No último texto vimos de relance o papel da Fundação Ford na configuração de uma esquerda amiga de oligopólios, liberal quando comparada à esquerda tradicional, estatista. De um lado, o amor à URSS e a Cuba; de outro, o amor à guerra cultural e ao capital privado de oligopolistas – algo na verdade muito menos próximo do marxismo do que do fascismo, fundado por egressos do marxismo. Do CEBRAP saiu o PSDB. O PT é mais misturado: tem pelo menos um queridinho da Fundação Ford entre os seus fundadores (o racista Florestan Fernandes), mas tem em sua origem um peso muito grande da esquerda armada (isto é, terrorista), seja ela soviética ou católica. Com as privatizações de FHC, o funcionalismo perdeu o peso eleitoral de outrora, conseguindo eleger apenas cargos legislativos. O PT de Lula largou o funcionalismo e se tornou um partido da Fundação Ford, tal como o PSDB. A USP (FFLCH), o CEBRAP, Nova Esquerda, Estado na mão de oligopólios empresariais: estas coisas caminham todas juntas e se confundem entre si.
Em vez da política, foquemos hoje no pensamento. O que esse estado de coisas fomentou foi a alienação da academia perante o público. Essa tradição criou a estranha figura do intelectual cuja cara e voto todos conhecem, mas cujo trabalho acadêmico e ideias são um completo mistério. Querem ver só?
Marilena Chaui, Márcia Tiburi. Em quem votam? Todos sabem que no PT. Em que consistem suas atividades acadêmicas? Só quem passou por um curso de humanas sabe que Marilena Chaui em tese é respeitável por ser uma grande especialista em Baruch Espinosa (1632 – 1677). Que Márcia Tiburi é especialista em Theodor Adorno, eu só descobri porque tive a curiosidade de olhar o finado currículo Lattes.
Até aí, tudo bem. Numa cultura acadêmica em que quase todos são historiadores da filosofia, é natural que as mentes mais livres desenvolvam ideias fora do espaço acadêmico e venham a ser conhecidas por elas, em vez de trabalhos acadêmicos.
Mas que ideias fazem Chaui diferente de Tiburi ou de qualquer outro intelectual petista? Onde está a originalidade de qualquer uma delas? Se há uma frase de Marilena Chaui que todos conhecem, é “Eu odeio a classe média”. Frase que expressa um sentimento, não uma ideia. Aliás, já tentei criar uma subseção “Discurso de ódio” na seção “Controvérsias” do verbete “Marilena Chaui” da Wikipédia, mas os moderadores não deixaram. Aparentemente aquilo não é discurso de ódio.
Falta de ideias próprias
Pois bem: morreu recentemente José Arthur Giannoti, colega de Marilena Chaui menos espalhafatoso. Um amigo, também das humanidades, mas não de filosofia, me pergunta quais eram as ideias dele. Não sei responder. Posso informar apenas que foi tradutor pioneiro de Wittgenstein no Brasil, mas que sua tradução é meritória pelo pioneirismo em vez da qualidade. Os wittgensteinianos todos usam a tradução do Tractatus Logico-Philosophicus feita por outro uspiano, e o próprio Giannotti não pareceu ser muito apegado a ela.
Posso dizer que ele estudava vários filósofos e era crítico dos “filósofos que se casam com um filósofo e passam a vida toda falando dele”, como Marilena Chaui com Espinosa. Mas, tal como Marilena Chaui, é mais fácil apontar sua preferência política. Ele era amigo de Fernando Henrique Cardoso, membro do CEBRAP e, embora não fosse filiado, considerava-se um “tucanoide” e era identificado como um tucano pelos colegas. E, tal como Marilena Chaui, não podemos apontar uma ideia sua.
Ao noticiar a morte de Giannotti, O Globo se referiu a ele como estudioso de Marx. Poderia ser simplesmente um erudito; não há nada de mau nisso. Mas Giannotti (1930 – 2021) fazia apologia dessa falta de ideias próprias. E mostrou isso com clareza ao lançar ataques virulentos a um coetâneo que tinha ideias próprias: José Guilherme Merquior (1941 – 1991).
A polêmica se deu em 1987, quando Giannotti publicou na revista do CEBRAP um artigo contrário à obra “O marxismo ocidental”, em que Merquior descrevia e detonava a Nova Esquerda. Em “O tema da Ilustração em três registros”, Giannotti resenha três livros ao mesmo tempo, sendo um deles o de Merquior. Segundo nos conta, as editoras e os jornais estavam publicando uma quantidade inesperada de textos filosóficos: “Convém fazer o inventário dessa produção difusa, sobretudo convém distinguir os registros em que ela se faz, pois nada mais prejudicial do que pedir a um livro que se destina à divulgação filosófica que apresente o rigor necessário a uma tese de doutoramento, ou que o texto polêmico siga as regras do tratado.”
