Ouça este conteúdo
Desde o século XIX, quando falamos em “democracia”, não nos referimos mais àquele sistema detestado por Platão e Aristóteles, mas sim à democracia liberal consagrada pelos EUA como a democracia moderna. No século XX, os comunistas conseguiram causar alguma confusão semântica: ao usarem a palavra “democracia”, queriam acima de tudo dizer que o governo do Partido Comunista tinha apoio popular. Não designavam uma forma de governo precisa; era mais um artifício retórico que teoria política.
Essa opção pela retórica tinha um motivo teórico. Ao contrário de Locke, de Montesquieu e dos Pais Fundadores dos EUA, Karl Marx não prescreveu um modelo de governo; em vez disso, ele fez uma profecia histórica, a qual incluía uma provisória ditadura do proletariado antes de o paraíso chegar à terra, quando o Estado haveria fenecido (pois é, não são só os anarcocapitalistas que não veem o Estado como uma coisa boa em si mesma). Assim, uma vez que os comunistas acabaram implementando ditaduras partidárias, o que restou foi dizer que o seu partido era o legítimo representante do povo. Ditadura e democracia, no léxico comunista do século XX, não são coisas mutuamente excludentes.
Era uma retórica oposta à do "Mundo Livre". Desde a Guerra Fria, no jargão neoliberal, democracia e ditadura são dois termos suficientes para uma classificação e um juízo de todos os regimes existentes no mundo e na História. Dizer que um governo não é uma bela democracia implica acusá-lo de ser uma abominável ditadura. Quem deu lastro filosófico a isso foi Karl Popper, com A sociedade aberta e seus inimigos (1945), onde estabelece uma classificação binária das sociedades em abertas e fechadas. Não foi difícil equivaler abertura (boa) a democracia e fechamento (mau) a ditadura.
Ainda assim, também as democracias liberais usam de artifícios retóricos. Afinal, a classificação binária não é boa para pressionar regimes: se eu digo que o meu país, ou um país da OTAN, é uma ditadura porque fez tal coisa que é incompatível com a democracia, não faz mais sentido dialogar com ele. O artifício retórico então é o do “autoritarismo” gradual, com o qual se insta o governo a não dar mais passos no rumo do mal, sob pena de aí sim ser considerado uma ditadura e sofrer sanções. Do sexo ao autismo, passando pelos regimes políticos, tudo hoje é um espectro entre dois polos binários (menos a raça, já que os mestiços estão proscritos). Quase tudo hoje é muito complicado e cinzento; depende da vontade do freguês.
Dizer que um governo não é uma bela democracia implica acusá-lo de ser uma abominável ditadura
Venhamos e convenhamos: não é nada trivial considerar a Grã-Bretanha uma democracia, sendo ela formalmente uma monarquia. No entanto, é o que fazemos no século XXI sem pestanejar. Por outro lado, se a Inglaterra é uma democracia mesmo tendo um rei, a República Popular Democrática da Coreia (vulgo Coreia do Norte) é uma ditadura, apesar de ter eleições e, em tese, ser uma república democrática com partidos e parlamento (digo “em tese”, porque a coisa mais fácil do mundo é argumentar que a Coreia é uma monarquia hereditária de facto).
Portanto o conceito liberal de democracia consegue ser, ao mesmo tempo, frouxo demais e rígido demais. Cinzento. É frouxo do ponto de vista conceitual, já que uma monarquia milenar pode ser uma democracia; é rígido demais do ponto de vista factual, já que há uma série de condições concretas que precisam ser satisfeitas para que um regime seja considerado democrático.
Essa rigidez factual implica que, para os liberais concordarem quanto ao caráter democrático de um dado regime, eles precisam antes concordar quanto às condições necessárias e quanto à “arbitragem” do cumprimento de tais condições – já que sempre será possível dizer que tal regime cumpriu ou descumpriu as regras do jogo, mas o “juiz” era comprado (i.e., era favorável ao regime e por isso não denunciou o que havia a denunciar; ou, ao contrário, inventou infrações para descacreditar o regime).
