O presidente da Repúblical, Luiz Inácio Lula da Silva, discursa para apoiadores no Festival do Futuro: dá para notar que a vida dos humoristas será muito difícil doravante. Como inventar piadas num cenário onde não há senso de ridículo?| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
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Lula subiu a rampa. Pelo que vi sobre a cerimônia de posse, dá para notar que a vida dos humoristas será muito difícil doravante. Primeiro, porque são perseguidos mesmo, como o mostra o caso do humorista Bismarck do canal Hipócritas. Segundo, porque é impossível inventar piadas num cenário onde não há senso de ridículo. Me digam: como fazer piada com uma mãe de pet dona de uma cadelinha chamada Resistência? E se acrescentarmos que os tradicionais vinte e um tiros de canhão foram suspensos porque a mãe de pet não quer que o barulho incomode os cães e os autistas, possivelmente nesta ordem? Só consegui pensar num gracejo: dizer que tenho que aproveitar enquanto posso falar dona de cachorro, em vez de tutora, que é o nome politicamente correto. Porque vai que o STF equipara o especismo ao racismo e diz que desumanizar os animais é errado e criminoso… Uma hora hão de chegar, via canetada, os direitos humanos caninos.

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Só por esse detalhe da posse se vê o estado de loucura dos apoiadores. Aprendemos com a mãe de pet que barulho é errado porque incomoda os pets e os autistas (nesta ordem). Mas se inferíssemos que é preciso zelar pelos pets e autistas (nesta ordem, e sem humanos não-autistas) das favelas que não conseguem ter paz porque os traficantes organizam baile funk na rua para vender drogas, aí ouviríamos que isso é racismo. É acabar com o lazer da juventude negra. Por outro lado, presumir que os negros todos (e só os negros) sejam traficantes e drogados pobres não é racismo. E o que fazer com os pets e os autistas (nesta ordem) das favelas? Hora de esquecer a pergunta.

Loucura rondante

A loucura não está somente do lado lulista, claro. Segundo relata Alexandre Garcia, até mesmo durante a posse havia influenciadores dizendo que tudo não passava de uma encenação, e que Heleno já estava arranjando as coisas enquanto Bolsonaro voltava dos EUA. De fato, essa fé cega não merece ser chamada de outra coisa que não loucura.

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No entanto, não vou seguir a moda vigente de posar de imparcial e dizer que ambos os lados se equivalem. Há essa loucura febril, alucinada, que é a apresentada hoje pelos que negam a posse durante a posse. Esse tipo de loucura só pode existir em ar viciado, pois uma lufada de ar fresco acompanhada pelos raios de sol bastam para fazer a realidade se impor. É impossível alguém politizado viver ignorando o chefe oficial da nação. Só nos primórdios da república era possível algo como Canudos, e mesmo Canudos só pôde ocorrer num grotão remoto que só tinha visto um agente do governo quando Theodoro Sampaio passou por lá para cartografar. Como as pessoas conseguiram esse grau de alienação estando na capital federal? A resposta é fácil: as pessoas usam a internet de maneira diversa, e essas escolheram usá-la para confirmar suas crenças. Mas, repito, essa crença não poderá ser duradoura, porque Lula tem a caneta na mão e ela se fará sentir.

Já a loucura da beautiful people adoradora de Lula é de uma natureza diferente. Resiste à luz do sol e ao ar livre, pois é como um par de óculos ou viseiras que permite enxergar somente partes da realidade. É uma disposição a ouvir qualquer coisa e dizer “sim, senhor”. Digam se este não é um cenário provável no qual os envolvidos são meio loucos:

– Gen-tê, parem de soltar fogos! Resistência fica assustada! – diz uma jovem dama de tatuagens do sagrado feminino. Resistência se tornara um nome comum de lulus-da-Pomerânia.

Ouvindo o apelo, o barbudinho comedor de quinoa, de coque samurai e óculos de aros grossos entra em cena. É a ocasião de usar da sua masculinidade para proteger uma donzela em apuros. Diz:

– Tem que botar na cadeia esses fascistas que não se importam com o sofrimento animal! – e chama a polícia para fazer queixa do zelador cearense que tinha soltado fogos juninos. Sente-se muito bem consigo mesmo. Pensa em voz alta: – Agora esse homem branco cis hétero vai aprender a respeitar as mulheres e os animais!

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Ele tem êxito com a dama; afinal, ela tem muito apreço pelos animais e pela classe trabalhadora (nesta ordem). Ele próprio tem muito apreço pelas mulheres, mas ainda precisa se desconstruir. Sabe muito bem (pois não é um negacionista da Ciência) que existem dois tipos de mulheres: as com vagina e as com pênis. Todo dia pede a Buda que faça gostar de ambos os tipos do mesmo jeito – mas não hoje.

Razoabilidade das crenças

Só num ambiente mais calmo teremos como saber direito o que aconteceu entre o resultado do segundo turno e a posse. Pessoalmente, especulo que havia uma movimentação nas Forças Armadas ainda em novembro, quando os comandantes saíram publicando notas – uma coisa muito atípica. Suponho ainda que essa movimentação foi minguando (talvez graças a alguma sondagem internacional) até consistir basicamente em reformados, que só desistiram de dar um golpe no dia 29 deste mês, após constatarem que era minoritários demais. Só após o derradeiro fracasso, dia 30, Bolsonaro faz o pronunciamento. Nesse cenário, ele não seria um frívolo que estava se lixando para os apoiadores; seria um homem perdido, engolido pelas circunstâncias, que quis se agarrar ao último fiapo de esperança. Esse último fiapo não prescindia dos apoiadores acampados nas portas dos quartéis.

O líder do país deveria ter conduzido melhor a situação após as eleições, e, uma vez que ocupou (ocupa?) uma posição de liderança, deve receber muitas críticas mesmo se fizer o melhor trabalho do mundo. Ossos do ofício. O que me incomoda, porém, é a condenação de todo e qualquer cidadão que teve fé na ideia de que o nosso país não cairia nas mãos do PT outra vez. Motivos não faltaram para deixar o eleitor com uma pulga atrás da orelha; ademais, setores econômicos importantes abominam o PT. Logo, não seria nenhum absurdo supor que a posse de Lula fosse impedida com base na não aceitação dos resultados eleitorais, com ou sem provas contundentes, manu militari. Entre ter fé nisto e ter fé numa posse fake, há uma boa distância. Uma é razoável; outra, não. E só com a passagem do tempo se pôde dizer que Lula subiria mesmo a rampa pela terceira vez.

A moral cínica do desapego

Uma vez que Lula tenha subido a rampa, vêm os que diziam que os militares eram folgados (se esquecendo do relatório da Defesa) e bom mesmo era Olavo, porque Olavo os chamava de folgados. Pelo jeito, nenhum país precisa ter fé em suas Forças Armadas (coisa que inclusive levaria os jovens a procurá-las), pois a liberdade e a soberania dos brasileiros serão alcançadas por meio de tuítes disruptivos contra a esquerda. Estar certo assim é muito fácil.

A nossa época valoriza demais o cinismo. É feio ter fé em alguma coisa; o bom mesmo é ser um desapegado. “Desapego” aparece na publicidade como uma virtude a ser cultivada. E desde o plano mais basilar que são as relações pessoais até o âmbito nacional, é a mesma coisa. É bonito, por exemplo, as mulheres dizerem às amigas que deram um fora no marido/namorado/ficante etc. O término será interpretado como empoderamento e livramento. Se você pegar uma mulher jovem se gabando de ter superado adversidades e ficado com o sujeito, há chances de ser do nicho evangélico. Nesse caso, há chances de ter uma tremenda dose de narcisismo, já que a ideia de se sentir capaz de curar um cheirador inveterado é um indício de vaidade.

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Em seguida, transmite-se o mesmo “desapego” para o país. É feio ser um patriota; bom mesmo é tirar passaporte estrangeiro e dizer que a saída é o aeroporto. Nossos antepassados achavam feio ser um errante – daí xingarem os judeus assim. Hoje, ser um errante é uma virtude. É desapego. Agora, o que garante que no aeroporto de chegada haverá um país decente? É possível existir um país decente sem que os seus cidadãos tenham fé nele?

Fé de longo prazo

Em se tratando de preservar a vida, é mais racional desertar do que lutar. No entanto, os países só existem porque as pessoas “pecaram” por falta de desapego e tiveram paixão bastante para lutar. Isso faz do cínico um inquilino eterno, pois ele não constrói nada. Ele mora de favor no país em que os outros depositaram a sua fé.

Não há lugar para o cínico se sentir mais inquilino do que a América Ibérica. As Américas não foram descobertas e criadas por ibéricos obrigados a virem para cá. Entre as caravelas terem êxito, as vilas do novo mundo florescerem e os metais preciosos aparecerem, houve caravelas naufragadas, mapas errados, aldeias derrotadas por canibais etc. Houve mil ocasiões para os cínicos se gabarem de seu desapego e de não terem fé, pois sabiam que aquilo não daria em nada. E no entanto, aqui estamos nós.

Agora, é claro que essa fé toda sabia calcular e cartografar muito bem, ao contrário dos malucos que acreditam em posse fake.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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