar bêbado.

Não é nenhuma extravagância dizermos que o uso instrumental e consciente de uma droga para conseguir um determinado efeito que o usuário julga necessário à vida é o diferencial entre uma droga viciante e uma droga banal. Isto vale tanto para o caminhoneiro que usa derivado de coca para dirigir sem dormir por muitas horas, quanto para a modelo que precisa emagrecer ou o deprimido que precisa sentir algum conforto espiritual.

E, bom, se eu disser que remédios psiquiátricos usados para tratar depressão e ansiedade causam dependência, também não será nenhuma extravagância da minha parte. Tampouco será uma extravagância da minha parte dizer que profissionais de saúde saem receitando remédio antes de pensar em “soluções não-farmacológicas” – ou seja, toda solução que exclua o uso de remédios, como se a depressão e ansiedade só tivessem causas físicas (já contei aqui que eu poderia viver chapada se entrasse em muito consultório – e muita gente entra em consultório querendo diagnóstico chique e drogas). Trocando em miúdos, se um doente mental resolver que tal droga é a solução dos seus problemas, ela vai virar o maior dos seus problemas.

A ayahuasca

Uma plantinha que passou bastante tempo despercebida tanto pelo furor proibicionista quanto pelos doentes mentais foi a ayahuasca. É plantinha de índio lá no meio da Amazônia, dá barato e não serve para botar todo mundo para trabalhar, nem para tirar fome. Atraiu, portanto, menos atenção de país rico.

Escudando-se no uso ritualístico, gente urbana criou igrejas com o fito de consumir a droga (aí bem se vê que não pode dar certo, já que drogas ritualísticas tradicionais nunca são a finalidade do ritual. A missa não é um pretexto para beber vinho, e amigos reunidos tomando vinho não são uma igreja). A planta acabou nacionalmente conhecida quando um adepto de uma dessas igreja, chapado de ayahuasca, matou o cartunista Glauco. Será que o doido homicida era o único viciado na droga? Será, será?? Isso foi em 2010.

Em 1993, porém, o cronista-filósofo Olavo de Carvalho registrava, n’O imbecil coletivo, que um intelectual influente anunciava a boa nova de que o Santo Daime (outro nome da ayahuasca) era uma doutrina importante para a humanidade. Cito-o: “Um Sr. Armando Daudt de Oliveira, cientista político detentor de uma razoável quantidade de diplomas, inclusive alguns de prestigiosas universidades estrangeiras, compareceu algum tempo atrás na página editorial do Jornal do Brasil para dar-nos ciência de uma ‘importante contribuição para a humanidade do século XXI’: o Santo Daime. Trata-se de um invento, ou descoberta, capaz de levar os sucessores da presente geração ‘ao conhecimento das causas mais profundas de todas as coisas’, o que, convenhamos, não é pouca porcaria em matéria de inteligência”. O texto de Olavo, intitulado “Ideias vegetais”, é todo tirando sarro do fato de que o Santo Daime é ao mesmo tempo chá e doutrina, sendo que nenhum resumo dela é apresentado.

Este mês a Folha nos deu mais uma notícia da ayahuasca. Uma comunidade de urbanoides recém-ripongas resolveu largar suas carreiras e levar uma vida humilde à base de ayahuasca no litoral da Bahia. Parece uma ótima ideia… Se você for formado em comunicação. Ou em antropologia ou em psicologia, dois cursos que são para-raios de maluco. Leiamos as linhas tecladas pelo colunista da Folha: “Mais de um terço desses sofredores [i. e., que têm depressão] não encontra lenitivo nos antidepressivos convencionais, os inibidores seletivos de recaptação de serotonina, como escitalopram. Para alguns, pelo menos, uma molécula como a dimetiltriptamina (DMT) — secretada no próprio cérebro e presente na ayahuasca — pode abrir caminho para novas conexões cerebrais e outras maneiras de encarar seus problemas, em particular se a droga for consumida em um contexto acolhedor. Essa era a proposta de Purna [a autoridade místico-científica] para a vivência do último dia do Equinox, domingo (20). Vestido de branco, com um sinal pintado na testa, ele monta na Oca da Casa del Mar um altar em que se reúnem cristais, frascos com água de cheiro, cartas de tarô, pedras, plumas, incenso e sinos orientais”.

Quod erat demonstrandum.

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