No frigir dos ovos, mesmo que porventura defenda a subsidiariedade, o liberalismo acaba clamando por arbitragem supranacional e, por conseguinte, gera pressão política sobre os mecanismos multilaterais e tende a uma desmesurada centralização do poder. Se é preciso uma arbitragem externa para decidir se um dado país é uma democracia, precisamos criar uma instância supranacional: voilà a Liga das Nações. E se a ONU é a última instância decisória, é preciso assediá-la e corrompê-la.
Dada a natureza cinzenta do liberalismo, é natural que os próprios liberais não consigam chegar a um acordo sobre quais países são democracias e quais não são. Por exemplo: todo liberal dirá que a liberdade de imprensa é essencial, mas aí alguns considerarão que, se o presidente dá uma resposta malcriada a um jornalista, o país não é democrático – e assim os liberais de esquerda batiam o martelo dizendo que Bolsonaro era um ditador. No caso de Israel expulsando a Al Jazeera, que tipicamente seria lido por liberais como “um governo autoritário expulsando a imprensa estrangeira para acobertar violações dos direitos humanos”, a regra não vale, e a maioria da direita (aliada a uma minoria da esquerda) continua apoiando “a única democracia do Oriente Médio”. O fato de Israel limitar a compra de terras segundo critérios étnicos e ter, portanto, cidadãos de segunda classe, tampouco incomoda esses excêntricos liberais.
Portanto o conceito liberal de democracia consegue ser, ao mesmo tempo, frouxo demais e rígido demais. Cinzento
Agora assistimos ao liberalismo se chafurdando em contradições explícitas. Podemos dizer que a lambança começa a ficar evidente com a dita esquerda, aquela patrocinada pelo woke capitalism e muito avançada na União Europeia e nos EUA. Para manter os salários baixos, em ambos os corpos políticos instituiu-se uma política oficiosa de open borders. Também em ambos, a esmagadora maioria da população era branca – de modo que, por óbvio, a maioria do operariado era branco também. Com a infiltração da esquerda pelo wokismo, tornou-se fácil, nesses países, enfiar o dedo na cara do trabalhador dizendo-lhe que ele é um homem branco privilegiado que mal tem direito a existir – quanto menos a ter um salário digno para sustentar o seu abominável lar patriarcal. Os trabalhadores de pele escura não têm melhor sorte: basta as empresas colocarem como aspone uma Mulher Negra Empoderada num cargo cheio de holofotes para provar que se vive numa sociedade tão justa quanto possível.
Quando as classes trabalhadoras nativas se rebelam diante da enxurrada de imigrantes miseráveis que baixam salários, é previsível que aflore o racismo, ou algum nacionalismo pouco sadio. Não tenho competência para dizer que tal seja o caso da Hungria de Orbán. No entanto, o que posso afirmar com segurança é que sua política anti-imigração e pró-natalista está em direta oposição a essa elite econômica neoliberal que patrocina o wokismo. Trump está longe de ser um pró-natalista e é bem votado entre hispânicos. Sua agenda protecionista e anti-imigração (como vimos neste texto sobre o “banho de sangue”) também está contra os interesses de tal elite econômica. Entendemos então por que o liberalismo de esquerda entra em pânico com qualquer coisa que cheire a oposição ao wokismo (Bolsonaro e Milei inclusos, mesmo que estejam muito longe de serem antiliberais).
E nessa oposição, metem os pés pelas mãos. Enquanto redijo este texto, leio no Twitter notícias dispersas sobre uma confusão em Bruxelas, onde parece que a polícia fechou um congresso de conservadores nacionais no qual Orbán falaria. Diante da confusão, o Prof. Patrick Deneen, crítico do liberalismo, aproveitou para mostrar que a “nossa democracia” prometida pelos liberais resulta naquilo.
De fato, não importa quantos eleitores tenham votado num político em eleições livres e limpas: se o político é contra o wokismo (o liberalismo de esquerda do século XXI), não é democrático. Certa feita comprei um livro do badalado autor Yascha Mounk cujo título era O povo contra a democracia. Eu achava que o título era uma óbvia ironia até descobrir logo no prefácio que não era. Ele ficava se lastimando de os povos de países que não são o dele elegerem políticos dos quais ele não gosta.
