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Na caixa de comentários do meu texto “A esquerda tem partidos, a direita tem uma turba de coaches e influencers”, choveram críticas indignadas que podem ser expressas mais ou menos assim: “Nós não precisamos de organização, porque organização é coisa de comunista, de coletivista, de totalitário! Nós somos almas livres que agem conforme os desígnios do deus Mercado, que é descentralizado, e por isso somos mais evoluídos do que a esquerda.” Ou, mais resumidamente: a desordem é intrínseca à nova direita, e isso, no mínimo, não é mau.
Na referida caixa, descobri ainda que o youtuber anarcocapitalista Ricardo Albuquerque, conhecido como Ancapsu, Gordão Ucrânia, entre outros apelidos e pseudônimos, comentou o meu texto para a sua audiência. E o comentário foi nessa linha aí, só que incluindo a ousada afirmação de que quem vende curso (não raro de qualidade duvidosa) faz bem à sociedade. Organização e partidos, segundo ele, são desnecessários. Bolsonaro poderia ganhar uma eleição majoritária sem partido fazendo campanha na internet e todos os políticos de direita deveriam imitá-lo. Vá lá que ganhe eleição. Mas como governar assim? Ninguém sabe, e o Sr. Albuquerque não conta.
Pouco depois li o artigo do deputado Zucco, intitulado “Estado policialesco”, que, após retratar a obscura conjuntura política vivida no Brasil, aponta a seguinte luz no fim do túnel: “A última live promovida pelo presidente Jair Bolsonaro só reforçou uma verdade: somos maioria no Brasil! Quase 500 mil pessoas assistiram simultaneamente à transmissão, que já conta com dois milhões de visualizações. Enquanto isso, Lula passa vergonha em termos de audiência.”
Mesmo que admitamos que cada visualização seja de um apoiador de Bolsonaro diferente, excluindo a possibilidade de alguém ter visto mais de uma vez, ou de que não-apoiadores tenham assistido à live, dois milhões só representariam maioria se a população brasileira fosse inferior a quatro milhões. Dois milhões não chegam a um centésimo da população. O fato de Bolsonaro ter mais visualizações do que Lula significa o de sempre: ele tem uma grande audiência na internet e Lula não conseguiu imitar o modelo. No segmento populacional brasileiro que gosta de acompanhar política por lives, Bolsonaro é mais popular que Lula. Mas o universo dos brasileiros, inclusive dos brasileiros que votaram em Bolsonaro no último pleito (58 milhões segundo o TSE), é muito maior do que o público de live de político. Bolsonaro faz sucesso no Youtube. E daí? Qual é a consequência disso? O plano bolsonarista para enfrentar o TSE parece ser a substituição de urna eletrônica por audiência de live. Quando o resultado eleitoral for derrota, todo o mundo faz transmissão ao vivo chorando em protesto. E depois faz live dizendo que teve pouco petista fazendo live de comemoração do resultado.
Em seguida, li a matéria “Fidelidade partidária ainda é desafio para o PL e Bolsonaro quer filiados alinhados à direita”, que mostrava que nem sobre os deputags do PL Bolsonaro tem autoridade. Questionado sobre tal desorganização, o cientista político Adriano Cerqueira ouvido na matéria disse: “O PT, como partido marxista, por exemplo, segue a linha diretiva do centralismo democrático. […] Esse controle da informação, essa exigência da disciplina com relação às decisões tomadas, são comuns, aos regimes políticos de esquerda […] Já os partidos que não são de esquerda […] o debate é aberto e acontece de isso não ser visto como fragilidade. Pelo contrário, é entendido como algo natural e há maior tolerância para um debate mais franco. Claro, muitas das vezes isso pode mostrar um certo enfraquecimento ou bagunça, mas é assim que eles são organizados.” Vai, portanto, na mesma linha da caixa de comentários e do youtuber.
O fato de Bolsonaro ter mais visualizações do que Lula significa o de sempre: ele tem uma grande audiência na internet e Lula não conseguiu imitar o modelo
Se os leitores da caixa de comentários, o youtuber ancap e o docente do Ibmec concordam em linhas gerais, eu não vou crer que eles estão mancomunados, mas sim que se trata de senso comum na nova direita. E o texto do deputado Zucco ajuda a enxergar o quadro, mostrando que a nova direita tem uma paixão pela internet que compromete a sua maneira de enxergar a realidade.
