Como o debate público brasileiro passou da estatolatria à estatofobia num período muito curto, só um punhado de esquerdistas minoritários parece ter dado bola para a questão dos juros para empréstimos consignados no INSS. Foi assim: Lupi deu uma canetada e baixou o teto dos tais juros de 2,14% ao mês para 1,7%. Em protesto, os bancos privados disseram que não iam mais fazer consignado para aposentados. Até aí, tudo normal, porque bancos privados zelam pelos seus próprios interesses, e quanto mais altos os juros do empréstimo consignado, melhor, já que o risco de calote é zero, pois o desconto vem na folha e o banco costuma ter seguro contra a morte do cliente.
Em defesa do livre mercado, poderíamos dizer que, quanto mais altas as taxas, menos idosos estarão dispostos a fazer o consignado. Além disso, ao contrário do imaginário popular evocado pelos esquerdistas, os aposentados pegam empréstimos pelos motivos mais variados, que vão desde o supérfluo até as necessidades reais dos netos. Ao menos eu já tive a curiosidade de perguntar a quem trabalha com isso o porquê de os seus clientes fiéis viverem endividados. A resposta é que não sabem viver com o que têm. Na clientela há ricos e pobres, e têm em comum essa dificuldade de adaptar o estilo de vida à receita fixa. Inclui-se aí o problema muito comum de os filhos consumirem a renda dos aposentados com anuência deles, que ficam pegando empréstimo para bancá-los, em vez de controlar a própria prole. Assim, certamente não é a totalidade dos aposentados endividados que pega dinheiro premida pelas necessidades econômicas. Muitos deles têm uma boa margem de escolha e, se os juros estiverem altos demais, simplesmente não pegam o empréstimo.
Contra essa defesa do livre mercado, porém, devemos apontar duas coisas: que no Brasil existe meia dúzia de bancos – sendo fácil, portanto, formar cartel – e que os aposentados não são exatamente o grupo do qual se deve esperar mais racionalidade e esclarecimento na hora de pegar empréstimos. A meia dúzia de pessoas honestas que trabalha com crédito consignado vai poder lhe falar de como às vezes passa um tempo sem o cliente porque ele recebeu um telefonema propondo muita vantagem e dinheiro fácil, passou todos os dados e fez um empréstimo cheio de taxas das quais ele não estava ciente ao aceitar. O aposentado cai em golpe, e depois não tem nem dinheiro para ir atrás dos advogados – aliás, coitado daquele cuja vida financeira depender da honestidade do corretor de crédito e do advogado aparecidos ao acaso. E, antes que algum defensor de liberdades individuais diga que só cai em golpe quem quer, lembro que não poucos velhos são acometidos por demências, e que demência não começa do dia para a noite. Há uma zona cinzenta em que ninguém tem muita certeza da sanidade do velho. Não é nenhum absurdo dizer que esse grupo populacional merece uma proteção especial contra picaretas.
Bancos privados zelam pelos seus próprios interesses, e quanto mais altos os juros do empréstimo consignado, melhor
O imbróglio moral aumenta ainda mais com a notícia de que os bancos públicos aderiram à “greve” dos privados e tampouco irão oferecer o tal crédito barato.
Eu não sou economista e não me sinto capacitada a explicar por que o governo escolheu 1,7% em vez de 1,8%. Como cidadã escolarizada, sei que 1,7% ao mês dá 20,4% ao ano, o que é uma taxa alta pra chuchu, sobretudo considerando-se que o risco corrido pelos bancos é zero. Além disso, já notei que há uma confusão perigosa entre o liberalismo e o darwinismo social dos anarcocapitalistas, segundo o qual tudo o que “o mercado” (no caso em tela, um punhado de bancos) faz é natural e qualquer interferência estatal é um pecado contra natura. E a adesão é tamanha que só uma meia dúzia de esquerdistas à moda antiga apontou a aberração de os bancos estatais (Caixa e Banco do Brasil) aderirem à greve dos bancos privados. De que serve um banco público, se desrespeita a autoridade eleita para agir igual aos bancos privados? E pior: igual aos bancos privados num país de oligopólio bancário.
Há quem diga que os aposentados terão de procurar outras linhas de crédito, essas mais caras. É bem possível. Só não se diga que tudo isso é inexorável. Porque se o sujeito for “liberal na economia” (leia-se: darwinista social) e “conservador nos costumes”, chamando todas as coisas humanas de inexoráveis, terá de aceitar que, assim como os juros do oligopólio sobem “inexoravelmente”, as mulheres vão “inexoravelmente” abortar, os jovens vão “inexoravelmente” se drogar, de modo que o certo é promover a segurança no aborto e no uso das drogas. Afinal, ambos ocorrerão de qualquer jeito, junto com a alta dos juros.
A verdade é que muitas coisas acontecem “de qualquer jeito”, mas, por meio da sanção ou do rechaço social, elas podem acontecer com maior ou menor frequência e intensidade. Por isso temos leis contra o homicídio, mesmo que não haja a pretensão de acabar com os homicídios para sempre: a ideia é que as pessoas se matem menos umas às outras por acharem isso feio ou por não quererem ser presas. Do mesmo jeito, a sociedade deve tentar balizar a moral da economia. Isso não implica necessariamente uma planificação centralizada ao estilo socialista; implica apenas não virarmos anarcocapitalistas.
Há uma confusão perigosa entre o liberalismo e o darwinismo social dos anarcocapitalistas, segundo o qual tudo o que “o mercado” (no caso em tela, um punhado de bancos) faz é natural e qualquer interferência estatal é um pecado contra natura
Na maior parte da história da cristandade ocidental – que vai desde o final do Império Romano Idade Média até a Reforma protestante –, a usura foi condenada com grande veemência pelas autoridades religiosas e, por conseguinte, pela moral social. A Idade Média nasceu entre os cacos do Império Romano e em meio a convulsões sociais. Hoje é lembrada como uma era obscurantista por ser oposta à inovação; vale lembrar, porém, que a Idade Média pretendia alcançar estabilidade em meio ao caos. Ela logrou essa finalidade. Durante a Idade Média o homem acreditava na ordem fixa criada por Deus, e conseguiu criar uma sociedade estável. Agora, na Pós-Modernidade, o homem é darwinista e acredita que estabilidade é estagnação. O mundo devora os inaptos; a meta é estar sempre em mutação para ser o mais evoluído e não estar entre os devorados. Não é de admirar, portanto, que o homem crie uma ordem social que merece antes o nome de desordem, pois tudo é tão volátil que os homens não têm sequer certeza de que são homens, porque ser homem é construção social e o gênero flui.
Felizmente o Ocidente não uniforme, e há uma diferença cultural forte entre os países de formação protestante e os de formação católica; por isso, podemos dizer que o Brasil não se modernizou (nem pós-modernizou) numa tacada só. Chegou a haver na nossa Constituição mais recente uma criminalização da usura, proibindo-se juros acima de 12% ao ano. Se a vontade dos constituintes valesse, a taxa de 20,4% da canetada ainda seria alta demais.
Há apenas três décadas e meia, portanto, a elite brasileira ainda achava feia a usura, exibindo assim essa herança da moral medieval.
A sociedade deve tentar balizar a moral da economia. Isso não implica necessariamente uma planificação centralizada ao estilo socialista; implica apenas não virarmos anarcocapitalistas
Fora das regiões mais modernas do Brasil, e também da área metropolitana, pude encontrar mais um vestígio dessa moral: ganhei duas mudinhas de arruda “porque olho grosso e usura há em toda parte”.
Fiquei feliz com o presente; as duas mudas de arruda vingaram e estão crescendo. Como boa cética, porém, me ocorreu primeiro que o melhor jeito de evitar a usura é não fazer dívidas. Mas também me ocorreu que (e aí voltamos ao assunto dos golpes) a gente pouco moderna e estudada é presa tão fácil de golpes financeiros que faz perfeito sentido enxergar o mundo bancário como mágico e misterioso, no qual vale a proteção da arruda. A arruda, aliás, veio lá da Europa; e antes de o continente se modernizar era tida como planta mágica.
Para dar uma ideia do desamparo dessa população frente ao sistema financeiro, devo mencionar que às vezes acontece de haver uma analfabeta no caixa eletrônico do mercado pedindo ajuda para sacar o dinheiro, porque não sabe mexer no autoatendimento. Numa dessas ocasiões, a analfabeta tinha me entregado um cartão de crédito novo ainda bloqueado. Ou seja: o banco manda o cartão de crédito para o roceiro analfabeto, o roceiro conhece o objeto plástico como sendo uma coisa que você enfia na máquina e tira o dinheiro. Afinal, o governo lhe ensinou a usar assim esse objeto plástico. Daí vocês imaginam, então, o que a financeirização desse Brasil medieval não significou para o sistema financeiro: a possibilidade de raspar todos os auxílios governamentais, e quiçá pequenas propriedades rurais, por meio de altos juros.