Mas os problemas mais profundos do liberalismo são visíveis há mais tempo com Israel; e, em menos tempo, com a Ucrânia (em especial o Donbass). Fiquemos com este último, por ser mais simples: desde quando houve um golpe militar na Ucrânia endossado pela OTAN (2014), neonazistas ucranianos tocavam o terror no Donbass, uma região onde a maioria da população é composta pela minoria étnica russa. Não à toa, a população da região fez referendos separatistas (que Moscou não reconheceu). O pilar mais antigo do liberalismo político, a liberdade religiosa, é violado na Ucrânia com a perseguição da Igreja Ortodoxa sediada em Moscou, que é a religião da maioria da população da Ucrânia – tanto da minoria russa quanto da maioria ucraniana.
O próprio Hamas, que é um partido político com ala paramilitar, ganhou a maioria dos assentos nas eleições parlamentares palestinas em 2006, e a resposta a isso foi um bloqueio físico e econômico de Israel – que tutela as regiões palestinas onde não há um Estado que ele reconheça.
Em ambos os casos, nas últimas décadas, seria possível pegar um monte de ongueiro e de jornalista estrangeiro para cobrir as violações dos direitos humanos perpetradas por Israel e pela Ucrânia pós 2014 para provar que ambos os países são ditaduras abomináveis (pleonasmo) que desrespeitam os direitos humanos. As vítimas teriam rostos e sairiam no jornal. Quando o Papa condenou a expulsão de monges ortodoxos de um mosteiro milenar na Ucrânia, isso teria saído na TV em horário nobre e daria origem a uma série de reportagens que humanizassem as vítimas e ungissem heróis da resistência democrática (mesmo que para isso fosse necessário inventar um ao gosto ocidental).
Vejam bem: não estou dizendo que os palestinos e os russos são anjos, nem que são democratas liberais. Estou dizendo só que, com muito dinheiro e influência, as mesmas estruturas que são usadas para provar que russos e palestinos são Satanás poderiam ser usadas para provar que ucranianos e israelenses são Satanás. O grande público ocidental, sobretudo o despolitizado, escolhe o lado nos conflitos internacionais seguindo o dinheiro investido nos meios de comunicações ocidentais, especialmente os dos EUA (que são repetidos Ocidente afora, Brasil incluso). E isso está ficando mais evidente com o conflito em Israel.
Senão, vejamos. Nenhum outro país do “Mundo Livre” negaria entrada a um acadêmico renomado como Noam Chomsky por causa de suas opiniões críticas do regime. No entanto, Israel fez isso em 2010 e ainda baniu a pessoa de Norman Finkelstein, autor de Gaza: An Inquest into its Martyrdom (2004), por 10 anos. Tanto Chomsky quanto Finkelstein são judeus antissionistas. Israel pôde fazer isso em paz e a mídia não deu grande atenção. Mas quando Lula quis banir Larry Rohter, ou Bolsonaro falou que Greenwald poderia ser preso, foi o fim da democracia no Brasil (que já acabou incontáveis vezes).
Chamam a atenção, também, os dados de ONGs defensoras do jornalismo, muito acreditadas quando se trata de denunciar “autocracias” mundo afora. Elas colocam Israel como, de longe, o maior causador de mortes de jornalistas em 2023. Numa breve busca, parece que só o Washington Post e a Al Jazeera deram destaque aos mortos; e só esta última, sediada no Catar, enfatizou a letalidade de Israel. Há duas guerras importantes no mundo, mas Israel é responsável por 75% das mortes de jornalistas.
Isso tudo mostra que é muito fácil defender a democracia. Pode-se dar um golpe para instaurá-la, pode-se impor ao povo um regime que ele odeie, e que talvez até ativamente persiga a sua fé (como no caso da Ucrânia), ou no mínimo imponha graves constrangimentos a ela (pensem no conflito do wokismo com o cristianismo por todo o mundo ocidental). Pode-se cassar a liberdade de expressão; pode-se prender sem o devido processo legal; podem-se expulsar jornalistas e pesquisadores críticos do regime que não cometeram nenhum crime; pode-se ser autor, parte e juiz de um processo. Havendo dinheiro e lobby, tudo isso é democracia: a de Xandão, a de Netanyahu, a de Zelensky. A novidade é só que o lobby ocidental rachou, e quem gosta de Netanyahu não vai gostar de Xandão.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima