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Lepra é ruim. Aids é ruim. Se digo que tal coisa ruim não é sintoma de lepra, mas sim de Aids, não estou com isso querendo dizer que lepra é bom. Diagnóstico correto é indispensável para tratar doenças. É assim na medicina e deveria ser assim na política também. Mas, se os médicos todos fossem como os cientistas sociais, estariam dizendo coisas assim: “Oh, meu Deus! Como a lepra é ruim!!”; “Como é horrível a disenteria!!”; “Espinhela caída é um horror!!”. Então o médico abraçaria o paciente e choraria junto, para depois redigirem, ambos, textões nas redes sociais contra a doença. Depois trataria com sangrias ou pulseirinha quântica, a depender das preferências estéticas do cliente.
Mutatis mutandis, quem discute política fica dizendo: “Oh, meu Deus! Como o comunismo é ruim!”; “Como é horrível o racismo!”; “A cisheteronormatividade é um horror!”. Tratar eficazmente é o de menos; bom mesmo é desopilar. Algumas das doenças apontadas existem, outras não. Mas se você disser que talvez uma dada doença não seja a causa de um mal presente, o desopilador contumaz responderá algo como: “Então você quer dizer que racismo não existe??”. Daí se vê que essa mentalidade “desopilatória” (digamos assim) só sabe lidar com causas totalizantes ou pelo menos eficientíssimas, pois se tal coisa má existe, ela tem que ser causa de todos os males ao mesmo tempo. E vê-se também que o conceito de “racismo estrutural” é feito sob medida para isto, pois todo e qualquer fenômeno social deve ser explicado por ele. Ocupa o lugar mesmo lugar que Deus tinha em filosofias ocasionalistas – mas Deus era bom, o racismo estrutural é mau.
Como a mentalidade desopilatória é disseminada pela sociedade, a direita não está livre dela. Conceitos sérios como o de “marxismo cultural” podem ser distorcidos para colocar o comunismo ou o marxismo como causa única de todos os males.
Falo disso agora porque a obsessão pelo comunismo e pelo marxismo desvia o foco do real problema do Ocidente no século XXI: o progressismo, uma corrente ideológica surgida nos EUA ainda no século XIX, independente do comunismo, mais velha do que o nazismo, e com qual o nazismo guardou uma relação de dependência (se você pegou o bonde andando, sugiro este texto).
A eugenia como corte cultural
O século XIX foi o século do surgimento de ideologias planificadoras: sansimonismo e positivismo na França, utilitarismo na Inglaterra, comunismo na Alemanha, progressismo nos EUA. No século XX, apareceram ainda o fascismo histórico na Itália (com suas variações ibéricas) e o nazismo na Alemanha. Pelo fato de todas serem ideologias planificadoras, e de os militantes de uma pularem para a outra, é muito fácil confundir essas ideologias. Mas elas têm propósitos consideravelmente diferentes; não é à toa que brigam. E como os seus propósitos são diferentes, é necessário diagnosticar bem qual é a ideologia que aflige um dado país.
O mundo latino é de formação católica. Durante a descoberta da América, a Igreja combateu firmemente, sob a acusação de preadamitismo, qualquer um que afirmasse que os homens escuros dos trópicos não são tão homens quanto os demais homens. Uma Coroa protestante poderia agir como se os peles-vermelhas não tivessem alma e descer-lhes chumbo. Uma Coroa católica tinha por obrigação tentar converter os gentios antes; tinha de trazer a Boa Nova aos antropófagos. Por esse legado cultural, a noção de unidade da natureza humana não costuma ser desafiada pelas ideologias planificadoras surgidas em países católicos; e Rondon, positivista roxo e ateu, cultuava a Humanidade enquanto tentava converter pacificamente os gentios à civilização.
Da teologia, a questão da universalidade da natureza humana passou para a ciência, e o preadamitismo passou a se chamar “poligenia” humana. As raças não teriam uma origem comum, e espécies humanoides diferentes brotaram mundo afora.
Assim, a despeito de as ideologias planificadoras terem um ponto comum, dá para encontrar nelas profundas diferenças coerentes com sua origem cultural.
Bundalelê eugênico e naturebice
A despeito do racismo de Marx, o comunismo, que tanto caiu no gosto da América Ibérica, começou como um movimento internacional de solidariedade de classes. Consistente com isso, propaganda soviética mostrava proletários eslavos, orientais e negros irmanados num projeto que desconhecia barreiras de raça. Se não fosse o banho de sangue previsto para a Revolução, poderia passar fácil por um projeto universalista. E como o comunismo atraía uma penca de burgueses, é bem possível que o comunista pacífico se visse como uma espécie de jesuíta pregando para botocudos que estavam no erro do capitalismo, a fim de minorar o inexorável banho de sangue tão certeiro quanto o castigo divino dos maus.
O nazismo em momento algum pôde se passar por universalista. Era claro que existia uma hierarquia de raças, que as raças competiam por recursos num mundo maltusiano, e que o futuro seria eugênico: o povo ariano eliminaria os parasitas judeus, conquistaria o Lebensraum (espaço vital) que é dominado pela raça eslava, reduziria a população de lá e ficaria com uns poucos exemplares como escravos. Joachim Fest nos conta que “quando [Hilter] viu, num memorando, a proposta de proibir venda e uso de meios de aborto nas regiões do Leste, teve uma violenta crise de cólera e bradou que ‘fuzilaria pessoalmente o idiota que teve tal ideia.’ Parecia-lhe, ao contrário, absolutamente indicado favorecer em grande escala ‘o comércio desse material’, e de novo brincava: ‘Mas provavelmente seria preciso recorrer aos judeus para dar movimento a esse mercado’.” (Hitler, v. 2, p. 773).
Os alemães tampouco seriam deixados em paz. Himmler e Bormann previam poligamia para homens sadios das SS, que teriam direitos a tanto mais esposas quanto maiores os seus feitos marciais. Quanto à população geral, “um casal sem filhos durante mais de cinco anos seria separado ‘por razões de Estado’, depois, num encadeamento lógico, propunha-se que ‘toda mulher, solteira ou casada, que ainda não tivesse tido ao menos quatro filhos, fosse obrigada, até a idade de 35 anos, a conceber e dar à luz pelo menos quatro filhos gerados por homens de raça alemã pura. Que esses homens fossem casados, não tinha a menor importância. Toda família já com quatro filhos devia pôr à disposição o homem para essa tarefa”. (p. 776) Por aí vemos que a eugenia dos nazistas era natalista e antinatalista ao mesmo tempo.
Quem era (e é ainda) estritamente antinatalista, com o propósito de aumentar a qualidade das crianças diminuindo-lhes a quantidade, eram (e são ainda) os progressistas. Como vimos, os suecos fizeram seu Estado de Bem-Estar esterilizando os “inúteis” e mantendo a população diminuta. Além disso, um eugenista sueco em 1944, aclamado até hoje pelos progressistas brancos e negros, propôs a conciliação nos EUA por meio da máxima redução de negros via Bem-Estar e controle de natalidade.
Outra coisa bastante interessante de se notar é que, como apontou Myrdal, o progressismo jamais faz coisas abertamente ruins e maléficas. É feio simplesmente reduzir a quantidade de negros deportando-os ou esterilizando-os contra a vontade; mas com propaganda e argumentando-se que é para o bem deles, faz-se de tudo. Embora se aparente ao nazismo, uma diferença estilística significativa é a maciez de um e a agressividade do outro.
De todo modo, os nazistas não eram só militarismo. Romantismo natureba, amor aos animais, conservacionismo ambiental e tara por alimentação “natural” (vegetarianismo seria natural) são traços do nazismo bem sabidos por estudiosos (esse assunto está condensado em The Nazi War on Cancer, de R. Proctor), embora não pelo público geral. Se você visse um macrobiótico sensível num campus dos anos 40, com certeza não era um comunista.
Natalismo comunista
A coisa mais antinatureba do mundo é o comunismo. Marx é o responsável pelo fetiche da industrialização que faz países agrários desprezarem as suas riquezas naturais, pois o progresso humano está estritamente relacionado ao proletário, que a seu turno só existe com indústria. No mais, comunismo e natalismo até pelo menos a década de 60 andaram de mãos dadas. O Estado queria que as mulheres tivessem tantos filhos quanto possível e, se não pudessem criar, os romenos de Ceaucescu os despachavam para orfanatos estatais. A URSS de Stálin era natalista e a China de Mao também.
De fato, a URSS tem uma história ambígua com o aborto. Em 1920, quando o poder central estava em guerra civil com os camponeses – causando assim fome nos centros urbanos – Lênin fez da URSS o primeiro país a liberar o aborto. Fez isso com o mesmíssimo léxico de “saúde da mulher” usado até hoje pela ONU, e ainda por cima gratuito. É possível que tenha sido pela fome, ou então por causa da vontade marxista de combater a “superestrutura burguesa” que é a família. Mas em 1924 já deu ruim e Lênin mesmo impôs muitas restrições ao aborto, deixando a lei parecida com a brasileira de hoje. Em 1936, o Camarada Stálin proibiu por completo o aborto, deixando a URSS igual ao Equador de Rafael Correa nesse sentido. Na Venezuela, os socialistas não mexeram na lei que só deixa em caso de risco à saúde da mãe.
Se alguém hoje quiser fazer um “aborto” às vésperas do parto, hoje só existem quatro países que deixam: China, Coreia do Norte, Canadá e… Estados Unidos. No caso dos EUA, isso se deve às decisões da Suprema Corte nos casos Roe e Doe, que, com muita hermenêutica e ativismo judicial, transformaram o aborto em direito constitucional. Esse expediente é mais um traço típico do progressismo.
Redução populacional como meta progressista...
Voltemos à metáfora de saúde. Uma doença antiga que todo mundo conhecia era a lepra (hoje chamada de hanseníase), e o "leproso" podia ser identificado a olho nu. Com o tempo, as pessoas perderam a capacidade de identificá-los, porque já quase não há mais leprosos pelo mundo. Com Aids era diferente: lá pelos anos 80, eram especialmente perigosos aqueles tipos de aspecto sadio, que tinham o vírus e passavam adiante aos desavisados, às vezes sem ele próprio saber. Proponho que se pense os EUA assim: como um organismo de constituição muito forte, infectado por um vírus letal, que o transmite para países mais frágeis, onde pululam os sarcomas de Kaposi. Pensem no Afeganistão “democrático” com cotas para mulheres no Parlamento, ou na Colômbia alinhada à guerra às drogas que hoje tirou a Estátua dos Reis Católicos por ser racista e aprovou aborto tardio via Judiciário. Por incrível que pareça, esse pode ser o caso da política de filho único da China, que saiu do Clube de Roma.
Como vimos, o antinatalismo é traço típico do progressismo e do neomaltusianismo. Este, a seu turno, dá a tônica da pauta verde. Em 1968, David Rockfeller e mais dois filantropos ambientalistas fundam o Clube de Roma com o humilde propósito de planejar o futuro da humanidade. O Clube existe até hoje e mudou-se para a Suíça. Sua obra mais famosa é The Limits to Growth (1977), feita por uma equipe do MIT liderada pelo casal Dennis e Donella Meadows. Ali estão as crenças de que o mundo irá colapsar por ter gente demais, comida de menos e poluição demais. Noves fora a poluição, é o maltusianismo de sempre enfeitado com tabelas.
Tendo em mente o fracasso histórico do maltusianismo, eles alegam que é preciso ou uma Revolução Verde na agricultura, que aumentasse a produtividade, ou um freio no crescimento da população. Eles dão por garantido que a Revolução Verde não ocorreu, nem aconteceria tão cedo (poderíamos dizer que tal revolução da produtividade agrícola aconteceu, sim senhor, no Brasil – mas os ambientalistas se empenham em atacar a produção alimentícia do nosso país!). Assim, resta, até por causa da poluição, controlar as taxas de natalidade. O equilíbrio global seria alcançado quando cada família se limitasse a ter dois filhos. As metas “realistas” eram amplo acesso a controle de natalidade “100% eficaz” e que as pessoas só tivessem filhos “que realmente quisessem”, sem porém haver coerção alguma. De alguma maneira, os burocratas sabiam que a redução a uma população aceitável aconteceria somente por meio do não-nascimento das “unwanted children” (p. 141).
Como fazer isso? “Não supomos”, dizem os autores, “que nenhuma dessas políticas necessárias para atingir a estabilidade sistêmica possam ou devam ser introduzidas o mundo por volta de 1975. Quando uma sociedade escolher a estabilidade como uma meta, deve se aproximar gradualmente. É importante dar-se conta, porém, de que quanto mais deixarem o crescimento exponencial continuar, menos possibilidades sobrarão para o estado final. A figura 8 [catastrófica] mostra o resultado de esperar até o ano 2000 para instituir as mesmas políticas que foram instituídas em 1975 [relativas a poluição e controle de natalidade]” (p. 165).
...Repassada à China
Em 1979, após tanto ouvirem no Grande Salto para a Frente defender que as mulheres tivessem uma montanha de filhos, os chineses se deparam com esterilização forçada, um problema típico de países progressistas. Súbito o governo instituíra a política do filho único. Não era mais Mao, mas sim Deng Xiaoping. Em 1978, o Presidente Jimmi Carter, democrata, fora à China comunista pela primeira vez. Em 1979, é a vez de Deng ir aos Estados Unidos. Das tratativas entre ambos saiu a suspensão aos embargos comerciais, que, junto a uma modernização interna – que acabou com a economia comunista –, criou essa China comercial de hoje.
Não é segredo nenhum que a política do filho único foi inspirada pelo neomaltusianismo ocidental (a culpa normalmente recai sobre um tal Song Jian). De todo modo, não podemos deixar de notar que o Clube de Roma pregava apenas dois filhos por casal, ao passo que a China instituiu um filho por casal. Não será factível que os progressistas dos EUA, sabendo da força de sua própria democracia, tenham usado o esqueleto da autoridade comunista para impor sua quota aos chineses?
Sabemos das desgraças causadas por Mao e Stálin porque os modelos políticos de ambos sofreram grandes derrotas. Hitler, em 1938, estava todo pimpão na capa da Times enquanto barbarizava o próprio país. Sofreram uma grande derrota, e soubemos das desgraças causadas por ele. Os progressistas nunca sofreram uma grande derrota. O Clube de Roma segue pimpão com o seu neomaltusianismo assassino, enquanto que a política do filho único é toda posta na conta dos comunistas. Precisamos enxergar as coisas com clareza.