Os hispânicos costumam ser bem mais esquentados do que os brasileiros e portugueses. Assim, também no âmbito intelectual o período de ditaduras militares foi quente. Um exemplo disso é o filósofo Jordán Bruno Genta, um apologista do Exército e da Igreja como pilares do Estado, anticomunista ferrenho e opositor da democracia – que ele acreditava levar inexoravelmente ao comunismo. Em 1943, as potências ocidentais pressionavam a Argentina para que entrasse na II Guerra junto aos Aliados, ou seja, junto com Roosevelt, Churchill e Stalin. Estava em vigência uma democracia cheia de suspeitas de fraudes, e dava-se como certa a adesão aos Aliados. Os militares argentinos então dão um golpe de Estado e mantêm a neutralidade. Nesse período, Jordán Genta vira interventor em reitorias e persegue os comunistas de dentro da universidade. A coisa naturalmente deve tê-lo deixado muito malquisto no meio.
Depois dessa ditadura, o ministro do trabalho, Perón, se elegeu e se firmou no poder por meio da democracia. Jordán Genta então apoia a Revolução Libertadora, que derruba Perón com o apoio de liberais e marxistas. As lideranças sindicais, antes empoderadas por Perón e pelos revolucionários de 43, são reprimidas. A Argentina fica conflagrada e Genta abandona o barco, acusando os libertadores de estarem mancomunados com comunistas e maçons.
Criou-se uma cátedra só para Genta, que passou a dar aulas em casa para um público seleto. No dia 27 de outubro de 1974, a caminho da missa com a família, recebeu onze tiros de um guerrilheiro comunista e morreu.
Livre exame leva ao comunismo?
Jordán Genta está sendo editado em português pelo Centro Dom Bosco. Diante do mostruário da editora, optei por um livro filosófico laico intitulado Comunismo: A inevitável consequência do livre exame protestante. A capa, provocativa, botava as imagens de Lutero e Stalin juntos. Eu, que ando meio farta da defesa da liberdade de expressão feita pelos libertários, que, ao meu ver, serve apenas para libertar dos freios democráticos a propaganda de ideias infames, comprei logo a obra. Afinal, agora só se vê um tipo de postura frente à censura: negá-la em absoluto, dizendo porém que certas falas danosas devem ser punidas sem prejuízo a liberdade de expressão. A questão é o que cada um avalia como dano digno de ser evitado: uns, que pessoas sejam pisoteadas num teatro após gritarem “fogo” em falso; outros, que transexuais se suicidem após ouvirem algo que julgam ofensivo. O princípio do dano é uma invenção do utilitarismo, uma filosofia surgida na Inglaterra no século XIX. Gera mais censura do que a Inquisição jamais sonhou; não obstante, é tida por muito natural e liberal. Qualquer coisa que prometa fugir desse âmbito intelectual conta com minha simpatia.
A tese dele sobre o “livre exame protestante” é, na verdade, uma tese sobre o livre exame. Sob os seus dardos estão Lutero, mas também Descartes, que primeiro põe em dúvida a existência de Deus a fim de prová-la por meio da razão. Creio que a escolha pelo foco no protestantismo se deva à cronologia, já que Descartes veio depois da Reforma. O protestantismo de fato abriu as portas para o exame que se pretenda meramente racional e livre de toda outra autoridade. Quanto à conexão deste com o comunismo, Genta cita o texto “Da comunidade dos bens” (1535), do humanista espanhol Juan Luis Vives. Ele observara que depois de subverter toda autoridade eclesiástica e considerar que todos os homens eram iguais, o passo seguinte foi reivindicar a comunidade de todos os bens. De fato, à Reforma seguiu-se um movimento anabatista que acabou com a propriedade privada em Münster, bem como com o dinheiro, e impôs o terror à cidade. O movimento foi liderado pelo padeiro João Matthys e pelo alfaiate João de Leyden.
No entanto, a obra não responde por que os países protestantes não se tornaram comunistas. Na verdade, as incursões marxistas tiveram mais sucesso em países cristãos tradicionais (ortodoxos e católicos) do que em países protestantes. A menos, claro, que se queira chamar qualquer coisa de comunismo.
Comunismo à antiga
Brigando-se com as definições, qualquer coisa pode ser chamada de comunismo. Por isso mesmo, a obra tem o valor de refrescar a memória quanto ao que é comunismo originalmente: um movimento que quer acabar com a propriedade privada e o dinheiro, bem como com todas as classes sociais. A URSS tentou acabar com o dinheiro e a propriedade privada, mas fracassou. Depois disso, os comunistas deixaram de lado o assunto – e o anticomunismo dos EUA se empenhava em confundir, num mesmo rótulo de “esquerda socialista”, tudo que não fosse liberalismo. Daí ficamos assistindo a debates estéreis sobre se o nazismo é de esquerda ou de direita: o debate é estéril porque a resposta varia conforme a definição de direita e esquerda, que é arbitrária.
Além disso, nós que vivemos hoje, até mesmo os velhos, não tivemos nenhum convívio com a propaganda comunista original. O ambiente em que o livro foi escrito é bem diferente daquele ao qual estamos acostumados. Lemos, por exemplo, que o mote dos comunistas era que “Todo trabalho é trabalho humano igual”; por isso, merecia igual consideração. De fato, como denuncia Genta, o comunismo é a subversão de toda hierarquia e autoridade. Mas, como sem hierarquia e autoridade nada dura, o comunismo mantém nas suas fileiras a autoridade que ele nega à sociedade: seus exércitos são bem ordenados, seus militantes são avaliados.
Essa atmosfera não durou no Brasil, mas existiu. Na Intentona, ocorrida em 1935, as duas cidades que sofreram foram Natal e Recife (no Rio de Janeiro, foi debelada em horas). Em Natal, montou-se um soviete composto por um sapateiro, um policial civil e um músico. Tal soviete decretou o confisco de todos os carros e o arrombamento de bancos públicos, distribuindo parte do dinheiro à população.
É curioso que o comunismo original, visando somente à Revolução, tenha passado por trabalhista. Percebemos que tanto no Brasil como na Argentina, na Europa e até nos EUA (com o minimum wage de Roosevelt), as leis de proteção ao trabalhador são obra de anticomunistas, tendo como marco importante a Carta del Lavoro, de Mussolini, que inspirou a nossa CLT. O fascismo queria a conciliação de classes, rechaçada pelo comunismo. Por isso, diferentemente do comunismo, tinha interesse em promover o bem-estar do trabalhador e afastá-lo da condição do inglês da Revolução Industrial, que tanto animava Marx por seu potencial revolucionário.
É possível que a substituição da revolução por direitos trabalhistas só tenha entrado no léxico marxistas graças ao reformismo de Eduard Bernstein (1850 – 1932), o social-democrata cujas ideias provavelmente eram conhecidas pelo ex-socialista Mussolini. Quando todas as tentativas de revolução falharam, restou aos marxistas fazerem de conta que Bernstein era importante dentro do marxismo internacional ou mesmo alemão, em vez de uma espécie de herege, rechaçado na Alemanha por Rosa Luxemburgo.
O homem atomizado
Mas a outra coisa que o ambiente de Genta faz ver melhor é que o comunismo, sendo contra toda autoridade e crendo numa utopia de homens iguais desprovidos de instituições (bem ao estilo de Imagine, de John Lennon), é contrário ao Estado. Lembremos: o proletariado, que não ganharia nenhum direito e seria cada vez mais espoliado, um dia faria a Revolução, mataria os burgueses, tomaria os meios de produção e instauraria a Ditadura do Proletariado. Depois, sabe Deus como, o Estado feneceria – mas feneceria, e aí começaria a fase Imagine da humanidade.
Cito Genta: “O homem, para o marxismo, é um animal superevoluído com necessidades biológicas prementes e tende a satisfazê-las, para sua conservação e seu prazer; e só pode lográ-lo em sociedade com outros homens”. O homem é isso, mas é também um animal que quer dar um sentido à própria vida, sentido esse que só existe em comunhão com outros homens ou com o sobrenatural. Ele não escreve um romance ou vai à missa por necessidades biológicas, nem apenas por prazer. Essa perspectiva dos marxistas é idêntica à dos progressistas, que só falam em dinheiro e prazer. Continuando com Genta: “Mas até agora todos os regimes [para os marxistas] não foram mais que formas sucessivas de exploração da maioria pela minoria. […] O homem real e verdadeiro [para os marxistas] não é o homem histórico, nem a sociedade real, verdadeiramente humana, é a sociedade que constitui nossa Pátria e o Estado Nacional a que pertencemos. O homem verdadeiro é aquele sem Deus e sem Pátria, cidadão da Humanidade, nascido, criado e formado na futura sociedade comunista, onde poderá satisfazer plenamente todos os apetites e estará livre das más paixões que torturam sua alma e faz torturar os seus semelhantes. […] O Estado na sociedade de classes é um instrumento de opressão. Suprimida as classes pela revolução proletária, o Estado se converte num simples administrador”.
O Estado para Genta tinha a função nobre de proteger a sociedade. No entanto, graças à importância que o utilitarismo teve na cultura anglófona, que é hoje hegemônica no Ocidente, é a coisa mais fácil do mundo encontrar quem concorde tintim por tintim com o marxismo clássico, tirando apenas a Revolução: (1) o Estado que existe é pura opressão; (2) o Estado não deveria existir; (3) existindo, o Estado deveria ser mera gestão de coisas, destituído de qualquer aspecto moral; (4) regulações trabalhistas são inteiramente descabidas.
Tudo isso é falso. O Estado é necessário e tem o papel nobre de zelar pelo bem-estar dos seus cidadãos, inclusive criando leis que proíbam coisas como trabalho escravo ou racismo. A vida humana não se restringe às necessidades biológicas, nem ao prazer. Somos animais sociais e precisamos de um bom ambiente para nos desenvolvermos – o que inclui, por exemplo, tirar os cracudos da frente das crianças, julgando que é mais virtuoso dar um ambiente sadio às crianças do que dar liberdade a todos de fumar crack no meio da rua.
A vida individual é feita de escolhas individuais. A vida social, tão importante para o homem, é feita também de escolhas coletivas. A gestão dessas escolhas não pode prescindir do Estado.