Foquemos na análise do professor do Ibmec: discordo veementemente dela. Os partidos tradicionais, mesmo os mais descentralizados como o MDB, têm autoridade e disciplina. Se alguém quiser me dizer que Michel Temer é marxista porque tem autoridade sobre o MDB de São Paulo, só lamento. Até a sua descrição da esquerda é imprecisa, pois o eufemístico “centralismo democrático”, de origem em Lênin, é notoriamente característico dos stalinistas. A esquerda trostkista, também notoriamente, é sujeita a infinitos rachas e grupelhos; quando implanta o centralismo democrático, é dentro de um grupo miúdo que resultou do racha do racha do racha. Os partidos com histórico stalinista dominante são só dois: Cidadania (ex-PCB) e PCdoB. Quando o Partido Comunista Brasileiro abandonou o stalinismo (por causa do Relatório Khruschov) e virou gramsciano, os stalinistas recalcitrantes criaram o Partido Comunista do Brasil. Foi criado na ilegalidade, por causa da proibição do comunismo na época. Já o PT é desde a sua criação um saco de gatos esquerdistas. Bem ou mal, o PCdoB se institucionalizou logo que possível, já em 1988. Os dois partidos trostkistas mais antigos que temos são de meados da década de 90: o PCO e o PSTU, que resultam de rachas do PT, mas também não se deram ao trabalho de fazer um único partido trotskista. O PCdoB, a seu turno, desde cedo recebeu grupos de outras vertentes (como a esquerda católica da AP). Por outro lado, o nanico PSTU estava realizando expurgos em 2018, quando os dirigentes não aceitaram que seus filiados apoiassem Lula. Os dissidentes foram para o PSOL.
O trotskismo demorou para buscar se institucionalizar. Durante o regime militar, uma porção de facções trotskistas, armadas ou apenas intelectuais, viviam se multiplicando por meio de rachas. O PT não deixa de ter ido numa direção oposta ao trotskismo, na medida em que buscou organizar diversos segmentos da esquerda dentro do partido. Deve ser por isso que conseguiu agregar stalinistas no partido e mantê-los. Por outro lado, a política de aceitar apoio de todo o mundo leva ao risco de descaracterização do partido, como ocorreu com o PCdoB, que hoje é o enésimo partido woke da política brasileira.
Mas voltemos ao aspecto mais geral, que é a alegação de que organização é "de esquerda". O fato é que é muito difícil pensar em qualquer ente social que funcione de modo tão avesso à autoridade quanto o da nova direita. Por exemplo, antes de a direita ficar idolatrando um autodeclarado católico que sabe mais que o papa desde pelo menos quando o papa era São João Paulo II (não foi Kogos quem lançou a moda; refiro-me a Olavo de Carvalho), era usual a direita brasileira reconhecer na Igreja e no Exército duas instituições que salvaguardavam a família e a pátria. Por mais que a infiltração da Teologia da Libertação seja um problema real (e que está longe de ser exclusivo ou originário da Igreja Católica), o fato é que Olavo de Carvalho promoveu sistematicamente o desrespeito à autoridade no seio da Igreja, bem como se empenhou em difundir a ideia estapafúrdia de que as origens positivistas do Exército Brasileiro tornavam a instituição praticamente comunista. O olavismo, que fundou a nova direita, foi um ataque às instituições historicamente ligadas à direita brasileira. E não soube, nem quis, pôr nada em seu lugar, já que não se governa com base no culto à personalidade de Olavo.
O fato é que é muito difícil pensar em qualquer ente social que funcione de modo tão avesso à autoridade quanto o da nova direita
O que vale para a política, para a Igreja e para o Exército vale até para os negócios. Sob o prisma da institucionalidade e da autoridade, uma empresa de grande ou médio porte se parece mais com a “esquerda” do que com a “direita”. Porque se um empresário não tiver uma existência formal, nem uma instância última de tomada de decisões, ele não chega a mais que vendedor de coxinha em porta de rodoviária. Ou a mendigo virtual que fica empurrando curso e pedindo pix.