Para Giannotti, uma tese de doutoramento – e isso só quem conhece a academia brasileira sabe – deve ser feita sempre sobre algum filósofo, e não sobre alguma questão. Mais ainda: não se pode criticar o filósofo; é preciso explicá-lo como um sistema, a partir de vocabulários e premissas internos à obra. No frigir dos ovos, se o filósofo Fulänen disser que a borboleta tem penas porque “borboleta” (Tagfalter) significa galinha, não cabe ao acadêmico dizer que Fulänen fez uma escolha cretina de palavras; em vez disso, cabe explicitar o conceito, explicar por que Fulänen tinha razão ao dizer que viu a borboleta comendo milho, e discutir se devemos traduzir de Tagfalter (borboleta em alemão) como borboleta mesmo ou como galinha.
Evidentemente, não é dessa natureza o trabalho de Merquior sobre os marxistas ocidentais. E é disso mesmo que Giannotti reclama: “A crítica de Merquior é exterior e confunde alhos com bugalhos. Não há dúvida de que as propostas de Habermas são, como tudo em filosofia, altamente questionáveis. Não fica claro o que venha a ser este consenso assegurado, não fica claro o sentido duma pretensão de validade e assim por diante. Mas não se adianta um passo se, em face dessa extraordinária tentativa de se pensar o conceito de racionalidade e, por esse meio, o próprio significado da irracionalidade contemporânea, o crítico fincar pé numa posição exterior e acusar o filósofo de irracionalista, simplesmente porque não pensa de acordo com os padrões de racionalidade que o próprio crítico não explicita. Convenhamos, ninguém nos dias de hoje tem no bolso um critério de racionalidade”.
Outro exemplo: “Não há dúvida de que expressões como esta [de Hegel] beiram ao delírio, mas como Hegel não é louco, mas gênio, nossa tarefa não é acusá-lo de namoro com o irracionalismo (com que critério?), mas compreender a articulação interna de seu pensamento, que o leva a pensar a lógica duma óptica divina”.
Se o filósofo falou, não podemos discordar. Mas com que critérios podemos dizer que Hegel era gênio e Merquior não? Se todos os filósofos seguissem Giannotti, ninguém discordava de ninguém, porque cada um está certo segundo seus próprios critérios. E se ninguém discordasse de ninguém, não tinha filosofia.
Filosofia inútil para a política
Leiamos mais um pouquinho de Giannotti: “O que estou querendo provar com tudo isso? Que Merquior não sabe história da filosofia? Em primeiro lugar, saber é um estado subjetivo que, basicamente, não afeta o acordo ou o dissenso. Depois, houve filósofos geniais que pouco conheceram do que pensaram seus predecessores. Na verdade, Merquior fala desses filósofos, mas importa salientar que ele utiliza esse material duma forma totalmente diferente daquela do historiador ou do professor de filosofia. Sua enorme erudição serve-lhe para pescar (e tudo que cai na rede é peixe) certos argumentos que desarmem o adversário e entusiasmem os aliados. Quem são eles? O primeiro, é o militante marxista que repete chavões como um moinho de reza chinês. Quando este se põe como o herdeiro da ciência ou da história, Merquior lhe puxa o tapete. E seus aliados? Esta massa de leitores que consome cultura como doces duma confeitaria. Este jovem intelectual já escreveu dezenove livros, e no fundo é um militante marxista com sinal trocado”.
Giannotti concorda, portanto, que filósofos podem criticar filósofos sem deixar de ser filósofos por isso. Merquior, de fato, não fala como um professor ou um historiador meramente descritivo (mas eu diria que fala como um historiador, sim, já que desde Heródoto historiadores fazem algum tipo de crítica, seja dos costumes ou dos reis). Por que Merquior não pode falar como um filósofo? Ora, porque é, na verdade, um sofista. E é um sofista porque – veja só! – suas críticas têm um impacto no debate político!
Daí aprendemos que os filósofos são entidades mágicas que só podem ser criticados por gente pertencente à mesma espécie, e que o que dizem sobre política não deve ter relações com o mundo. Giannotti tem razão ao dizer que Merquior tinha os militantes marxistas repetidores de chavões como inimigos. Mas ele tinha também como inimigos os mais sofisticados, como o próprio Giannotti, que fez uma resenha-chilique contra o texto. E que faz um marxista sofisticado? Tira a filosofia da rua, dos jornais, para colocá-la numa prateleira inalcançável, longe do mundo.
Ora, mas a filosofia está influenciando nossa vida o tempo inteiro. O que um intelectual como Giannotti faz é transformá-la em puro diversionismo.