| Foto: Reprodução/X (ex-Twitter)
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A julgar pelos memes, a coisa mais marcante da entrevista de Putin foi a aulinha de história russa dada a um impaciente Tucker Carlson, que via frustradas as suas tentativas de pular uns mil anos e chegar logo a 2022, quando começa a invasão da Ucrânia. Aqueles que quiseram desmerecer a aulinha alegaram que tudo não passava de conversa mole para negar a legitimidade do Estado ucraniano. Os que ouviram a história com atenção, por outro lado, terão notado que a finalidade de Putin foi dizer que o território da atual Ucrânia é essencial à segurança da Rússia. Foi a invasão dos hunos, por exemplo, que levou a Rússia a reincorporar Kiev – ou assim disse Putin. Eu não tenho conhecimento de história da Rússia para negar, nem motivos para crer que ele esteja mentindo, já que não vi ninguém reclamar.

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Neonazismo e limpeza étnica

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Dizer que a Ucrânia é um Estado artificial e ilegítimo é só parte de uma história que deveria deixar todo o mundo muito curioso; afinal, Putin diz claramente que Lênin e Stálin inventaram a atual Ucrânia sem nenhuma explicação, criando o mapa alheio a considerações étnicas e históricas, e dando-lhe a possibilidade de se separar da URSS. Na mesma entrevista, diz que o colapso da União Soviética foi planejado de cima. Ou seja, Putin deixa no ar a ideia de que as lideranças soviéticas sabotaram a Rússia e que a invenção da Ucrânia fez parte desse projeto. Que forças seriam essas?

A artificialidade da Ucrânia consistiria na ausência de uma identidade étnica ou na sua unificação. O caso mais conhecido é o dos russos do Donbass (sobre os quais o jornalista Lucas Leiroz escreveu aqui nesta Gazeta). Putin tratou ainda das minorias étnicas húngaras. Essa informação é nova para mim e eu não a ouviria noutro lugar. A Ucrânia, portanto, é uma colcha de retalhos cuja unidade territorial foi inventada na União Soviética, de modo a dar-lhe acesso a minérios (o Donbass, povoado por russos étnicos há séculos, é rico em minérios) e o acesso ao Mar Negro (em detrimento da Hungria, que ficou sem acesso ao mar). Putin insinua a possibilidade de partilhar a Ucrânia para dar à Hungria o acesso ao mar, favorecendo-lhe o comércio e a defesa.

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Quanto à invenção da Ucrânia, os meus conhecimentos gerais tendem a concordar com Putin. O meu autor russo favorito é Gógol, um “russo do Sul”, que tratou bastante da cultura de sua terra natal (hoje Ucrânia) sem, que eu saiba, falar de nenhuma nacionalidade diferente. Ao contrário, trata muito de cossacos, que são um símbolo da cultura russa. O próprio Gógol também é um símbolo da cultura russa, já que Dostoiévski disse que “todos nós [escritores russos] saímos d’O Capote de Gógol”. Na minha família, sabemos que a língua materna do meu bisavô era russo e que ele nasceu na Rússia. A um neto, disse que nasceu em Kiev.

Por outro lado, é claro que a unidade étnica não é indispensável à constituição de um Estado. A Suíça, por exemplo, combina franceses, alemães e italianos étnicos sob um único Estado; a própria Rússia é um Estado multiétnico, compreendendo uma grande variedade de povos indígenas em sua vasta extensão territorial. No entanto, qualquer argumentação em defesa de um Estado multiétnico na Ucrânia terá de se defrontar com o fato insofismável de que o Euromaidan, em 2014, foi um golpe de Estado pró-Ocidente tocado por milícias neonazistas posteriormente incorporadas ao Exército do Estado ucraniano. No Estado suíço não há uma etnia dominante controlando um Exército racista.

Como é insofismável, o lado pró-Ocidente tenta lançar uma equivalência com os neonazistas do Grupo Wagner russo, cujo líder, Prigozhin (pronuncia-se Prigójin), provavelmente foi morto a mando de Putin após insurgir-se. O curioso é que essa equivalência se resume a um âmbito, por assim dizer, confessional: se o mercenário russo que atua no estrangeiro tem uma porção de símbolos nazistas tatuados, isso basta para equivaler os atos perpetrados por neonazistas do Estado ucraniano contra cidadãos ucranianos. Neonazismo não é errado porque faz as pessoas terem tatuagens feias ou colecionarem bandeiras em casa; neonazismo é errado porque promove limpeza étnica. A Ucrânia, por “artificial” que fosse, era um Estado relativamente normal até os neonazistas, após tomarem o Estado, passarem a tentar “desrussificar” o Donbass – um eufemismo para limpeza étnica antirrussa. Em virtude da violência na região, houve um esforço diplomático que resultou nos Acordos de Minsk, ignorados por Zelensky e pelas potências ocidentais. Esse foi outro assunto abordado por Putin na entrevista.

Nesta pequena entrevista com o republicano J. D. Vance, posterior à já histórica entrevista com Putin, Tucker e o entrevistado comentam o despovoamento que a guerra está causando na Ucrânia e condenam o empenho dos EUA e da Europa ocidental em derramar até a última gota de sangue ucraniano numa guerra impossível de vencer. Zelensky seria, por assim dizer, um Solano López ucraniano, dedicado a despovoar o próprio país numa guerra estúpida.

Voltemos a Pútin. Dada a matança iniciada pelos neonazistas na Ucrânia, e dada a disposição ocidental de levar à morte até o último cidadão ucraniano numa guerra perdida contra a Rússia, será possível encontrar uma continuidade entre o despovoamento promovido pelos inventores da Ucrânia (Lênin e Stálin) e o atual? Vemos no Brasil um esforço consciente para despovoar áreas ricas em minério da Amazônia (tratei disso aqui). É possível que o mesmo se dê noutras partes do globo.

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Quem manda nos EUA e na Alemanha?

Se em vez de Tucker, fosse um jornalista brasileiro, teríamos muito a perguntar para Putin sobre fertilizantes e leis ambientais. Como a entrevista foi concedida a um cidadão dos EUA, é natural que se voltasse àquilo que lhe parecia de maior interesse: a guerra na Ucrânia, que consome bilhões de dólares (e acaba desvalorizando a moeda perante o mundo, como notou Putin). Tucker e J. D. Vance comentaram que o Congresso quer passar uma lei que obriga o próximo presidente (Trump, talvez) a gastar com a Ucrânia até 2026, impedindo a paz já de antemão.

No entanto, o assunto de maior interesse para o cidadão dos EUA se provou outro: Putin revelou que, pelo menos desde Bush, falar com o presidente e nada é a mesma coisa, pois quem manda é a CIA. Vale citar na íntegra: “Levantei várias vezes a questão de os Estados Unidos não apoiarem o separatismo ou o terrorismo no norte do Cáucaso, mas eles continuaram fazendo isso mesmo assim. E os Estados Unidos e seus satélites forneceram apoio político, apoio informacional, apoio financeiro e até mesmo apoio militar a formações terroristas no Cáucaso. Uma vez, levantei essa questão com meu colega, também presidente dos Estados Unidos [George W. Bush]. Ele disse: não pode ser, você tem provas? Eu disse: sim. Eu estava pronto para essa conversa e dei a ele essa prova. Ele analisou e sabe o que ele disse? Peço desculpas, mas aconteceu, vou citar, ele disse: ‘bem, vou dar um chute no traseiro deles.’ Esperamos e esperamos uma resposta, não houve resposta. Eu disse ao diretor do FSB [Serviço Federal de Segurança]: escreva para a CIA, você obteve algum resultado da conversa com o presidente? Escrevi uma, duas vezes, e então recebemos uma resposta. Temos a resposta nos arquivos. A CIA respondeu: estávamos trabalhando com a oposição na Rússia; acreditamos que isso é correto e continuaremos trabalhando com a oposição. Engraçado, muito bem. Percebemos que não haveria conversa.”

A acusação de Putin indica algo bem grave: a CIA fomenta terrorismo e é a real mandante do país, estando acima do presidente. Outra acusação de Putin é a de que foi ela que explodiu o gasoduto Nord Stream, alegando que só ela tinha essa capacidade e esse interesse ao mesmo tempo. Segundo Tucker, esse foi “o maior ato de terrorismo industrial da história”; e, embora não haja provas materiais, Tucker aponta que os alemães creem na mesma coisa que Putin: “os alemães entendem claramente que seus parceiros da OTAN fizeram isso”, isto é, explodiram o gasoduto. Hoje, a Alemanha compra gás da Rússia por meio de atravessadores, sem impedir que Moscou seja financiada: o saldo final é somente empobrecer a economia alemã. A pergunta que não quer calar, então, é por que os alemães consentem com isso. Para Putin, a resposta simples e lógica é que as lideranças da Alemanha não governam segundo os interesses dos alemães, pois só assim se pode compreender a sua conduta.

Liberdade de imprensa

A leitura geral de Putin é que os EUA não aceitam o fato, certo como o nascer do sol, de que a China irá se tornar a maior potência do mundo graças à sua demografia e ao seu progresso econômico e tecnológico. Os EUA agem como maus perdedores e tentam, em vão, impedir que o sol se levante tacando bombas e inventando sanções. A entrevista aborda uma série de assuntos complexos, e se você não tem um inglês bom o suficiente para acompanhá-la, aqui está uma transcrição da Sputnik Brasil.

Mas talvez a coisa que mais chame a atenção na entrevista é a dificuldade de Tucker em realizá-la, bem como o fato de ele ter, antes e depois, que ficar se explicando pela entrevista feita. Nesta discussão em Dubai, Tucker relatou que estava há anos tentando entrevistar Putin, mas tinha dificuldades por causa da espionagem da CIA e da NSA sofrida por ele, Tucker, cidadão dos EUA obediente à lei. É complicado chamar isso de democracia.

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Além do lado estatal, o cientista político Sohrab Ahmari tem chamado atenção à facilidade com que os cidadãos dos EUA aceitam a tirania, desde que seja exercida por meios privados. Lembrei-me disso tanto na crítica de Tucker em Dubai à imprensa dos EUA, quanto neste trecho da entrevista de Putin: “Na guerra da propaganda é muito difícil derrotar os Estados Unidos, porque os Estados Unidos controlam toda a mídia mundial e muita mídia europeia. Os beneficiários finais dos maiores veículos de imprensa europeus são fundos americanos. Você não sabe disso? Então é possível se envolver nesse trabalho, mas é, como dizem, caro demais. Podemos simplesmente expor nossas fontes de informação e não obteremos resultados.”

No Brasil, a obscena propaganda da vacina da Pfizer e a campanha difamatória contra Bolsonaro fizeram a direita ficar muito crítica às narrativas coordenadas da imprensa global. Se recuarmos um pouquinho no tempo, a esquerda era majoritariamente assim (basta lembrar a época da Lava Jato). Ela mudou por causa das doações bilionárias de Soros e companhia limitada. Isso tudo é gente alinhada com os interesses da CIA.

Vale lembrar que também existem organizações e figuras de direita análogas, como a Heritage Foundation e os Irmãos Koch. No frigir dos ovos, à direita e à esquerda, o que eles fazem é defender os belicosos e deletérios interesses da CIA, alegando que se trata de democracia e direitos humanos. (A propósito: uma coisa que deixou Tucker impressionado foi a beleza e a segurança de Moscou. Ele concluiu que a violência e a degradação urbanas são opções políticas das elites que controlam o seu país natal, e é um entusiasta de primeira hora da revolução da segurança pública de Bukele.)

Nos EUA, a direita parece enfim se libertar disso por meio de Tucker e de Trump, que são chamados pela CIA e pelos democratas de propagandistas russos. Por aqui, vamos ver os olavetes e os “conservadores” de gravata borboleta darem tratos à bola para explicar por que eles repetem sobre a Rússia e sobre Tucker tudo o que o Partido Democrata e a CIA dizem, mas são mais de direita do que Trump e do que Tucker.

Por fim, vale lembrar da cara desse regime de exceção que governa os EUA: este é o tuíte da conta oficial do Presidente Biden, feito após o ataque conjunto de Israel e EUA ao sul de Gaza, que era o local para onde os palestinos (em sua maioria, mulheres e crianças) foram instruídos a se retirar. A cara desse regime é a dos crimes contra a população civil, do terrorismo de Estado, do ódio à humanidade, da limpeza étnica globalizada e do racismo.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]