Só me ocorrem três agentes políticos grupais tão anárquicos quanto a nova direita: o trotskismo, as infinitas denominações protestantes e o olavismo. O trotskismo só pode influenciar a nova direita de uma maneira bastante indireta, já que o neoconservadorismo foi criado por intelectuais de direita egressos do trotskismo (como Gertude Himmelfarb e o marido), e eu não acredito que a nova direita tenha muito acesso a eles em primeira mão. O segundo dos grupos cresce muito no Brasil e é natural que tenha influência na direita – mas cresce o bastante para ter influência ambidestra. Tenhamos em mente que Edir Macedo já deu muito voto para o PT antes de apoiar Bolsonaro; e que a funkeira Ludmilla, cujo cancioneiro está longe de ser edificante, acaba de comprar uma igreja e contratar uma pastora. Se uma denominação disser que ficar seminu na praça arreganhando a bunda e fumando maconha é errado, nada impede que se crie uma nova denominação que diga que isso é de Deus e se goze dos benefícios fiscais da condição de igreja. Quanto mais dinheiro entrar, maior a comprovação da eleição divina!
Dos três grupos, resta o olavismo, cuja importância na nova direita é inegável. É, por assim dizer, o fundador dessa corrente política no Brasil. Bolsonaro se elegeu em 2018 valendo-se bastante da condição de militar, que era muito valorizada pela direita tradicional. Quando ele fez a primeira live após o resultado eleitoral, o livro de Olavo de Carvalho sobre a mesa levou jornalistas a fazerem matérias explicando ao Brasil quem era aquele escritor. Hoje, qualquer pessoa razoavelmente informada tem uma ideia de quem é Olavo de Carvalho.
Sob o prisma da institucionalidade e da autoridade, uma empresa de grande ou médio porte se parece mais com a “esquerda” do que com a “direita”
Como eu fazia filosofia e usava a internet para pesquisar sobre temas variados, sabia da existência dele havia pelo menos dez anos. E uma coisa que sempre esteve clara para mim é que Olavo criou um amplo universo fragmentário e estridente na internet. Funcionava assim: Olavo tinha os seus “alunos”, um belo dia brigava com um dado aluno da maneira mais escandalosa possível, metia-lhe um apelido jocoso (atividade na qual era muito competente), daí havia réplicas e tréplicas que eram um barraco por escrito -- e barraco, seja por escrito ou no gogó, logo junta um bolinho pra olhar. Ao cabo, um punhado ficava do lado do proscrito e assim surgia uma facção. O proscrito ficava “famoso”, porque é o cara que protagonizou tal barraco com Olavo. Mas a “fama” era restrita ao círculo de olavetes e de egressos do olavismo. Criava-se uma olavosfera que não era necessariamente composta de olavetes. A pessoa rompia com Olavo, mas continuava dependente da sua esfera de influência.
Que queriam os olavetes com isso? Olhando inclusive para a matéria deste jornal sobre o legado de Olavo, creio que os próprios olavetes admitirão que muita gente se aproximou de Olavo para ganhar dinheiro na internet. Hoje isso é visível graças à moda dos cursos de influencer; antigamente, era visível por meio das livrarias virtuais. Em vez de uma lista de livros proibidos, Olavo tinha uma lista infinita de livros obrigatórios; assim, surgiram editoras e livrarias virtuais para suprir essa demanda. Como a lista era muito grande, não sobrava tempo para o olavete ler mais nada, de modo que Olavo conseguia implementar, entre os seus devotos, o pensamento único, pois todo o mundo lia as mesmas coisas. Certa feita, já saquei que um esquerdista foi olavete passando o olho na estante dele: lá estavam Mário Ferreira dos Santos, Vilém Flusser, Eric Voegelin... Eu sabia que as chances de um leitor desses três autores não ter passado pelo olavismo eram exíguas.
Como eu já disse no outro texto, Olavo era um ótimo crítico cultural, mas não edificava. E ele criou, nas redes sociais, uma dinâmica na qual o vencedor é aquele que recebe mais atenção. Em vez de admoestar os pupilos em particular, ele manifestou predileção por escracho público (vide a ocasião da viagem dos deputados à China). A atenção é boa por um motivo estritamente pecuniário e individual: serve para vender livros e cursos. Transposta para a política, resultou nesse galinheiro aí.
Olavo ensinou a achincalhar as autoridades e a sobrevalorizar a individualidade incondicionalmente, não raro da maneira mais histriônica possível, sem o mínimo de decoro. Não tem como dar certo uma corrente política inspirada por ele.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima