Creio que a grande confusão ideológica do momento advenha de um fenômeno novo, que pegou o nosso aparato conceitual de calças curtas. Olhamos para o século XX e conseguimos discernir como vilão, ali, o grande ditador estatista. O comunista é o mais fácil de enquadrar no estatismo: um Czar Vermelho, como Stálin, tinha poder de vida e morte sobre cada soviético. Toda a cadeia produtiva, desde a comida até peças da corrida espacial, estava orquestrada por uma burocracia planejadora submissa ao Czar dono do Estado. O modelo soviético inspirou ditaduras mundo afora, especialmente em países pouco industrializados. Foi o caso do Leste europeu, da África e da China. Pela nossa vizinhança, Cuba tornou-se o farol dos insensatos: a ilha da magia em que um ditador paramilitar dava a todos saúde e educação de qualidade, em troca de algumas restrições de liberdade.
O comunismo soviético é uma ideia simples e fácil de processar. Por isso suscitou apoiadores e detratores veementes: quem acreditava na onipotência do planejamento estatal era comunista e pronto; quem não acreditava era anticomunista e pronto. Um fenômeno contemporâneo era mais difícil de nomear e de entender. E se formos contra a planificação total e defendermos a existência de empresas privadas? Qual o limite apropriado entre a ação estatal e a empresarial? E se defendermos uma concertação entre um ditador carismático e um punhado de grandes empresários subsidiados, protegidos contra a concorrência estrangeira ou dos seus compatriotas pequenos empreendedores?
Aí tivemos o fascismo, o nazismo e uma porção de ditaduras que começaram comunistas – inclusive a China. E, removendo-se o caráter ditatorial, tivemos o Bem-Estar Social, que faz do governo uma fonte de renda segura para o grande empresariado. Se pegarmos um Estado rico e dissermos que ele está responsável por comprar óculos para todo mundo, só uma empresa muito grande conseguirá ganhar a licitação, e logo será uma grande interessada em manter um lobby do óculos ou em patrocinar candidatos mal-intencionados. O pequeno artífice que fazia lentes ou óculos fica sem trabalho, mas o Estado lhe dá seu par de óculos subsidiado.
Formação do antiestatismo
Das turbulências vividas na Inglaterra resulta uma equivalência entre direita e antiestatismo, com Thatcher alçada à condição de ícone. O histórico brasileiro era bem diferente do da Inglaterra até a redemocratização. Nosso anticomunismo não era antiestatista – pelo contrário. O período mais duradouro do regime militar usou o Estado como indutor do desenvolvimento. Deu certo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – graças à qual temos o Cerrado fértil –; não deu certo com uma montanha de estatal.
A coisa começa a mudar de figura com a Constituinte, em 1988, quando a sociedade brasileira passa a acreditar no Bem-Estar Social. Tudo vira obrigação do Estado e direito do cidadão. A saúde pública é amalgamada numa nova forma; o SUS aparece como cópia do NHS e símbolo do próprio Estado Democrático de Direito. E ele deve ser uma das poucas coisas que se mantiveram constantes na esquerda entre 89 e 2021: com a pandemia, um monte de bom-moço que usa plano de saúde foi às redes sociais postar “Viva o SUS” por causa da vacina de Covid. Gente que apoia acriticamente a transferência de somas imensas dos cofres públicos para a Big Pharma. Noutros tempos, seria discutida no mínimo a quebra de patentes, como fez o Brasil junto com a Índia quando José Serra era ministro da Saúde. Hoje o social-democrata e o pseudocomunista mandam o governo entregar qualquer soma à Pfizer enquanto ela afirma que só quando todo mundo é obrigado a tomar umas mil doses a sua vacina experimental pode talvez funcionar.
Mas estávamos no antiestatismo. Com o Bem-Estar Social, a cultura da Inglaterra passou a equivaler direita e antiestatismo. Talvez o fenômeno seja generalizado na cultura de língua inglesa, já que a Progressive Era nos Estados Unidos também era estatista e, embora tivesse representantes entre republicanos e democratas, seja mais fácil de identificar com os democratas de hoje (A esse respeito, veja-se a obsessão racial, tão apontada por Thomas Sowell).
No Brasil, como passamos a seguir em 1988 um ideário de Bem-Estar Social, não é de admirar que, três décadas depois, a equivalência entre direita e antiestatismo tenha surgido também na nossa cultura política, ainda que sejamos de origem ibérica e não anglófonos.
Poder privado negligenciado
Friedrich Hayek, que fugiu da Áustria nazista e para a Inglaterra entusiasta do Bem-Estar Social, escreveu O caminho da servidão para alertar que concentração de dinheiro era concentração de poder, e por isso o socialismo fatalmente conduziria um povo à servidão, já que concentraria o poder político e o econômico numa só mão. A sua lição continua válida, mas as circunstâncias mudaram. A concentração temida por ele, dado o cenário do século XX, era a concentração na mão do Estado. No século XXI, temos visto os políticos e juízes ocidentais rasgarem leis e direitos humanos para fazerem o que a indústria farmacêutica quer. Juntos, os oligopolistas sem dúvidas têm mais dinheiro que muito Estado nacional, e é-lhes possível comprar as autoridades, espoliar cofres públicos e matar ou aleijar parte de sua população com drogas experimentais eximindo-se de riscos.
Não é mais o Estado o problema do século XXI. É a captura do poder do Estado pelo poder econômico. É gente não-eleita com poder de polícia sobre nós.
Leiam as manchetes sobre vacinação infantil: a Pfizer é quem anuncia o sucesso de seus próprios experimentos em crianças, como se não houvesse conflito de interesses algum. Como se fôssemos obrigados a confiar nossas vidas e as vidas das crianças à boa fé de uma empresa que tem ganhos estratosféricos com a vacina. É impossível nos obrigar a confiar, mas a polícia nos obriga a agir como se confiássemos.
O conflito de interesses na indústria farmacêutica é um problema sério dos países ricos que agora resvalou para o mundo inteiro. Deixo a recomendação do documentário The Bleeding Edge (2018), da Netflix, que mostra a simbiose entre a FDA (a agência reguladora dos EUA), a indústria da saúde e a academia. Quando o financiamento da pesquisa médica é quase todo privado, da própria indústria, não é de admirar que passe todo tipo de aberração. Se a Bayer financia a Bayer para dizer que o dispositivo inventado pela Bayer é bom, o anglófono e o brasileiro médios vão achar uma beleza, porque é a Bayer é uma agente privada, enquanto que o Estado é o verdadeiro malvadão.
Absurdo dos absurdos
Mês passado, ainda antes de se falar em vacinação infantil no plano nacional (mas já com passaporte sanitário para crianças na Bahia), ouvi um pai temeroso. Seus gêmeos têm quatro anos e ele sabia que, em breve, a Pfizer iria liberar a vacina para crianças de cinco. Ele e a mulher não queriam dar a vacina para os filhos.
Se eu voltasse não para 2019, mas para abril de 2020, quando ainda se estava naquela conversa fiada de achatar a curva, essa situação seria inacreditável. Quem acreditaria, no começo da pandemia, que pais seriam obrigados a ver seus filhos serem vacinados com uma substância de segurança duvidosa?
Aqui quero discordar do meu amigo Eli Vieira. No texto cujo título parece feito sob medida para essa situação absurda (“Avisa autoriza vacinas para crianças. Qual é a mais segura: Pfizer ou Coronavac?”), Eli afirma: “É importante fazer uma pausa e pensar nas ambiguidades do termo ‘experimental’ nesse contexto. Enquanto, no Código de Nuremberg, o termos se refere a experimentos científicos, este não é necessariamente o sentido contido na resolução — na qual ‘caráter experimental’ poderia ser substituído por ‘caráter tentativo’, especialmente à luz do contexto, que é dar uma resposta a uma emergência”.
O Código de Nuremberg, feito à luz do nazismo, exige consentimento das cobaias na experimentação. A definição de Eli no trecho acima é bizantina. Precisamos decidir objetivamente se um dado medicamento é experimental ou não. É inexistente a figura da “droga tentativa”. Precisamos de clareza de termos para dizer que uma dada pessoa resolveu se submeter ao uso de drogas experimentais. Inclusive, quando a pessoa faz isso, costuma ser em função de considerações relativas ao seu próprio corpo, não ao suposto bem da sociedade.
O que se ganha com a alteração semântica proposta? Se dissermos "Fulano fez uso tentativo de uma droga experimental", descrevemos uma coisa que o Código de Nuremberg permite. Se dissermos "Fulano foi coagido a fazer uso tentativo de uma droga experimental em nome do bem comum", o Código de Nuremberg foi respeitado mesmo?! O máximo que eu já tinha ouvido, participando deste podcast, foi um médico dizer que era errado nos chamar de "cobaia" porque somos "sujeitos de experimentação". Não convenceu nenhum dos demais participantes.
Além disso, o Código de Nuremberg não é composto de um artigo só. O primeiro, mais aludido, é o que proíbe a coação na participação de experimentos. O quarto repete a ética hipocrática, mandando que sejam evitados "todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais." Leia aqui o Código.
Não podemos tapar o sol com a peneira, nem com distinções excessivamente sutis. Estamos assistindo à inoculação compulsória de drogas experimentais em seres humanos. Isso é um absurdo e precisa parar. Espero que trazer clareza à discussão nos auxilie nisso.
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