O PL 2630, vulgo PL das Fake News, tem suscitado indignação mais que justa. Entre as objeções repetidas com as quais concordo estão: (1) não é sensato delegar a ninguém o poder de decidir corriqueiramente tudo o que é verdadeiro ou falso (ou seja, a criar um órgão como o Ministério da Verdade de Orwell); (2) essa regulação da informação dá uma sinecura aos perdedores da revolução digital, ou seja, às empresas de comunicação que não conseguiram manter leitores e telespectadores (por aí se vê que o Ministério da Verdade estaria mais para um Parceria Público-Privada da Verdade); (3) na atual conjuntura, essa configuração servirá para o governo Lula censurar a oposição (se o governo fosse Bolsonaro, serviria para a oposição anular as ações do governo).
Mas uma objeção corriqueira, com a qual não posso concordar, é a ideia de que a internet deve ser totalmente livre de ingerência governamental. A exigência da regulação, aliás, era entendida como pauta de direita conservadora até dois minutos atrás, quando se exigia que os governos obrigassem as plataformas de pornografia a dificultar o acesso de menores. É ridiculamente fácil acessar sites como o PornHub, e a exigência de uma identificação serviria para dificultar bastante que uma criança o acessasse. Além da pornografia, as redes sociais vêm sendo apontadas por estudiosos como um poderoso vetor de doenças mentais (um psicólogo social famoso que costuma tratar do assunto é Jonathan Haidt). Na Inglaterra há um caso emblemático, o do pai de Molly Russell contra o conglomerado Meta (dono do Instagram, Facebook e WhatsApp) e o Pinterest. A menina se matou aos quatorze anos e, após perícia de sua vida digital, descobriu-se que ela fora “sugada para um buraco negro online de publicações relacionadas a depressão, autolesão e ansiedade”. É claro que muitas adolescentes usam rede social e não se matam. Porém, o caso de Molly era o de uma adolescente com problemas, problemas esses que a levavam a procurar conteúdo relativo a depressão e autolesão, e, uma vez que o algoritmo aprendia isso, despejava no seu feed uma montanha de conteúdo semelhante. Resultado: as redes sociais, entupindo de material de autolesão uma menina com propensão à autolesão, contribuíram para que ela se matasse.
É notório o impacto que o contágio social tem sobre os suicídios; por isso, para evitar o “efeito Werther”, o jornalismo tem toda uma política de não-publicidade dos suicídios. É justo exigir das redes que tenham uma política análoga. Mas a moral ocidental, já imersa num utilitarismo secular, virou de cabeça para baixo ultimamente, de modo que o suicídio assistido vem sendo ofertado e estimulado em larga escala por países avançados como o Canadá. Com base em que dizer que o suicídio de doentes mentais deve ser evitado, neste mundo de “liberdades” onde reina o cada um por si e o Mercado por todos?
Bom, tratemos de não dar voltas no próprio rabo, tal como um cachorro. O que pretendemos (o leitor e eu) é justamente escapar do progressismo, por conseguinte, de sua apologia do suicídio etc. Por isso mesmo – digo eu – é preciso parar com essa maluquice de achar que o livre mercado regula tudo de modo harmonioso e intervenções são ruins em si mesmas.
Outro cavalo de batalha do progressismo é a ideologia de gênero. Convencendo o máximo de gente o mais cedo possível – de preferência, crianças – de que ser homem ou mulher é uma opção, lucra-se um montão com assistência médica, seja para fazer e manter os procedimentos transexualizadores, seja para minorar os efeitos colaterais de tais procedimentos. A indústria médico-farmacêutica ganha muito com isso; o Estado, por outro lado, ficará cheio de inválidos e de custos médicos. Eis um caso em que os interesses do mercado estão contra os do Estado e, segundo os críticos da ideologia de gênero, estão também contra os interesses do cidadão comum.
O interesse do Estado é arrecadar muito e gastar pouco; assim, a única dessas coisas promovidas pelo progressismo que pode lhe interessar é o suicídio assistido, já que os doentes deixam de pesar no orçamento do Estado.
Há, então, um incentivo de mercado para dizer aos adolescentes que eles podem ser do “gênero” que quiserem, e criar-se uma propaganda maciça nas redes. A quantidade de crianças e adolescentes com disforia de gênero se multiplicou numa década; e, desde as pesquisas da médica Lisa Littmann sobre o assunto, a comunidade científica já debate a “disforia de gênero de início rápido”, que é um contágio social. Não é à toa, portanto, que têm surgido cada vez mais jovens destransicionados; isto é, jovens que padeceram de disforia de gênero, foram encorajados pelos médicos a virar trans, fizeram todo tipo de procedimento para mudar de sexo e depois se arrependeram amargamente.
Ninguém há de negar que é muito ruim padecer de disforia de gênero (a rejeição ao próprio corpo e a vontade de ser do outro sexo). Se a disforia de gênero é socialmente contagiosa, o razoável seria adotar com relação a ela procedimentos análogos à forma de lidar com suicídio. Mas o que se dá nas redes é o oposto. Como mostrou Abigail Shrier em Irreversible Damage, há influencers trans que prometem às fêmeas milagres de realização pessoal e felicidade por meio das injeções de testosterona.
Falando em fêmeas da espécie e em propaganda de vida maravilhosa, outra coisa muito comum são as influencers – não raro repercutidas por sites como o Uol – que vivem de dar a impressão de que nadam em dinheiro vendendo foto de bunda e sabe-se lá mais o quê. A crerem na propaganda, as moças acham que todas têm dinheiro menos elas, e que isso se deve a não venderem pornografia de si mesmas. O mínimo que se deve fazer é exigir que plataformas como o OnlyFans se certifiquem de que as fotos são de maiores de idade (segundo a Forbes, “como o site não verifica a idade dos produtores de conteúdo adulto de forma independente, é bastante fácil para as pessoas mentirem durante o cadastro”). Ainda assim, não é razoável nem justo bombardear as moças com a promessa de que elas ganharão rios de dinheiro caso vendam foto de bunda. Um deslize aos 18 anos recém-completos, impulsionado por uma mentira propagandeada aos quatro ventos, significará um problema para o resto da vida.
Revisemos, pois: pornografia, suicídio, disforia de gênero, prostituição virtual, são coisas promovidas pelas plataformas e redes sociais para todo tipo de gente, aí inclusos os menores de idade e os doentes mentais – categoria que amiúde se confunde na figura cada vez mais comum da adolescente deprimida. Vício em pornografia produz impotência e perda de libido; disforia de gênero, hoje, é tratada com procedimentos médicos cheios de efeitos colaterais de longo prazo que incluem esterilidade; prostituição também termina por ter impacto na taxa de fecundidade, já que a mulher terá dificuldades para constituir família. O interesse do Estado é arrecadar muito e gastar pouco; assim, a única dessas coisas promovidas pelo progressismo que pode lhe interessar é o suicídio assistido, já que os doentes deixam de pesar no orçamento do Estado. Mas, ainda assim, uma iniciativa tão ousada quanto a do Canadá pode neutralizar esse efeito positivo sobre as contas públicas por meio da morte de jovens deprimidos que poderiam se recuperar e se tornar cidadãos produtivos na economia, além de pagadores de impostos.
O Pornhub é canadense; o Youporn é dos EUA; o Redtube tem a sede no Texas; o OnlyFans é de um ucraniano que mora na Flórida. Toda essa cafetinagem virtual é coisa pouca perto da rede social chinesa TikTok, que não é lá muito diferente do Instagram do americano Zuckerberg. Nem no delírio do olavete mais tresloucado esses sites poderiam ser considerados comunistas; são capitalistas com certeza. Seu interesse sobre os indivíduos que compõem a sociedade é predatório. E por isso mesmo têm que ser enquadrados pelo Estado.
Tudo isso é naturalmente deixado de fora pelo PL 2630, que se aproveitou do surto de ataques a escolas (outra coisa suscetível a contágio social, aliás) para controlar a informação, subornar a velha imprensa falida e perseguir opositores. Daí não se segue, porém, que não deve haver regulação alguma sobre as redes.
Não é difícil imaginar o festival de besteiras que seria um código penal criado hoje: crime de piada, crime de olhar pra mulher, crime de gordofobia, crime de não realizar casamento gay em igreja católica, licença para usar e vender drogas, licença para abortar até depois de nascido, licença para financiar a própria cervejinha com o celular alheio…
Dado o atual estado de coisas, é muito improvável que o Congresso faça uma regulação decente. Mas é bom frisar que isso é um problema do atual estado de coisas, e não uma prova de que regulação é algo inerentemente ruim. Se o leitor ainda duvida, pergunto o que ele acharia de acabar com o Código Penal, e doravante matar e roubar não fossem mais crimes. Parece uma ideia tão boa quanto o fim da PM (a reação da população a qualquer boato de greve de polícia mostra como é delirante essa pauta da esquerda). Agora imagine o leitor que o Brasil fosse fazer agora, do zero, um código penal. Não é difícil imaginar o festival de besteiras que seria: crime de piada, crime de olhar pra mulher, crime de gordofobia, crime de não realizar casamento gay em igreja católica, licença para usar e vender drogas, licença para abortar até depois de nascido, licença para financiar a própria cervejinha com o celular alheio... Disso não se segue que um código penal é desnecessário.
É tão ruim, a ideia de que a regulação estatal das redes é má em si mesma, que a sua difusão requer explicação. Vejo-a como um evidente sintoma do anarcocapitalismo cultural que estamos vivendo. À esquerda e à direita, uma anacrônica propaganda da Guerra Fria toca os seus bumbos noite e dia. Haveria que se escolher entre o comunismo e o capitalismo. Este, a seu turno, foi sutilmente substituído pelo anarcocapitalismo puro e simples. Assim, se você não é “comunista”, tem que execrar o Estado e crer nos poderes divinos do livre mercado. E se você for “comunista” feito os meninos do megacapitalista Lemann, nem sequer pedirá que o Estado cresça por meio de concursos; em vez disso, pedirá que ele cresça por meio de ONGs. Ou seja: o anarcocapitalismo está tão em alta, que até os “comunistas” são privatistas.
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