A convivência com essa população arcaica também me fez entender a importância do Pix. Um artesão me explicou que lastimaria muito se taxassem, porque ele não gosta de andar com cartão – parecendo até que cartão não tem taxa. Por aqui, ao contrário das capitais, é comum usar dinheiro vivo, e o pequeno comércio tem aderido ao Pix; logo, os hábitos desse artesão devem ser pagar ou em dinheiro, ou por Pix (com o celular), sem cartão envolvido. Diferentemente do cartão, quando pagamos com o Pix, vemos o nosso saldo na conta. Daí vocês imaginam o tanto de dinheiro que os cartões não devem fazer com juros, graças ao pouco conhecimento de finanças da população.
Há apenas três décadas e meia, a elite brasileira ainda achava feia a usura, exibindo uma herança da moral medieval
Nessas horas, naturalmente, aparecerá o famigerado “defensor da educação” ao estilo Tabata, dizendo que a culpa não é dos bancos, nem do mercado, mas sim do Estado, que não ensina finanças à população. O Estado deveria, então, pegar cada roceiro analfabeto e ensinar sobre juros de cartão, quer ele queira aprender, quer ele não queira. O homem não deve ter a liberdade de ficar na roça plantando sem ser incomodado por armadilhas financeiras. Por outro lado, o Estado não pode em hipótese alguma limitar juros, mesmo que isso tenha sido previsto pela Constituição, porque aí é heresia contra o “livre mercado” de meia dúzia de banco. O Estado deve assegurar aos banqueiros a liberdade de cobrar até a alma em juros em contratos de letras miúdas, assim que a tecnologia descrita em Fausto estiver disponível no mercado. O papel do Estado é esse, segundo muito “liberal” por aí que na verdade é anarcocapitalista.
Pensando mais um pouco no caso da arruda, concluí que, acreditando-se em propriedades mágicas, cabe o seu uso em situações financeiras. Afinal, não são só os roceiros, artesãos e enrolados do INSS que têm de temer os efeitos da venda do tempo sobre as próprias finanças. Se eu deixo o dinheiro na conta, a inflação come. Se aplico, mil e uma coisas podem acontecer. No começo, a usura era proibida por ser entendida como a venda de uma coisa divina e não vendável: o tempo. Vista assim, eu diria que “a usura está em toda parte” mesmo. A gente tem de ficar correndo do tempo com o dinheiro na mão, decidindo onde botar, para ser o mais evoluído neste mundo darwinista. Mas cuidar de dinheiro dá muito trabalho, e aí não sobra tempo para trabalhar.
Eu gostaria de terminar este texto assim, com pontificações sobre o uso da arruda contra o mercado financeiro, mas me empenhei mais em descobrir o que significa “arruda” no jargão local, sobretudo após ouvir mais gente se queixando de usura num contexto fisiológico. Um entrevistado me disse que “quando lhe oferecem um prato de caruru e você pede outro, mais outro e mais outro, além da fome, é usura”. Outro entrevistado disse que usura é querer comer demais, é gula, e é diferente de ganância, pois ganância é “querer o que é dos outros”.
Diferentemente do cartão, quando pagamos com o Pix, vemos o nosso saldo na conta. Daí vocês imaginam o tanto de dinheiro que os cartões não devem fazer com juros, graças ao pouco conhecimento de finanças da população
Imagino que a gana por dinheiro tenha se confundido com as demais formas de concupiscência na cabeça do povo e, depois, no interior, se diferenciado de novo com o nome errado (segundo uma familiar minha de Salvador entrevistada, usura significa ganância. O Houaiss registra este significado de usura como regionalismo do Nordeste brasileiro). Por que essa usura/gula é tão preocupante? Possivelmente o exemplo do caruru ajude, já que é um costume religioso oferecer caruru em certas datas festivas. Caruru é uma papa de quiabo que leva camarão seco, castanha de caju e amendoim. Dá trabalho de fazer e os ingredientes não são baratos. Grandes carurus costumam ocorrer em São Cosme e Damião e em Santa Bárbara, além de serem usuais no “jejum” da Semana Santa (lares baianos tradicionais fazem lautos “jejuns” com moquecas e bacalhau, como conta João Ubaldo Ribeiro no texto “Saudade do jejum”, embora as memórias sejam de Sergipe).
Mas posso voltar à arruda mesmo assim. Porque no Brasil de hoje os que temos o IMC normal somos agora estatisticamente anormais, já que os obesos e os com sobrepeso, somados, compõem a maioria da população. E o obeso endividado, estourando o cartão de crédito com iFood e Uber, é bem a imagem desses vícios concupiscentes que se misturaram na cabeça do povo. Vícios que, na moralidade pós-moderna, são virtudes, pois “fazem a economia girar”, “modernizam“, “quebram padrões de beleza“, “dão oportunidades”. Perder peso é caso de dieta e exercício. Já lidar com a mentalidade das elites é caso de arruda.
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