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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Como a cota permanente das universidades acaba com a mobilidade social

Anísio Teixeira, então reitor da UnB. Símbolo de outros tempos do ensino superior e da pesquisa brasileira. (Foto: Arquivo Central da Universidade de Brasília/Creative Commons)

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Esta semana Lula decretou que as cotas nas universidades federais seriam permanentes. Chamou-me a atenção, porém, uma coisa na notícia: “Na redação, também foi estabelecido um novo mecanismo para o preenchimento das vagas especiais. Em vez de os cotistas concorrerem somente às vagas estipuladas para seu subgrupo (pretos, pardos, indígenas, etc.), eles concorrerão às vagas gerais.” O mecanismo pode ser novo na lei, mas com certeza não é na prática. É a famigerada cota para burro, que já denunciei por aqui mais de uma vez. Um CDF negro é invisível para o nosso sistema de cotas raciais. Só passa pelo tribunal racial quem não conseguiu nota suficiente. Como as cotas são 50% das vagas, isso significa que o mecanismo de ingresso seleciona, ativamente, os que não conseguem tirar uma nota boa.

Desde o fim do vestibular como principal mecanismo de ingresso nas federais, acabou, também, a transparência quanto ao processo seletivo. Eu só tenho uma ideia razoável por ter sido professora substituta (um cargo temporário) na UFBA e, ainda assim, só porque perguntei aos alunos. Imagine que você é professor, pega no colegiado as cadernetas para fazer as chamadas, e é informado pelos alunos que aquela lista – nos primeiros dias do semestre! -- não está mais atualizada. Aí o professor entra no sistema e vê que, de fato, os nomes matriculados ficam mudando (aparecendo uns, sumindo outros) por algumas semanas. Obviamente, é um horror pra dar aula, porque há um autêntico revezamento de alunos: os da primeira aula se desmatricularam, os da segunda aula não assistiram à primeira, na terceira os da segunda desistiram e não há fio da meada possível; toda aula é a primeira aula.

O motivo disso era o tal do SiSU, Sistema de Seleção Unificada, que funcionava como uma bolsa de valores, na qual a nota que o aluno tirou no ENEM “compra” uma vaga num curso, que tem então uma nota de corte que funciona como preço. Se o aluno conseguir “comprar” o curso desejado com sua nota, não se submete a tribunal racial. O tribunal é para quem precisa pechinchar. E há, é claro, os alunos que não têm a menor ideia do que querem fazer, e escolhem o curso conforme a nota. Até o SiSU se estabilizar, eles ficam pulando de galho em galho, ou de curso em curso. Na minha época (fui caloura em 2008), o aluno escolhia o curso antes de fazer o processo seletivo (vestibular). Fui professora substituta poucos anos depois (2013 e 2014), e em 2014 passou a ser (na UFBA) essa maluquice do ingresso por SiSU. A cronologia varia entre as federais, mas todas rumaram à uniformização. E ainda tem um problema extra: o do aluno que resolve mudar de estado porque tem nota noutra federal, mas não consegue se manter lá e vai embora. Nos tempos do vestibular, a pessoa que queria mudar de estado precisava ir pelo menos conhecer o lugar antes.

Voltemos ao decreto. Uma coisa que deve ter sido surpresa no decreto é que a lei era provisória e tinha prazo para acabar ou ser revista. Começaria em 2012, em 2022 haveria uma avaliação e, perante a análise dos resultados, decidir-se-ia por mais dez anos ou pelo fim do experimento. Àquela época, era lugar comum considerar que as cotas seriam um tampão para aqueles que já passaram pela escola e não podem esperar a sua melhoria. As cotas seriam “por enquanto”, pois ninguém tinha coragem de defender a normalização de uma sociedade racialmente dividida. Já agora, se você não defender tal coisa, os Sílvio Almeida e os ongueiros vão te chamar de racista.

Como todos sabemos, a ideologia woke foi inventada:

( ) nos Estados Unidos( ) na República Popular da China

E é disseminada em sua zona de influência por meio de:

( ) organizações não-governamentais (ONGs) de banqueiros e empresários que contam com isenção fiscal nos EUA.( ) funcionários públicos ligados ao Partido Comunista Chinês.

Depois de o leitor selecionar a realidade de sua preferência, podemos continuar.

***

Se nós já sabemos à exaustão de onde vêm pressões externas pela imposição do neorracismo à sociedade brasileira, bem como pela criação da dúvida estudantil em terras brasileiras, isso não nos exime de analisar os fatores internos, que são culpa nossa.

Neste mesmo jornal, em Como a Era Lula representa a desmoralização do trabalho no Brasil, o cientista político Felipe Quintas cunhou uma ideia que me parece muito útil como ferramenta de análise: rentismo de pobre. Se o rentista é quem vive de renda sem produzir, o pobre que vive acumulando auxílios e não quer trabalhar é um rentista. É rentista o banqueiro que vive de juros artificialmente altos; é rentista o pobre que vive de somar auxílio. Assim, há uma profunda divisão socioeconômica no Brasil que não pode ser reduzida a classe social: a dos rentistas e a dos trabalhadores. Ambos podem ter a mesma renda, a diferença é que um trabalha ou pelo menos tenta trabalhar, e outro não só se conforma em viver de auxílio, como se sente no direito.

Ao meu ver, a mentalidade rentista chegou à classe média por duas vias. Uma é a pensão de alimentos, que de alimentos só tem o nome, e da qual já falei mais detidamente aqui. A outra são os inumeráveis auxílios estudantis que tomaram as universidades federais nos anos posteriores ao Reuni.

Outra vez, isso é um assunto difícil de mapear, porque as políticas variam de federal para federal. Uma amiga catarinense de classe média, que regula de idade comigo e fez uma segunda graduação, ficou recebendo, na pandemia, convites institucionais para ir pegar cestas básicas. Ela não pegava, mas os colegas de iPhone pegavam. Fora das instituições de ensino, a própria pandemia fez um monte de gente com condições de pegar Auxílio Brasil – e resta saber quantos não viraram usuários de Bolsa Família.

Já fora da UFBA, acompanhando as notícias das “eleições” para reitor, não pude deixar de me surpreender com como as atribuições do reitor passaram a ser “acolher” os alunos num pequeno Estado assistencialista, pagando bolsas de permanência para os alunos “vulneráveis” (que são pelo menos metade do total, com as cotas pra burro), subsidiando a alimentação no RU e oferecendo creche. Vejam bem, as cotas sociais sancionadas por Lula consideram que o aluno, para usar a cota de pobre, precisa ter uma renda familiar de 1,5 salário mínimo per capita. É o mesmo valor do Bolsa Permanência, o programa que paga aos pobres para permanecerem na universidade.

As cotas, lembremos, são de 50% do total das vagas. Isso é o desvirtuamento da ideia de que os pobres talentosos devem ter ajuda para estudar. Nessa ideia antiquada, o ensino superior – no qual se aprendia alguma coisa – servia à ascensão social. E o pobre não ascenderia para virar um mendigo; ele se tornaria um membro útil à sociedade, detentor do conhecimento adquirido na universidade.

Hoje, não. O pobre não tem mais escola nem universidade ao seu alcance para melhorar de vida. E o egresso da federal continuará sendo um ônus para o resto da sociedade, seja vivendo de auxílio ou ocupando um cargo de aspone para cumprir tabela ESG. Que, como se sabe, é um esquema bolado e urdido por:

( ) norte-americanos e europeus ocidentais.( ) chineses e russos.

Mas continuando. Este fim de semana eu terminei de ler As ciências sociais na Bahia (1984), de Thales de Azevedo, e de ter uma certa vertigem comparando as aspirações do cientista social brasileiro da década de 50 ao de hoje. Vejam só: “Esse plano, imaginado por Anísio Teixeira, como Secretário da Educação e Saúde do Estado, tinha em mira coligir dados em que se fundassem projetos racionais de educação, saúde, administração pública. Um grupo de investigadores constituído de estudantes adiantados de antropologia, sociologia e história, brasileiros e norte-americanos, foi integrado no Programa de Pesquisas Sociais do Estado da Bahia – Columbia University, mediante o convênio do Departamento de Educação da Bahia com aquela universidade, vindo a funcionar sob a direção e responsabilidade de C. Wagley e T. de Azevedo e a responsabilidade para a Fundação para o Desenvolvimento da Bahia” (p. 74). Colúmbia era a melhor universidade de ciências sociais do mundo. A antropologia cultural nasceu lá e era frontalmente oposta ao darwinismo social. Gilberto Freyre (que prefacia o livro) era egresso de Columbia. E essas pesquisas sociais nordestinas, com ligação com Columbia, inspiraram a UNESCO a financiar estudos sobre relações raciais no Brasil, julgando-as exemplares para o mundo. Outros tempos.

Nos dias de hoje, os pesquisadores das universidades públicas são mais outros rentistas. Querem um emprego estável sem cobrança nenhuma; se quiserem ascender, é só para viajar de graça e controlar orçamento. No máximo, tirar onda ganhando mídia. Mês passado estive num evento da Universidade Católica do Salvador e soube que, de todos os 10 projetos aprovados pela FAPESB (agência estadual de fomento à pesquisa) para estudar a Ferrovia Oeste-Leste, 9 eram de ambientalistas contrários à ferrovia e que não tinham o desenvolvimento do estado como prioridade.

O fato é que todos os grupos foram corrompidos pelo rentismo: desde os pesquisadores até os estudantes. E agora estamos nesse deserto de ideias, onde as ONGs financiadas pelo estrangeiro fazem planejamento no Brasil, e onde influencer primário pauta a discussão política no país.

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